Um mês se passou.
Depois de tudo, eu decidi calar. O ódio ainda tava em mim, mas agora ele dormia junto com o medo. Não tinha mais espaço pra explosões, só pra resistir. João foi ficando cada vez mais longe da minha rotina, como um fantasma que eu me recusava a alimentar. Saí da cela dele e fui parar com o Bola.
A verdade é que, desde aquele abraço na lavanderia, ele foi o único que não me olhou com pena — me olhou com respeito. Com cuidado.
Hoje, a gente tava na horta da prisão. Eu e ele. Só nós dois. Os únicos idiotas que toparam cuidar de plantas no meio daquele inferno. O resto dos caras dizia que isso era “coisa de viado”. Mal sabiam eles que era justamente por isso que a gente topou.
Melhor mexer com semente do que quebrar pedra sob o sol de rachar.
— Tu plantou essa covardia de novo, Pietro? — Bola riu, apontando pra fileira de alface que eu tinha acabado de enterrar com todo carinho do mundo.
— Cê me respeita, que isso aqui vai ser a alface mais bonita dessa cadeia. — sorri de canto, com as mãos sujas de terra. — Se tu tiver sorte, eu deixo tu colher uma folha.
— Hum… romântico. — ele fez uma careta, imitando voz de novela. — “Se tu for legal comigo, eu deixo tu mastigar minha alface…”
— Ah, vá à merda. — gargalhei, empurrando ele com o ombro. A risada dele me fez rir mais ainda. A gente ficou ali, rindo feito dois moleques que esqueceram, por um segundo, que tavam atrás de grades.
O sol batia quente nas costas, e a terra úmida tinha um cheiro bom. Um cheiro de vida. Bola se abaixou do meu lado e começou a plantar as sementes com jeito. Eu observava, meio distraído.
— Tu leva jeito com as mãos… — comentei, de repente.
Ele me olhou de lado, com aquele sorrisinho.
— É? Quer que eu te mostre o que mais eu sei fazer com elas?
— Idiota. — desviei o olhar, mas senti meu rosto esquentar. O clima mudou. Não era pressão. Era leve. Quase uma brisa no meio da tempestade.
— Sério agora — ele disse, limpando a testa com o braço. — Isso aqui… plantar… mexer na terra… é a primeira vez em muito tempo que eu sinto que tô fazendo algo que não é errado.
— Eu também.
Ficamos em silêncio por um tempo. A brisa passou entre a gente, levando poeira, folhas e tudo o que a gente não disse.
— Bola…
— Fala.
— Se eu sair daqui um dia… tu vem comigo?Podemos dividir o aluguel e viver em paz, como bons amigos!
Ele não respondeu de cara. Só parou de plantar por um segundo, olhou pro chão, e depois pra mim.
— Se você me prometer que planta alface todo dia… talvez eu vá.
Sorri.
O sol ainda tava alto, mas o calor já não incomodava tanto. A terra cheirava a promessa, e o silêncio entre uma semente e outra era confortável. Bola ficou quieto por um tempo, cavando um sulco com as mãos, até que suspirou pesado.
— Pietro… posso te falar uma parada?
— Fala, ué.
Ele não me encarou. Continuou mexendo na terra como se quisesse se enterrar junto.
— Eu sinto nojo de mim às vezes. — a voz saiu embargada. — Por ser gordo. Por… sei lá. Eu olho pro espelho e parece que tudo em mim é errado. Eu queria mudar. Emagrecer. Sumir um pouco de mim.
Fiquei em silêncio por uns segundos, digerindo aquilo. Não esperava que ele fosse se abrir assim. Mas ali, no meio do barro, ele tava mais humano do que nunca.
— Se tu quiser emagrecer, eu vou te ajudar. Na moral mesmo. A gente dá um jeito. — falei, sincero. — Mas teus braços…
Ele levantou uma sobrancelha.
— Meus braços?
— Eles têm que continuar grandes. Porque, puta merda, eu gosto deles assim. — sorri sem graça, abaixando o olhar. — Quando tu me abraça, parece que nada lá fora existe.
Bola riu meio sem jeito, passando a mão na nuca.
— Essa conversa tá num tom de maricas que, se alguém ouvir, vai jurar que a gente tá prestes a se declarar debaixo de um arco-íris.
— Cala a boca. — ri, e antes que ele dissesse qualquer outra coisa, me joguei em cima dele, derrubando ele no chão fofo da horta. A terra voou, e ele caiu de costas, arfando de surpresa.
— Que porra, Pietro?! — ele riu, tentando se levantar.
Mas eu não deixei.
Segurei o rosto dele com as mãos sujas de barro. E ele me olhou com aqueles olhos grandes, cheios de susto e vontade. A gente se encarou por uns segundos, e então foi ele quem puxou.
O beijo veio quente, forte, urgente. Como se a gente estivesse desenterrando tudo que nunca pôde florescer.
— EI! — uma voz interrompeu.
Nos separamos num pulo.
Era o guarda.
— Pensei que tavam brigando… mas olha só… — ele começou a rir, aquela risada debochada, mas não cruel. — Vai dizer que isso aí é técnica nova de capinar?
Bola bufou, se levantando com um grunhido. Eu levantei logo atrás, limpando a terra da camisa, tentando esconder o sorriso idiota no canto da boca.
— Voltem pro trabalho, Romeu e Julieta — o guarda disse, ainda rindo enquanto se afastava.
Ficamos ali, em pé, um olhando pro outro.
— Bora plantar essa alface logo, antes que tu queira me beijar de novo. — Bola falou, tentando parecer sério.
— Só se você pedir com jeitinho. — respondi.
E então voltamos ao trabalho.
Mas, por dentro, algo novo tinha brotado. E dessa vez, não era só uma semente na terra. Era algo mais fundo. Algo que, talvez, tivesse chance de crescer.
A gente esperou até o último grupo tomar banho. Era o jeito. Não só pela privacidade, mas pra escapar dos olhares, das piadinhas, dos comentários sujos que vinham fácil demais naquela prisão. Quando o guarda gritou “os dois da horta, agora!”, eu e Bola nos entreolhamos e seguimos pro chuveiro coletivo.
O banheiro estava vazio, com o som da água ecoando pelas paredes mofadas. Bola ficou meio hesitante, parado perto do canto, enquanto eu já tirava a roupa sem cerimônia.
— Vai, pô. Entra aí. — falei, com a água escorrendo pelo meu cabelo e pescoço. — Tá esperando o quê?
Ele tirou a camisa devagar, olhando pros lados como se o medo de ser julgado estivesse cravado na pele.
— É que... meu corpo, Pietro... não é bonito. É cheio de coisa sobrando. Marcas. Dobras. Gente olha com nojo.
Eu o encarei, sério, com a água caindo sobre meus ombros.
—Teu corpo é teu. E é bonito, sim. Principalmente quando tu sorri com ele todo.
Ele sorriu, tímido, e enfim tirou o resto da roupa. Entrou embaixo do chuveiro ao meu lado. A água caiu entre nós dois como uma barreira invisível, até que, aos poucos, a gente foi se aproximando. Não teve beijo, não ali. Só um toque leve nos ombros, uma troca de olhares que dizia tudo.
Banho terminado, a gente voltou pro bloco, cabelo pingando e o corpo mais leve. Mas o estômago? Um buraco.
— Não deram nada pra comer hoje… — murmurei, ao me jogar no colchão fino da cela. — Tô com fome, de verdade.
Bola se sentou ao meu lado, ainda secando a cabeça com a toalha. Depois olhou pra mim com aquele sorrisinho safado dele.
— Fome, é? Pois aqui só tem leite pra te oferecer…
Arregalei os olhos e caí na risada, jogando a toalha nele.
— Seu idiota!
— Ué, cê não quer lanche?
— Quero. Mas esse teu cardápio tá meio ousado demais!
Ele se deitou ao meu lado, os dois de barriga vazia, mas o coração cheio de alguma coisa nova, que nem a gente sabia nomear.
Fome a gente aguenta. O que importa é que agora, pelo menos, a gente não precisa passar ela sozinho.
Acordei antes do guarda bater nas grades da cela. O corpo ainda doía dos dias anteriores, mas a mente tava inquieta demais pra esperar o apito. Olhei pro lado. Bola ainda roncava baixo, de boca aberta, os braços enormes sobre o peito. Dei um toque no ombro dele.
— Acorda, grandão. Bora suar.
Ele resmungou, mas levantou. Sem reclamar. Sem dizer nada. A gente calçou os tênis surrados e foi pro pátio, onde o céu ainda tava se espreguiçando em tons de cinza.
Começamos com flexões, depois barra fixa, abdominais no cimento gelado. Bola era forte, mas reclamava de cada exercício com piadas. Eu ria e mandava ele calar a boca. Era nosso jeito. Dois caras que, por fora, pareciam durões. Mas por dentro… já tinham se salvo um ao outro sem perceber.
Depois do treino, fomos direto pra horta. Terra nos dedos, sol no rosto, e um silêncio confortável entre uma muda e outra. Foi quando eu senti que podia falar.
— Bola… posso te contar um negócio?
— Pode. Mas se for pra dizer que tu sonhou comigo de novo, já sabe que vou rir.
— Idiota. — sorri de canto. — É sério… Eu tô aqui por tráfico. Vendia pra sobreviver. Era isso ou morrer de fome. Me pegaram na frente da faculdade!
Ele parou de mexer na terra e olhou pra mim, sério.
— Não sabia.
— Também nunca contei. Primeira vez que digo isso alto, na real. — respirei fundo. — Tô perto de ir a julgamento. Tenho uma chance de sair. Se a justiça não me ferrar de vez.
Ele coçou a barba, pensativo.
— Eu tô aqui por roubo. Roubei uma loja com mais dois caras. Só que um velho passou mal de susto. Infartou. E adivinha? A culpa caiu em mim também. Como se eu tivesse enfiado o medo goela abaixo dele.
Ficamos em silêncio, mexendo na terra como se nossas histórias estivessem sendo enterradas ali, mas não pra sempre.
— Mas... tem uma parada. — Bola disse, depois de um tempo. — Um cara grande tá querendo me tirar daqui.
— Sério?
— É. Só que ele quer algo em troca. Nada é de graça, né?
— Quem é?
Ele hesitou, limpando o suor da testa com o braço.
— O nome dele é Pedro. Disseram que tem uma sorveteria numa cidade vizinha. Rico, influente. Mas… estranho. Ele não quer grana. Ainda não disse o que quer.
— E tu vai aceitar?
Bola deu de ombros.
— Não sei ainda. Mas se eu sair, tu vem comigo. Dou um jeito. Nem que tu more comigo escondido num freezer de picolé.
Ri fraco, mas por dentro, um frio me percorreu.
Pedro. Um nome simples. Mas com ele, vinha mistério, promessas… e talvez, uma saída.
Ou mais um buraco.
Continua...