Bernardo [45] ~ Fundo do poço

Um conto erótico de Bernardo
Categoria: Gay
Contém 2181 palavras
Data: 05/12/2023 15:12:10
Assuntos: Gay, Início, Sexo, Traição

A luz da manhã feria meus olhos. Ainda estava muito cedo, não devia ser mais do que seis ou sete da manhã. Eu não conseguira dormir. Mesmo com todos os analgésicos que havia tomado, eu não consegui pegar no sono. Sim, eles aliviaram minhas dores físicas, mas não havia nada que acalmasse a minha mente.

Tudo o que tinha acontecido no dia anterior passava pela minha cabeça como se fosse um filme. Ao mesmo tempo que parecia distante, como se tivesse acontecido com outra pessoa, a dor que eu sentia me trazia de volta e garantia que tudo tinha acontecido de verdade. Os analgésicos podiam curar as dores do meu corpo, mas cada um daqueles hematomas estava marcado com as palavras daquele homem. Todos os nomes de que ele havia me chamado enquanto me batia, haviam penetrado no meu sangue através dos meus ferimentos e me corroíam como veneno. E não havia antídoto para aquele veneno, pois ele não era químico ou biológico, mas psíquico. Eu fui envenenado ao ponto de realmente acreditar nas palavras dele. Eu sempre vi a minha homossexualidade como um desvio, uma coisa errada, mas eu nunca me odiei por causa disso. Só que a partir daquele dia, eu não era mais apenas um perdido garoto gay, eu era uma bicha imunda e desgraçada. Eu passei a me ver assim. Era quem eu sempre fui, mas não queria ver. Não havia mais lágrimas pra chorar, então aquela confirmação só me trouxe mais angústia. Eu encarava o teto perdido, sem saber o que fazer da vida. Que lugar eu tinha nesse mundo agora? Que direito eu tinha de caminhar entre as outras pessoas? Eu era digno de continuar vivo e convivendo com outros?

E havia meu pai. “Ele te aceitou! Ele entendeu tudo e não reagiu a isso, então está tudo bem.” Sim, mas não era uma surpresa. Eu nunca vi traços homofóbicos no meu pai. Apesar de o assunto nunca ser discutido na minha família, desde pequeno eu observava as pequenas reações dele às notícias ou ao comportamento de gays perto dele. Ele não era a pessoa mais amigável do mundo com gays, mas também não era a pessoa mais amigável do mundo com não-gays. Assim, não me surpreendi com sua reação positiva. O problema sempre foi minha mãe. Ela sim era homofóbica, e já tinha dado provas suficientes para isso. Só que ela era casada com meu pai. O meu pai era muito correto, ele nunca manteria segredo dela sobre uma questão tão importante sobre um dos seus filhos. Assim que ela chegasse de viagem, ela ficaria sabendo e isso era torturante. Era como aguardar pacientemente pela hora da morte num pelotão de fuzilamento. Era contar os segundos para o momento que você mais evitou na vida.

Eu não queria levantar da cama. Eu queria ficar lá pra sempre, ou até que tudo passasse, até que todos esquecessem. Eu não tinha nenhum ânimo para levantar e continuar vivendo. Eu não tinha forças para isso. Dentre tudo o que já me foi dito sobre mim e minha personalidade, nada poderia ter sido mais cruelmente sincero do que a acusação de meu pai que eu era fraco. Eu era! Eu não fui forte o bastante para amar Rafael. Eu não fui forte o bastante para lutar pelas minhas amizades. Eu não fui forte o bastante para ajudar Eric, a despeito do que as pessoas pensariam. Eu não fui forte o bastante para contar para minha família em uma situação melhor do que aquela. Eu não fui forte o bastante para impedir aquele homem de me machucar. E eu não era forte o bastante para me levantar daquela cama e seguir adiante. Eu era fraco, e minha fraqueza era o maior desapontamento que eu poderia dar ao meu pai.

Eu tinha passado a noite em claro, eu precisava ao menos comer. Fiz um esforço extra para conseguir me levantar da cama e ir até a cozinha comer algo. Chegando lá, encontrei meu pai sentado à mesa bebendo seu café e lendo o jornal. Ele ainda estava de pijama, o que estranhei. Eu não queria encará-lo tão cedo assim, mas era muito tarde pra recuar e voltar para o quarto.

_Bom dia._ falei.

_Bom dia._ ele respondeu me olhando, mas eu não tive coragem de olhá-lo de volta.

Em silêncio, eu preparei o meu café da manhã sentindo seu olhar nas minhas costas.

_Como passou a noite?

_Bem._ menti _Não vai trabalhar hoje?

_Não vou te deixar sozinho. Só vou depois que a Celeste chegar.

_Não precisa.

Eu acabei de preparar meu café e fui em direção ao quarto, mas ele empurrou a cadeira ao seu lado com o pé. Ele não estava pedindo, ele estava me mandando sentar. Me sentei e comecei a comer em silêncio.

_Precisamos conversar.

_Agora, não, pai..._ falei tentando adiar ao máximo aquela conversa.

_Agora sim. Esta conversa devia ter acontecido há anos atrás. Se eu tivesse feito isso, você não estaria assim agora.

_Não é sua culpa.

_Tem alguma coisa errada com você, e a culpa é de quem te criou._ respondeu.

Olhei para ele cansado. Ele amoleceu o olhar, mas ainda era firme. Eu não voltaria a vê-lo no estado limite que o tinha visto no dia anterior.

_Eu sempre soube._ ele começou _ Desde que você era pequeno. O jeito como você ficava se policiando, se corrigindo. Você se intimidava com as brincadeiras do seu irmão, e se encolhia quando o assunto vinha à tona.

Olhei para ele surpreso. Eu achava que ele tinha descoberto tudo do dia anterior, que houvesse apenas uma desconfiança. Eu o subestimei. Ele é um advogado muito bom, é treinado em ler pessoas. Mas se ele sabia, será que...

_A mamãe sabe?_ perguntei aflito.

_Não._ nos seus olhos eu pude ver a aflição de saber o que aquilo significava _Se ela desconfiou, nunca me disse. Acho que ela nunca quis ver.

Olhei triste. Aquilo para mim era a confirmação que encarar minha mãe com aquele assunto não seria nada fácil.

_Você conhece a história do tio Aurélio?_ perguntei.

Ela balançou a cabeça afirmativamente em tom triste.

_Como você acha que vai ser?_ perguntei torcendo para eu estar enganado.

_Vai ser difícil. Vem uma tempestade aí.

Eu abaixei a cabeça. Era muita coisa de uma vez.

_Mas eu estou do seu lado._ ele falou ao ver meu estado _Vamos fazer isso juntos.

_Você não precisa.

_Preciso. Eu faltei como pai. Desde o momento que eu percebi, eu devia ter te colocado na minha frente e ter tido uma conversa séria. Eu devia ter pegado a sua mãe e aberto os seus olhos._ ele suspirou _Mas você era muito novo. Eu tive medo que ela quisesse lhe impor algum tipo de “tratamento”. Pensei que seria melhor deixar você crescer antes. Só que você cresceu do jeito errado. Eu tenho uma grande parcela de culpa e agora estamos juntos nessa luta.

Eu sorri desanimado. Se por um lado é bom saber que tem alguém ao seu lado, por outro é torturante saber que por sua causa, seus pais começariam uma guerra. Eu começaria a destruir a minha família.

_Mas não vai ser agora._ ele falou e eu o encarei curioso _Você está passando por muita coisa. Pensaremos numa explicação para seus machucados. Vamos deixar você melhorar primeiro, antes de contarmos para sua mãe, certo?

_Obrigado._ falei sinceramente, num inesperado arrombo de alegria e alívio.

_Mas eu não vou guardar isso por muito tempo. Ela é sua mãe, eu não tenho esse direito.

_Eu sei...

Voltamos a comer em silêncio, antes dele voltar a falar.

_Posso te perguntar uma coisa que está me afligindo?_ ele perguntou.

_Claro.

_Há uns meses atrás, você estava todo alegre e sorridente. Tinha alguém especial em sua vida?

Eu me sorri lembrando de como eu era feliz ao lado de Rafael. Parecia uma memória tão distante.

_Sim...

_Era aquele garoto de ontem?

_Não!_ respondi sacudindo a cabeça _Ele nunca deixaria as coisas chegarem àquele ponto. Era o Rafael.

Ele sorriu discretamente e abaixou a cabeça de volta pro seu café.

_Rafael parece ser um rapaz bacana._ ele falou sem me olhar, mas ainda sorrindo.

_Ele é..._ respondi sorrindo também.

O que Rafael pensaria se soubesse disso? Seu sogro agora sabia dele, não era o que ele sempre quis de mim? Pena que o perdi.

_O que você vai fazer hoje?_ ele me perguntou.

_Não sei...

_Ficar em casa não é uma opção. Não vou deixar você se trancar no quarto pro resto da vida. Você pode até não ir pra faculdade hoje, mas amanhã você vai.

Balancei a cabeça em concordância. Eu não tinha o mínimo ânimo pra ir pra aula, mas meu pai não me deixaria ficar. Eu não estava pronto pra encarar o mundo, eu não tinha força pra isso.

_Eu avisei para o meu grupo que não vou apresentar o seminário, mas tenho que ir lá entregar a parte escrita. Também tenho que lavar meu carro, tem sangue nele.

_Muito bem.

[...]

Quando eu encostei meu carro no prédio da faculdade naquela tarde, tudo o que eu queria era não ser visto por ninguém. Eu escolhi justamente um horário em que não teríamos aula pra diminuir o risco. Entrei rapidamente pra que ninguém me visse e viesse a perguntar sobre meus machucados, fui até a sala do professor e deixei o trabalho com ele. Metade da tarefa estava cumprida. Agora era só sair sem ser visto.

Mas a vida gosta de me pregar peças. Correndo em direção a uma escada secundária do prédio, trombei com um garoto forte. Ao olhar, era Pedro.

_Me desculpe._ me levantei e me virei pra ir embora.

_O que aconteceu com seu rosto?_ ele perguntou me encarando.

_Nada. Tchau.

_Apanhou do seu macho?

Aquilo me subiu o sangue. Eu não estava tendo a melhor semana da minha vida, eu estava me sentindo um lixo, não estava com paciência para Pedro.

_Vai se fuder.

_O que você disse?_ ele falou apertando meu braço com força.

Tentei me soltar, mas ele era mais forte do que eu. Era só o que eu precisava, mais uma surra.

_Eu mandei você ir se fuder. Agora me solta.

Ele me olhou com ódio e me soltou me empurrando.

_Viado.

Foi impossível não me lembrar das palavras do pai de Tom. Eu estava com tanto nojo e raiva de mim mesmo represados dentro de mim. Foi impossível segurar a avalanche que veio. Meus olhos se encheram de lágrimas e Pedro parou por um instante. Mas eu não parei. Eu queria gritar.

_Sou mesmo! Um viado imundo! Olha!

Eu levantei a minha blusa e expus meus hematomas. Não era uma coisa bonita de se ver. Eu era bem branco, então aquelas marcas pretas e roxas pareciam se destacar ainda mais. Pedro ficou paralisado quando viu.

_Vê?! Alguém chegou antes de você, Pedro. Alguém me bateu por eu ser um viado.

Ele não conseguia tirar os olhos daquelas marcas.

_Feliz?! Eu tive o que mereci! Eu encontrei o que sempre estive procurando!

_Quem..._ ele veio com a intenção de tocar no hematoma, mas eu me afastei.

Apesar de seus olhos vidrados, o seu toque parecia significar preocupação. Mas eu não achei que seria isso. Eu tive medo, confesso. Medo que ele fosse terminar o que o pai de Tom começou.

_Não toca em mim!_ falei com raiva _Você não tem nojo de mim? Então, fica longe!

_O que aconteceu?!_ ele veio novamente pra cima de mim, mas novamente me afastei.

_Não encosta em mim!_ gritei, eu estava cego com todos aqueles sentimentos negativos na cabeça _Pode pegar alguma coisa em você, sabe? Porque essa raça imunda da qual eu faço parte pode te contagiar só com o toque.

Ele me olhou ferido. Ele sabia que eu estava zombando do seu jeito de pensar.

_E você não pode ser viado, Pedro._ falei desta vez me aproximando dele _Um rapaz tão bonito, tão viril, tão macho.

Só pra provocá-lo, ainda sem muita noção do que estava fazendo, eu passei a mão sobre seus braços musculosos e os apertei. Por reflexo ou nojo, sei lá, ele me empurrou com força. Vejam bem, seria só um empurrão sem grandes consequências se não houvesse uma escada atrás de mim. Eu recuei com a força do seu empurrão, mas meus pés não conseguiram encontrar nada firme pra se apoiar. Eu caí de costas e bati a cabeça com força num dos degraus. Eu acabei de rolar pelos dois lances de escada que separavam os dois andares. Eu não desmaiei ou senti dor. Eu estava muito assustado com a rapidez com que aquilo aconteceu. Deitado no chão, eu encarava com olhos arregalados a face sem cor e igualmente surpresa de Pedro um andar acima. Ali, deitado no chão, com as dores voltando a tomar conta do meu corpo, com mais uma agressão, eu não pude deixar de pensar que eu finalmente tinha encontrado o fundo do poço.

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Comentários

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Não consigo parar de chorar. Estou sentindo todas as dores do Bernardo. E dói muito. Mas continuemos. Ah! Coisa boa a postura do pai. Toda minha admiração.

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