Bernardo [38] ~ Luto!

Um conto erótico de Bernardo
Categoria: Gay
Contém 2640 palavras
Data: 05/12/2023 13:13:56
Assuntos: Gay, Início, Sexo, Traição

31 de dezembro de 2006

Sozinho no meu quarto na mais completa escuridão, eu assistia da minha janela a cidade amanhecer aos poucos. Todos ainda dormiam lá embaixo. Logo acordariam para o último dia do ano. E como acontece em todo último dia do ano, o clima de renovação tomaria conta das pessoas. De todos, menos de mim. Não havia renovação para mim. O clima para mim era de final da jornada.

Eu passei a noite toda em claro. Pelo telefone, a mãe de Eric só conseguiu falar que ele tinha morrido. Chegando da viagem, eu corri para o apartamento deles.

_O que aconteceu?_ perguntei.

Eu não conseguia acreditar no que tinha acontecido. Era tudo tão surreal! A impressão que tinha era que Eric sairia a qualquer momento do seu quarto e viria me receber só de cueca. Mas esperei por isso em vão.

_Overdose de cocaína._ respondeu o pai dele _A empregada encontrou ele caído aqui na manhã do dia 25.

_Overdose?_ eu perguntei incrédulo _Ele usava cocaína?

O pai dele deu um longo e doloroso suspiro.

_Pelo jeito... Eu esperava que você nos pudesse responder isso, afinal, ele era mais próximo a você.

Uma sombra passou pelos olhos daquele homem quando ele disse aquilo. Por mais ausente que ele tivesse sido, não deve ter sido fácil admitir em voz alta que um completo estranho era tão mais próximo do filho do que ele próprio.

_Não... Eu nunca soube._ e então eu fui lembrando os sinais, juntando os fatos _Nas últimas semanas ele estava mais magro, com olhos mais fundos. Talvez com o comportamento mais agitado. Mas eu nunca poderia imaginar que...

E então, a hipótese de suicídio passou pela minha cabeça, e com ela um novo golpe. Se Eric tivesse feito aquilo de propósito, eu era o principal culpado, pois eu o submeti a uma relação miserável.

_O que a perícia falou?_ perguntei já temendo a resposta.

_A quantidade era muito pouca para suicídio. Foi uma overdose acidental.

Ele pareceu ler a minha mente ao falar aquilo. Ou talvez ele só tivesse se perguntado aquilo também, afinal, ele e a esposa tinham uma parcela de culpa pelo constante estado de tristeza que Eric vivia.

_Só ontem, ao recolhermos as coisas deles, encontramos o celular dele e as suas mensagens. Sinto muito ter demorado tanto, você não pôde estar lá para o enterro dele. Ele parecia realmente gostar muito de você...

Ele olhou para mim intensamente quando falou aquilo. Ele sabia o que eu representava para Eric. Mas não tinha julgamento ou raiva no seu olhar. A hora desses sentimentos já tinha passado. Ele não estava mais aqui.

_Essa foi a cidade que ele escolheu para morar, então achamos que o melhor seria enterrá-lo aqui. Eu vou te passar o cemitério e número da cova para você visitá-lo, se você quiser.

Fiz que sim com a cabeça, meio que funcionando no automático. A minha ficha ainda não havia caído. Eric tinha morrido...

Chegando em casa, contei aos meus pais por alto o que tinha acontecido e, antes que eles fizessem mais perguntas, pedi que me deixassem em paz no meu quarto. Passei a noite chorando silenciosamente ao olhar pela janela. Quando amanheceu, eu consegui dormir um pouco, mas apenas por algumas horas. Foi um sono conturbado e inquieto, não me deu a paz que eu queria. Ao acordar, comi alguma coisa de má vontade e deixei claro que ainda não queria falar sobre aquilo.

Eu tinha tanta coisa para perguntar a ele ainda... E ele tinha tanto o que viver! Eu precisava falar com ele. Vesti a primeira roupa que encontrei e me dirigi ao cemitério. Era um imenso campo gramado com placas cravadas no chão. Não foi difícil encontrar a sua sepultura com o número que o pai dele tinha me dado. A terra ainda estava fofa e revirada no lugar, contrastando com a grama em volta. Na placa, se lia cravado na pedra o seu nome, a data de nascimento e a data da morte.

Acho que só então a minha ficha caiu. Ele estava morto. Se foi. Para sempre. Eu nunca mais o veria.

Certo, eu não amava Eric, mas ele sem dúvidas foi uma pessoa muito importante para mim. Ele deixou a sua marca em mim. Afinal, foi com ele que perdi a virgindade. Ele foi a primeira pessoa que me amou ao me conhecer por completo. E como isso é especial!

Quando uma pessoa morre, não pensaremos nunca na sensação de missão cumprida na Terra. Pensaremos no quanto aquela pessoa ainda tinha para realizar. E era essa a minha maior dor. Eu não amei Eric! Eu tinha que tê-lo amado! Ele merecia! Eu não devia ter escondido ele do mundo, fingindo que não éramos mais do que colegas de sala. Eu não devia ter dado a ele apenas as migalhas que dei. Eu não devia ter fugido toda vez que ele se aproximava de mim. Eu devia ter sido pelo menos um amigo para ele e tentado livrá-lo de toda aquela dor que ele sentia.

Naquele momento, tudo o que eu queria era colocar Eric no meu colo, passar a mão na sua cabeça e dizer que ficaria tudo bem...

Quando a noite começou a cair e eu voltei para casa, eu estava um caco. Eu estava sujo e com fome, mas não tinha vontade de tomar banho ou de comer. Eu só queria alguma coisa para me anestesiar da pior dor que eu poderia sentir naquele momento: a dor do arrependimento. Assim, meus pais não discutiram quando eu disse que não iria na festa de Reveillon na casa dos amigos deles. Eles não podiam imaginar o quanto eu estava destruído por dentro. Para eles, era apenas o choque de perder um colega de faculdade. Então, eles não se importaram em me deixar sozinho na virada do ano. Eles saíram com meus irmãos a tiracolo prometendo voltar quando o dia amanhecesse. Só que eu não queria ficar sozinho! Não naquele momento. Então, eu liguei para as duas únicas pessoas do mundo que poderiam me confortar: Alice e Rafael.

Em não mais do que meia hora, os dois bateram a campainha e entraram no meu apartamento desesperados. No rosto, os dois sustentavam a expressão da incredulidade.

_O que aconteceu?_ perguntou Alice.

_Ele morreu!_ gritei soltando tudo o que estava entalado na minha garganta junto com uma tempestade de lágrimas _Eu deixei que ele se matasse! Eu não o ajudei!

Os dois correram para me abraçar, mas nada conseguia parar o que eu estava sentindo. Os dois estavam muito assustados, nunca tinham me visto naquele estado. Eu costumava ser calmo e centrado, totalmente avesso à ideia de deixarem que me vejam chorar.

_Calma, Bernardo. Conta com calma o que aconteceu._ pediu Rafael.

E, entre lágrimas e soluços, eu contei tudo o que aconteceu. A ficha deles também não caiu. Eles se contentaram a chorar em silêncio ao meu lado, tentando me confortar. No limite do meu campo de visão, vi aquele embrulho encostado na árvore de Natal da minha sala. Eu corri até lá e o agarrei. Alice e Rafael me olharam assustados.

_Sabem o que é isso?!_ perguntei transtornado sacudindo o embrulho na mão _O presente que eu comprei para ele

Os dois mudaram o seu olhar para tristeza. Eu rasguei com fúria o papel do embrulho, revelando o porta-retratos com nossa foto. E nos fitei naquela fotografia. Nós dois estávamos no sofá da casa dele assistindo um filme. Tinha sido uma tarde relaxante depois de uma terrível semana de provas. Ele pegou sua câmera e pediu um foto nossa. Eu concordei com alguma ressalva. Na imagem, eu saí com um sorriso sério e discreto. E ele estava mais do que feliz. Ele estava radiante com aquela migalha de amor. Aquele era um retrato da nossa relação. E era torturante para mim. Eu atirei o porta-retratos na parede com a maior força que consegui encontrar em mim, quebrando-o em mil pedaços, como se aquilo pudesse dissipar um pouco da raiva que eu sentia de mim mesmo. Alice e Rafael pularam com o susto e vieram na minha direção. Um caco de vidro tinha voado até o meu rosto e produzido um pequeno corte.

Rafael me pegou nos braços e perguntou:

_Você já tomou banho? Já comeu?

Respondi que não com a cabeça, abatido.

_Então, vamos tomar um banho, eu te ajudo.

_E eu vou preparar alguma coisa pra gente comer._ completou Alice.

Rafael me guiou até o banheiro do meu quarto com cuidado. Ele me ajudou a tirar a roupa e a entrar no box. Era uma cena tão diferente de quando estávamos juntos e ele entrava no banheiro comigo. Não tinha nenhum romantismo ou erotismo ali. Eu me sentei no chão do box e deixei a água cair sobre mim. Ele, vestido, se ajoelhou do lado de fora e começou a lavar meus cabelos e minhas costas. Depois, me ajudou a secar o corpo e vestir uma roupa confortável. Durante todo esse ritual, nenhum de nós disse uma palavra sequer. Não havia necessidade disso.

Quando voltamos para a sala, Alice acabava de nos preparar um macarrão com molho. Sentamos os três no sofá para comer. Já eram quase dez da noite e me lembrei que aquela era uma noite especial.

_Desculpe ter estragado o Reveillon de vocês._ falei envergonhado.

_Você teria feito o mesmo por nós._ respondeu Alice.

Rafael sorriu em concordância. Eu desejei ter os dois para sempre na minha vida. Eu não podia perdê-los como eu perdi o Eric.

O meu celular começou a tocar e o peguei para ver quem era. Pedro. Só então me lembrei que tinha combinado de ir com ele a uma festa de Reveillon.

_Eu não estou com cabeça para ele._ falei.

_Deixa tocar._ respondeu Alice.

_Ele vai insistir.

Ela suspirou, pegou o celular e atendeu.

_Alô?... Não, é Alice... Sim, Pedro... Não, o Bernardo não pode te atender... Porque não... Ele não está no clima para festa... Não adianta insistir... Ah, Pedro, quer saber? Tchau._ e desligou.

Pedro deve ter ficado puto de raiva. Não chegou a ser surpresa para mim quando a campainha tocou alguns minutos depois.

_É o Pedro._ falou Rafael ao atender o telefone.

Eu e Alice suspiramos juntos. Eu não estava com cabeça para o papo machoalfa-homofóbico de Pedro naquele dia. Ele entrou no apartamento feito um furacão. Ele estava muito bem arrumado, todo vestido de branco e com uma camisa marcando seus braços e seu peito. A primeira pessoa para quem ele olhou foi Alice, que se limitou a cruzar os braços e ir para cozinha. Eu estava de cabeça baixa.

_Nós marcamos de ir na festa juntos, tá lembrado? Tá me trocando por eles?

Pedro sempre teve muito ciúme na minha “amizade” com Rafael. Soma-se a isso a dor que ainda sentia pela rejeição de Alice, a frieza dela ao telefone e a sua imaginação fértil, e consegue-se ter uma ideia do seu estado de espírito. Só então eu levantei a cabeça. Ele se assustou com ao perceber o estado em que eu me encontrava.

_O que aconteceu?_ ele perguntou num tom bem mais brando.

Eu não sabia bem como responder a sua pergunta, mas não me importei quando Rafael lhe respondeu a verdade.

_Eric morreu.

Ele piscou e demorou alguns segundos para digerir a notícia.

_Como isso aconteceu?

_Overdose de cocaína_ continuou Rafael _Ele morreu no dia 25, mas nós só descobrimos hoje.

Alice veio e se sentou ao meu lado. Ela passou o braço sobre os meus ombros e fez um carinho nos meus cabelos. Não sei se aquilo despertou ciúme em Pedro, mas ele se inflamou novamente.

_E o que tem isso? Por que vocês estão assim? Parece que é o Bernardo quem está morrendo!

O encarei com raiva e ele sentiu aquilo e recuou um pouco. Alice não se aguentou:

_Você é idiota? Uma pessoa morreu! Você conhecia, era seu colega de sala!

_E daí? Pessoas morrem todos os dias.

_Cala a boca!

_Olha, não desejo a morte de ninguém. Sinto muito pela família, mas nós não temos nada a ver com aquela bichinha.

Aquilo foi estopim. Foi como se alguma coisa dentro de mim explodisse. Eu já tinha passado o dia inteiro represando a raiva de mim mesmo que eu estava sentindo, e aí chega Pedro e fala aquilo. Foi como gota d’água que faz o copo transbordar. Me levantei num só pulo e o encarei com os olhos inflamados. Ele recuou assustado, mas eu não. Rafael tentou me segurar, mas me desvencilhei dele. Naquele momento, não me importei com nada.

_Ele não era um bichinha. Ele era um cara maravilhoso que sofreu mais do que alguém é capaz de suportar de sofrimento na vida. E ele me amava!

_Bernardo..._ pediu Alice, mas não lhe dei atenção.

Pedro me olhava confuso. Ele certamente nunca tinha me visto naquele estado. Eu falava com sangue nos olhos e dentes cerrados, imprimindo raiva em cada sílaba.

_Por meses eu escutei Alice e Rafael dizerem “Pedro é um idiota” e eu dizia que não, que você não era._ eu ri sem graça _Mas você é, você é um idiota!

Seus olhos começaram a brilhar como se lágrimas estivessem prestes a se formarem. Mas eu não liguei. Eu estava com raiva.

_Idiota e burro! Meu Deus!_ dei uma gargalhada raivosa _Você é muito burro! Como você conseguiu passar meses ao meu lado sem desconfiar que eu era gay?!

Os olhos dele se arregalaram como eu nunca tinha visto alguém fazer. Atrás de mim, ouvi Alice e Rafael prenderem a respiração.

_Eu me despedia de você na faculdade e meia hora depois estava na cama com Eric! Percebe como você é burro? Eu me encontrava com ele nos banheiros do prédio, a poucos metros de você, e você nunca desconfiava. Nós nos olhávamos e você nem via! E quando você bateu no pobre do João no dia da nossa calourada?_ voltei a gargalhar maldosamente _Ele não me levou para lá obrigado, Pedro. Eu quis! Eu lhe dei o primeiro beijo. E aquelas meninas todas que eu pegava na sua frente? Tudo mentira!

Ele ouvia tudo com uma expressão de incredulidade.

_E a cereja do bolo: eu namorei com Rafael durante seis meses! Percebe o tamanho da sua burrice? Nós saíamos juntos como se fosse um programa de casais e você nem percebia! Nós corríamos e nos beijávamos escondidos a poucos passos de distância de você. E você morria de ciúme dele! Você nem imaginava! Você é muito burro, Pedro!_ completei rindo.

Ninguém disse nada por alguns segundos. A expressão de Pedro era um misto de surpresa, dor e nojo.

_Você é..._ ele começou, mas não o deixei continuar.

_Sim, eu sou uma BICHINHA!_ gritei _E você é uma pessoa horrível. Um pobre coitado que só sabe destilar suas frases de machismo e homofobia esperando que os outros riam delas. Você é um pobre coitado. Eu devia ter me afastado de você há muito tempo, como me recomendarem, pois evitaria eu ter que ouvir você mal dizer um morto simplesmente porque ele era gay. Quer saber do que mais? Você não é mais bem vindo aqui. FORA DA MINHA CASA!_ gritei com toda a força dos meus pulmões.

Ele não disse nada, apenas se virou e saiu. Eu também não disse mais nada. Eu não queria nem mesmo pensar nas consequências no que eu tinha feito. Eu apenas não aguentava mais. Caminhei até a varanda que havia na sala, me sentei no chão e fiquei observando a cidade. Não demorou muito, Alice e Rafael se juntaram a mim. E assim passamos a virada do ano de 2006 para 2007, calados e sentados juntos observando a cidade.

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Comentários

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Finalmente Bernardo falou a verdade na cara de Pedro, já era hora

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Muita dor!

Lucas, lembre-me por favor: esse conto é baseado numa história real? Fiquei tão abalado que não lembro.

A morte de Eric mexeu muito comigo. Não me conformo com a ausência desses pais.

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