Bernardo [46] ~ Cicatrizes

Um conto erótico de Bernardo
Categoria: Gay
Contém 2154 palavras
Data: 05/12/2023 15:19:55
Assuntos: Gay, Início, Sexo, Traição

Meu corpo e minha mente estavam cansados de todas aquelas porradas que vieram levando nas últimas semanas. Era muita coisa pra processar. Eu estava esgotado. O nosso organismo tem mecanismos de defesa muito avançados, o que em mim se traduziu num desmaio. Disseram que foi porque eu bati a cabeça na queda da escada, mas não. Era o meu corpo e mente tirando algum tempo para descansar da realidade.

Desde modo, eu não sei como fui socorrido, por quem, o que Pedro disse quando perguntaram sobre a minha queda, ou como cheguei ao hospital. Abri os olhos e já estava escuro. Desta vez eu não estava na enfermaria com outros pacientes, mas num quarto sozinho. Era tudo muito arrumado, mas a quantidade de aparelhos ali não me deixava esquecer que se tratava de um quarto de hospital. Deixei meu peso cair sobre a cama e fechei os olhos novamente. Não estava com sono, apenas queria continuar descansando, fugindo da realidade. Eu não tinha nem mesmo mais vontade chorar. Acho que tinha chorado nos últimos dias mais do que em todos os anos anteriores. Eu estava cansado de levantar todo dia e encarar o mundo. Eu estava cansado de continuar apanhando. Eu queria morrer. Mas eu era muito fraco até para tomar essa medida. Naquele momento, eu era apenas um morto-vivo.

Logo, a enfermeira apareceu. Era a mesma que tinha me atendido no dia anterior.

_Mas você gosta de se machucar, hein, menino?

Eu ri sem graça. Não sabia como responder àquela pergunta. Eu gostava de me machucar?

_Desta vez foi um pouco mais sério._ ela continuou.

E la veio até mim e mexeu na minha cabeça. Só então percebi que havia alguma coisa presa nos meus cabelos. Eu passei a mão e descobri que era um grande curativo.

_Sete pontos. Não é brincadeira._ ela comentou _O médico vai vir falar com você, mas vou adiantar que você vai ficar bem, foi só uma concusão. Não chegou a abrir o osso, mas você parece ter batido a cabeça com força. Por precaução, você vai passar a noite aqui em observação.

Concordei com a cabeça.

_Quem está aqui comigo?_ perguntei.

_Seu pai. Você tem dado alguns novos cabelos brancos para ele essa semana, não?

Eu ri. Ela era bem intencionada e bem humorada.

_Eu quase não dei nenhum em dezenove anos, eu tenho uma cota pra usar._ respondi.

_Certo. Mas da próxima vez, engravide alguém e pare de se machucar.

_Ok._ falei rindo.

Ela se sentou na beirada da cama e me olhou com carinho.

_Precisa que eu chame alguém pra conversar com você?

_Como assim?

_Um psicólogo, ou alguém.

_Meu pai não está me batendo, se é isso que você tá dizendo.

Ela riu com vontade.

_Eu sei. A preocupação no rosto dele deixa isso bem claro. Mas eu já atendi pacientes demais nessa vida pra perceber quando o que está incomodando são só as feridas físicas ou não.

Eu abaixei a cabeça envergonhado. Eu precisava de ajuda, eu sabia, mas eu não sabia como pedir. Não era o momento ainda.

_Não, obrigado._ respondi _Não precisa chamar ninguém. Não agora. Eu preciso me entender comigo primeiro antes de conversar com alguém.

_Você que sabe. Só te lembrando que há profissionais treinados para ajudar.

_Eu sei. Obrigado.

Ela se levantou e foi até a porta.

_Vou falar com seu pai e seus amigos para entrarem.

_Amigos?_ perguntei surpreso.

_Sim, os dois garotos e a garota. Eles pareciam muito preocupados com você.

Suspirei e deixei meu corpo cair no travesseiro novamente. Eu não estava preparado para enfrentá-los agora. Como esperado, meu pai entrou no quarto com Pedro, Alice e Rafael no seu encalço. Meu pai foi o único que se aproximou da cama. Alice e Rafael me olhavam com uma expressão estranha. Só ao pensar nisso lembrei de como meu rosto devia estar horrível com a marca do soco do pai de Tom e o corte no supercílio, sem contar os hematomas no meu braços que apareciam pelas mangas do avental que eu usava. Pedro, ainda mais distante, evitava me olhar e mantinha os olhos abaixados. Eu devia sentir raiva dele, mas não sentia. Mas não sentia pena também. Eu cansei dele. Eu cansei dos seus preconceitos, dos seus julgamentos e cansei de correr atrás da sua amizade.

_O que aconteceu desta vez?_ perguntou meu pai.

Suspirei fundo com a pergunta. Troquei um olhar rápido com Pedro, mas ele desviou rapidamente. Ele estava ali pra enfrentar as consequências do seu ato. Mas eu não ia lhe dar essa oportunidade, eu preferia vê-lo sendo consumido pela culpa silenciosa.

_Eu caí._ falei sem olhar diretamente pro meu pai, ou ele saberia que era mentira. _Não lembro direito. Acho que eu estava correndo e escorreguei na escada.

Só então Pedro permitiu me olhar direito, como se pedisse uma explicação. Não lhe dei atenção e me voltei pro meu pai.

_Você ainda devia estar fraco._ falou meu pai _Você estava com corte bem grande na cabeça, podia ter perdido muito sangue. Ainda bem que o Pedro te achou.

_É.

Pedro ficou inquieto e começou a andar em pequenos círculos pelo quarto, o que me divertiu de um jeito muito cruel.

_Pai, estou com fome. Não comi nada direito desde o café da manhã.

_Certo. O que você quer comer?

_Qualquer coisa que não seja comida de hospital.

_Tem uma padaria aqui do lado, vou lá buscar.

_Obrigado.

_Vocês cuidam dele pra mim?_ perguntou meu pai para os três.

_Claro._ responderam Alice e Rafael.

_Já volto._ e saiu do quarto.

Eu fechei os olhos por alguns segundos e relaxei a cabeça. Alice, Pedro e Rafael me olhavam em silêncio.

_Bê..._ começou Rafael, mas eu o interrompi.

_Você já pode ir agora, Pedro.

Todos me olharam assustados. Os olhos dele brilharam como se estivessem prestes a se encherem de lágrimas.

_Não viu? Eu não contei nada, pode ficar tranquilo._ falei desta vez o encarando _Eu não vou contar que você me empurrou da escada.

Foram alguns instantes pra Rafael e Alice entenderem o que estava acontecendo.

_Você fez o que?!_ gritou Rafael que fez menção de ir pra cima dele, mas Alice o conteve.

_Bernardo, eu..._ começou Pedro já começando a se engasgar com o choro.

_Me diz que isso é mentira._ falou Alice.

Ela olhava para ele com um olhar de profunda desaprovação. Alice podia não admitir, mas ela sentia algo a mais por Pedro. E lá estava ele, provando mais uma vez que não era uma boa pessoa. Isso a atingia. Pedro, ao notar o olhar dela pra ele, começou a chorar de verdade. No momento, ele era a segunda pessoa em pior estado naquele quarto.

_Bernardo, eu não queria._ ele falou de modo desesperado _Você começou a falar aquelas coisa e eu perdi o controle.

_Essa é sua desculpa?_ perguntei _Ok, não está perdoado. Pode sair agora.

_Eu vou te colocar pra fora daqui a chutes!_ falou Rafael com raiva partindo pra cima dele.

_Aproveita pra sair também._ falei.

Ele parou e me olhou sem entender nada. Seu rosto era um misto de raiva e confusão. O meu olhar era o mais frio que podia ser. Eu não sentia nada por ninguém naquele momento.

_E você também, Alice. Vocês três já vieram, provaram ser bons seres humanos ao se preocupar com o próximo, agora podem ir embora. Eu vou sobreviver.

_Bernardo, não seja idiota_ falou Alice vindo pro meu lado na cama _Nós viemos porque nos preocupamos com você. Até mesmo esse idiota.

_Tá, mas agora já podem ir embora. Você tem um namorado agora e ele tem uma namorada. E deve ter alguma piranha por aí pra dar pro Pedro. Tenho certeza que vocês têm coisa melhor pra fazer.

Ela me olhava magoada. Foi a vez de Rafael vir para o outro lado da minha cama.

_Eu sei que a gente anda em falta com você, mas não significa que a gente deixou te amar. A gente sabe que você tem passado por muita coisa ultimamente e...

_Tenho passado por muita coisa?!

Ali eu perdi a calma. Sim, eu estava passando por muita coisa e precisava gritar pra todos. E aqueles três seriam as vítimas do meu desabafo.

_E o que eu tenho passado ultimamente, Rafael, já que está tão informado?!

Ele recuou assustado com minha agressividade, mas respondeu.

_A morte do Eric, o término do nosso namoro...

Eu ri sem graça. Aquela era só a ponta do iceberg. Num impulso levantei da cama. Alice e Rafael se levantaram e recuaram assustados. Pedro olhava atento, ainda chorando. Eles nunca me viram naquele estado. Eu sempre fui calmo. Eu podia até ser meio paranoico e reclamão às vezes, mas eles nunca tinham me visto tendo um ataque de raiva. Aliás, eu acho que eu mesmo numa tinha me visto num ataque de raiva. Só uma amostra no dia que contei pra Pedro que era gay.

_A morte do Eric?! O término do nosso namoro?! Você acha que é só isso que está acontecendo comigo?!

Eu nem sabia mais o que estava fazendo. Eu arranquei num puxão o avental do hospital que usava, ficando só de cueca diante dos três. O que eles viram? O meu corpo muito branco e magro marcado por manchas pretas e roxas. Algumas eram enormes, chegando a ocupar quase a minha coxa inteira. Devia ser uma imagem assustadora. Rafael arregalou os olhos e me fitou com os olhos vidrados. Pedro parou de chorar e encarou aquela imagem assustado também. Alice levou a mão a boca.

_Sabem o Tom, nosso calouro?_ falei com dentes trincados _Pois bem, eu estava saindo com ele. Acontece que o pai dele nos pegou juntos na casa dele. E o que ele fez? Ele me espancou até se cansar, pelo que me pareceu horas de chutes e socos. Sem contar aquelas lindas palavras que ele me dizia enquanto fazia isso.

Os olhos de Alice e Rafael se encheram de lágrimas.

_Oh, Bernardo..._ ela fez menção de me tocar, mas eu me desviei.

_Eu saí de lá e dirigi sangrando e sem ar até a minha casa. E quem encontrei lá? Meu pai! Eu não só fui obrigado a ver meu pai num estado de desespero inédito pra mim, como fui obrigado a contar tudo pra ele!

Eles me olhavam sem ação.

_E depois de assistir ele espancando o pai de Tom, eu tive que escutar como eu era uma pessoa fraca e covarde. Uma decepção, nas palavras dele. E o melhor: ele deixou bem claro que a reação da minha mãe vai ser a pior possível quando ela descobrir. E pra coroar, agora eu tenho um corte na cabeça graças a esse imbecil!_ falei apontando pra Pedro.

Eu percebi que eu estava querendo causar pena neles. Eu queria que doesse neles o que estava doendo em mim. Eu queria que eles sofressem por ter me abandonado. Era o caso de me perguntar: que tipo de pessoa eu tinha me tornado?

Demorou um tempo até eles assimilarem as informações. Eu continuava ofegante de raiva e expondo meu corpo.

_Bernardo,_ começou Alice derramando lágrimas silenciosas _eu sei que nos afastamos nas últimas semanas, mas nós estamos aqui. Nós vamos te ajudar a passar por isso.

_Tarde demais._ falei ressentido _Não quero mais nenhum de vocês por perto. Vão embora.

_Não!_ gritou Rafael.

Ele veio e me segurou pelos ombros. Ele tinha lágrimas nos olhos, mas me olhava com intensidade.

_Eu não vou te abandonar._ ele falou _Eu te amo!

Ele me abraçou. Eu devia me sentir confortado, mas não. O que eu senti foi raiva por ele ter ido embora, por não ter estado lá quando eu precisei dele. Ele namorava agora. Ele não estava comigo mais. Num acesso de raiva, eu o empurrei com força e ele recuou assustado.

_Fora daqui! Vocês três, fora!_ gritei.

_Bernardo..._ Alice veio com cuidado pra cima de mim, mas desviei.

_Fora daqui! Fora daqui! Fora daqui!_ comecei a gritar ensandecido.

Eles me olharam muito assustados. Meus gritos chamaram a atenção e a enfermeira logo invadiu o quarto pra saber o que estava acontecendo. Ao ver aquela cena, deu um jeito de tirar os três do quarto. Eu caí na cama chorando. Eu não chorava de tristeza ou de raiva. Eu chorava de cansaço. Eu estava tão cansando de viver, de lutar. Eu só queria que tudo acabasse.

A enfermeira me deitou na cama e me vestiu o avental de novo enquanto eu chorava. Ela examinou meu ferimento na cabeça pra se certificar que ele não tinha aberto na confusão.

_Vai ficar uma cicatriz._ ela comentou quando eu comecei a me acalmar.

_Uma a mais, uma a menos, que diferença vai fazer?_ respondi com a voz morrendo.

Eu estava cansando de todas aquelas cicatrizes.

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Comentários

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Por isso nem todo mundo pode receber visitas quando não está bem, a pessoa perde a lucidez e começa a falar besteira.

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Pior é que são as cicatrizes na alma. Ninguém é culpado. Bernardo está sofrendo pelas escolhas. E suas escolhas foram feitas pelas suas crenças. Ou melhor, pelos valores e crenças da sua família. Como é perversa a bola de neve construída pela homofobia, pelos preconceitos.

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Nossa, esse foi pesado, o sentimento de estar cansado de tudo é desesperador

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