Bernardo [48] ~ Recomeço

Um conto erótico de Bernardo
Categoria: Gay
Contém 2760 palavras
Data: 05/12/2023 15:37:40
Assuntos: Gay, Início, Sexo, Traição

Sabiam que é impossível cometer suicídio por afogamento? Tipo, ninguém consegue se matar enfiando a cabeça dentro de uma panela cheia de água. Não importa o quanto você queira fazer aquilo, o seu corpo não vai deixar. O seu corpo é programado pra se proteger de tudo, inclusive da sua mente. Assim, em perigo, ele dispara vários impulsos como reflexo pra te tirar da situação de perigo.

Quando eu senti a água entrar e queimar minha garganta, alguma coisa se acendeu dentro de mim. Eu abri os olhos assustados e tudo o que vi foi uma imensidão turva na minha frente. Eu olhei pra cima e a luz do dia parecia distante, muito acima de mim. Um desespero silencioso tomou conta de mim. Eu comecei a sacudir os braços e pernas pra subir, mas eu era muito lento. A água que eu tinha engolido me queimava por dentro e me impedia de pensar direito. O oxigênio foi acabando, e com ele eu senti minha consciência indo embora. Eu não ia conseguir. Eu ia morrer. Eu olhei pra cima e fiquei admirando a luz do sol que penetrava preguiçosamente na água. Seria minha última visão. A última coisa que lembro antes de desmaiar é pessoas mergulhando e nadando na minha direção.

Eu não sei se eu realmente queria morrer. Eu não parei pra pensar se eu queria por um fim definitivo naquilo. O que acontecia é que eu estava cansado de tudo. O que eu fui atrás no fundo daquele lago era o descanso que a morte me proporcionaria. Mas eu me arrependi. Não era assim que era pra acontecer. Aquilo tudo era muito extremo.

Eu acordei com um forte impacto no peito. Antes mesmo de abrir os olhos, eu senti a água que estava nos meus pulmões fazendo o caminho inverso pra fora, o que não foi menos doloroso. Eu abri os olhos e vi várias sombras sobre mim. Voltei a fechar meus olhos. Só então fui retomando consciência do que eu tinha feito, de até aonde eu tinha chegado. Eu senti uma imensa vergonha dos meus colegas. Eles estavam preocupados comigo, eu tinha estragado seu passeio, e tudo porque eu fui fraco demais até pra encarar meus problemas.

O que aconteceu?_ escutei a voz de alguém perto e entendi que a pergunta era pra mim.

_Não sei..._ eu tentava pensar em como explicar o que aconteceu _Eu acho que não consegui nadar de volta...

_Ainda precisa chamar a ambulância?_ perguntou alguém.

_Não, ele vai ficar bem._ respondeu uma voz ainda mais perto que reconheci como o namorado estudante de medicina de uma colega. _Ele só precisa descansar, ficou algum tempo sem oxigênio. Me ajudem a levar ele lá pra dentro.

Em nenhum momento eu abri os olhos. Não por cansaço pelo quase afogamento, mas por vergonha do que tinha feito. Vários braços apareceram pra me ajudar a me levantar. Abri os olhos e vi Pedro e Paulinho me escoltando lado a lado. Eu já me recuperava e podia muito bem andar sozinho, mas eles permaneceram me segurando firme. Antes de entrar na casa, meus olhos se cruzaram com o de Rafael e eu senti uma pontada de dor. Seus olhos estavam cheio de lágrimas. O que eu não o fiz passar? Onde eu estava com a cabeça? Mas havia um brilho diferente nos seus olhos quando nossos olhares se cruzaram. Voltei a fechar os meus olhos e deixei que me guiassem até um banheiro. Pedro e Paulinho me ajudaram a tirar a roupa e entrar embaixo do chuveiro quente. Ninguém disse nada. Eu mal conseguia olhá-los. Eu queria dizer que poderia fazer aquilo sozinho, mas eles não me deixariam. Quando terminei, alguém apareceu com uma roupa quente e eles me ajudaram a me vestir. Eu fui guiado até um quarto e deitei numa cama. Eu já caminhava sozinho, mas Pedro e Paulinho me seguiam de perto em silêncio. Tudo o que eu queria era dormir e esquecer que aquele dia aconteceu. Nem com todas as noites de sono da minha vida eu esqueceria daquele dia. Ele era a marca definitiva da longa ladeira que eu desci nos últimos seis meses.

Quando abri os olhos, já deitado, me deparei com o quarto cheio de colegas me olhando preocupados. Como eu sentia vergonha!

_Eu vou ficar bem._ falei _Eu só preciso descansar um pouco.

Eles me desejaram melhoras e foram saindo. Paulinho ficou, ele tinha os olhos vermelhos.

_Me desculpa, cara! Eu não devia ter feito isso! A gente empolgou e..._ ele falava desesperado, quase chorando _Você quase morreu. Eu não sei o que dizer...

_Não foi sua culpa, Paulinho._ falei tentando descansar _Vocês já tinham jogado outras pessoas e ninguém se afogou. Fui eu que não consegui nadar de volta.

Foram precisos pelo menos uns dez minutos até que ele se acalmasse e saísse do quarto. Eu realmente precisava descansar. Mas isso estava longe de acontecer: as últimas pessoas foram saindo do quarto, só restando Pedro, Alice e Rafael. Fechei novamente os olhos pensando se eles me deixariam em paz.

_Você está realmente bem?_ perguntou Alice com uma voz doce e pegando na minha mão.

Eu ouvia o medo e a preocupação na sua voz. Eu acariciei sua mão para acalmá-la.

_Estou. E vou ficar melhor depois de dormir.

_Fecha a porta, por favor, Pedro._ falou Rafael de algum ponto do quarto.

Eu abri os olhos curioso com sua ordem e o encontrei o seu olhar ferido e raivoso. Pedro, sem entender muito bem, fez o que ele pediu. Assim que o trinco da porta fez barulho, Rafael veio com uma velocidade impressionante pra cima de mim. Eu nem soube como reagir. Vi a mão dele se erguer no ar e descer com toda a velocidade na forma de um tapa na minha cara. Eu caí de lado na cama surpreso.

_Rafael!_ gritou Alice assustada.

_Você faz natação há quinze anos!_ falou Rafael me encarando com raiva _Você acha mesmo que eu vou acreditar que você não conseguiu nadar de volta?!

Meus olhos se encheram de lágrimas. Ele sabia o que eu fiz! E Alice e Pedro me olharam assustados com a descoberta.

_Oh, Bernardo!_ falou Alice começando a chorar.

_Seu imbecil!_ gritou Rafael que subiu em cima da cama descontrolado e começou a me dar tapas na cabeça.

Eu me protegi como pude, mas por surpresa. Em pleno estado de consciência, eu teria deixado que ele me batesse. Eu merecia.

_Seu egoísta de merda! Você tem ideia do que estava fazendo! O que diabos você tem na cabeça?!

Eu comecei a chorar de arrependimento, vergonha, dor, de tudo o que estava preso na garganta.

_Para. Vem, para._ falou Pedro puxando Rafael pra longe de mim.

_Me diz que você não fez isso!_ falou Alice chorando e segurando meu rosto.

Mas eu não conseguia responder, eu apenas chorava. Ela subiu na cama, me colocou no seu colo e me apertou com força nos seus braços. Ficamos os dois ali, deitados juntos e chorando, sem dizer nada. Abri os olhos devagar e vi Rafael sentado no chão abraçando os joelhos com força e Pedro olhando pela janela com o olhar perdido.

Aqueles eram meus amigos. Eles me amavam, cada um do seu jeito, e tudo o que fiz foi magoá-los. Até mesmo Pedro, pois fui eu que comecei com a mentira em primeiro lugar. Eles não mereciam o que eu tinha feito. Sim, eu estava prestes a fazer um mal irreversível a mim mesmo, mas também estava prestes a dar a cada um deles uma ferida pro resto da vida. Que tipo de amigo faz isso? Que tipo de pessoa eu me tornei?

Se eu não podia voltar no tempo e desfazer tudo, eles mereciam ao menos um pedido de desculpas. Eu me endireitei na cama e sequei as lágrimas. Eles tinham que me ver forte e firme. Os três me encararam.

_Me desculpem. Por tudo, pela pessoa que eu me tornei.

Eu dei um longo suspiro. Eu mal sabia como encará-los e dizer tudo o que tinha pra dizer.

_Eu nunca devia ter chegado a esse ponto. Eu não sei onde estava com a cabeça. Eu não planejei nada. O que aconteceu foi que ao chegar lá embaixo, eu não vi motivos pra subir de volta.

_Como não viu motivos?_ perguntou Alice voltando a chorar _Eu preciso enumerá-los?!

_Calma, por favor. Foi uma coisa de momento, não vai acontecer de novo.

_Como podemos confiar que você não vai fazer isso de novo?!_ perguntou Rafael novamente com raiva _Como vamos poder olhar pra você sem medo de você fazer isso de novo?!

Era uma pergunta muito justa.

_Vocês não têm garantia, nunca vão ter. Vocês vão ter que aprender a viver com a dúvida. E eu sinto muito por isso, eu não tenho palavras pra fazer vocês entenderem isso.

_Por que você fez isso?_ perguntou Pedro _Fui eu?

Ele estava prestes a chorar e meu coração se apertou. Eu o chamei e ele caminhou lentamente até a cama e sentou ao meu lado. Alice ainda estava abraçada a mim. Sem me importar com o que ele pensaria ou como reagiria, eu peguei na mão de Pedro. Ele não fez nenhuma menção de tirá-la.

_Não foi você Pedro, fui eu._ falei lutando pra não voltar a chorar _Tudo o que me aconteceu me atingiu em cheio, mas isso não é desculpa. Quantas pessoas não passam por coisas muito piores todos os dias e ainda seguem em frente? Eu que fui fraco demais pra enfrentar meus problemas.

_Mesmo assim, me desculpa._ ele falou.

Eu tentei o interromper, mas ele não deixou.

_Me desculpa pelo amigo de merda que eu fui. Eu não sou assim, cara. Eu não odeio gays. Por mim vocês podem fazer o que quiserem. O que eu sempre fiz foi piadas deles porque todo mundo ria e eu gostava de fazer as pessoas rirem. Só que você veio com isso de uma só vez, jogou na minha cara e eu não consegui respirar direito. E você ainda disse muitas palavras feias pra me ferir. Eu fiquei com muita raiva, muita mesmo. Eu queria te odiar. Eu queria te odiar por ter fingindo ser uma pessoa que não era, por mentir pra mim durante um ano.

Eu ouvia tudo aquilo atento. Eram coisa que eu sabia, mas era importante ouvir dele. Mais ainda: era importante que ele se ouvisse falando aquilo em voz alta. Eu percebi que Alice ouvia atenta abraçada em mim.

_Eu não queria gays perto de mim. Eles me incomodam. E de repente eu tinha um cara gay que andou comigo pra cima e pra baixo durante um ano inteiro. Isso foi muito pra mim, eu fiquei pilhado. Mas quando eu parei pra pensar direito, não era um gay do meu lado, era você. Você pode ter mentido quanto à sua vida sexual, mas ainda era você, o meu amigo Bernardo.

Eu sorri com ele falando isso. Eu abri meu braço como um sinal e ele se reencostou em mim. Eu passei o meu braço sobre seu ombro e ele deixou a cabeça descansar na parede atrás de nós. Eu senti os seus músculos se relaxarem.

_Eu ainda não estou pronto pra te ver se agarrando com outro cara_ ele continuou _Mas eu estou aqui agora, saiba disso.

_Eu sei, obrigado. Desculpa pelas coisas que eu te disse. Você é sim um ótimo amigo. Juntos, a gente vai descobrir como lidar com essa nossa nova relação._ respondi sorrindo pra ele.

Alice fungou no meu outro lado.

_E você, mocinha...

Ela não se virou pra mim.

_Você não tem nada do que se desculpar._ falei _Só eu que tenho. Você tem direito a ter uma vida, a ter um namorado, a ter outros amigos além de mim. É até muito saudável. Não tem explicação pro nível de egoísmo que eu atingi quando te disse aquelas coisas horríveis no hospital. Você é minha melhor amiga. Eu sei que você só quer meu bem. Me desculpe por não escutá-la mais vezes.

_Desculpado._ ela respondeu depois de um tempo.

Ficamos ali por um tempo, com Alice e Pedro abraçados a mim, mas sem se tocarem. Se não fosse tudo tão trágico e nós três não estivéssemos com os olhos vermelhos de lágrimas, seria cômico. Aqueles dois eram os meus melhores amigos. Onde eu estava com a cabeça ao tentar machucá-los? Eles eram as melhores pessoas que eu tinha conquistado, eram parte do meu tesouro. Ali, eu senti um vislumbre de paz. Mas para a paz, ainda faltava uma pessoa com quem me entender.

Desviei minha atenção de Pedro e Alice e encarei Rafael. Sua expressão estava mais calma, mas ainda havia raiva nela. Eu me preparei pra começar a falar, mas ele falou primeiro.

_Deixa eu me adiantar._ ele falou com um sorriso fraco e pouco sincero no rosto _Eu te desculpo pelo que você disse no hospital. Você estava ferido e queria nos ferir, é compreensível.

_Obrigado...

_Mas eu não te perdoo por ter tentado se matar.

Ninguém ainda tinha dito aquilo com todas as letras. A minha ficha caiu. Eu tentei me matar! Eu ia sumir, deixar de existir! Eu nunca mais veria meus amigos ou minha família. Eu nunca mais veria Rafael.

_Eu não retiro o que disse. Você é um egoísta de merda. Você não pensou em nenhum de nós._ ele começou a chorar _Você não pensou em mim, porra!

Inevitavelmente, comecei a chorar também. Uma das coisas que mais me feriam no mundo era ver Rafael em dor. Ironicamente, era eu quem mais causava dor nele ultimamente.

_Eu te amo! Você entende isso? Eu te amo! Mas não dá mais, sabe. Eu sempre tive esperança que um dia você acordaria e veria que nós dois nascemos pra ficarmos juntos, mas essa esperança morreu hoje. Você não vai melhorar, Bernardo. Nós nunca vamos ficar juntos.

Ele saiu do quarto sem esperar resposta. E eu fiquei lá, remoendo suas palavras e chorando silenciosamente. Sim, eu sabia que não ficaríamos juntos porque, como disse Carolina, eu não estava nem mesmo tentando. Alice e Pedro me abraçaram em consolo e nós ficamos assim, os três em silêncio naquela cama por muito tempo...

[...]

Depois de tudo aquilo, eu só queria ir embora, mas eu não podia. Se eu fosse, eu deixaria todos preocupados comigo e aí eu estragaria de vez a viagem da turma. Eu fiquei por eles, tentando ser uma pessoa mais divertida do que tinha sido nos últimos dias. Mas, novamente, minha cabeça estava longe.

A morte é uma coisa interessante. A morte por si só pode significar o fim. Mas quase morrer, chegar às beiras da morte, significa renascimento. Foi lhe dado uma nova oportunidade pra fazer tudo diferente.

Eu sempre achei que, se eu viesse a mudar, seria por Rafael, mas não foi. Foi por mim. A partir daquele dia, do dia em que eu renasci, eu passei a ver as coisas diferentes. Eu não era mais imortal. Eu ia morrer e eu não sabia quando. É uma coisa que você já nasce sabendo, mas você nunca para pra pensar, ainda mais quando você não tem mais do que vinte anos de idade. Eu só tenho uma vida, uma oportunidade de fazer as coisas certas. E eu precisava fazer as coisas certas, mas não por Rafael, e sim por mim. Se eu tivesse morrido naquele lago, o que teria sido minha vida? Quem se lembraria de mim e como? Que legado eu deixei? Se me foi dada uma nova oportunidade eu tinha que fazê-la valer a pena.

Às vezes, meus amigos, é preciso descer ao ponto mais fundo do poço pra só então começar a escalá-lo.

Mas como fazer isso? Como começar a fazer as coisas certas? Como fazer a vida valer a pena ser vivida? E de repente eu soube: o que eu precisava era recomeçar. E eu sabia exatamente como.

Na segunda-feira pela manhã, assim que cheguei na faculdade, antes mesmo de ir pra sala, fui bater na sala do Heitor, o coordenador do curso.

_Pois não?_ ele perguntou surpreso.

Eu não sei se a surpresa era por não costumar encontrar alunos esperando ele chegar pela manhã na sala dele ou pela minha cara de quem estava estranhamente excitado.

_Oi, Heitor._ falei tentando manter a voz o mais tranquila possível _Eu gostaria de saber mais sobre o programa de intercâmbio da faculdade.

Era hora de recomeçar a minha vida.

Siga a Casa dos Contos no Instagram!

Este conto recebeu 6 estrelas.
Incentive Contosdolukas a escrever mais dando estrelas.
Cadastre-se gratuitamente ou faça login para prestigiar e incentivar o autor dando estrelas.
Foto de perfil de ContosdolukasContosdolukasContos: 336Seguidores: 70Seguindo: 32Mensagem Jovem escritor! Meu email para contato ou trocar alguma ideia (contosdelukas@gmail.com)

Comentários

Foto de perfil genérica

As lágrimas foram inevitáveis.

0 0
Foto de perfil genérica

Chorei! Dessa vez foi um choro de emoção pela retomada dos laços desses amigos, depois da besteira de Bernardo. Preciso comentar cada capítulo porque é a única forma de segurar minha ansiedade sobre o que ainda estar por vir.

0 0