Bernardo [30] ~ Brigas em família

Um conto erótico de Bernardo
Categoria: Gay
Contém 2769 palavras
Data: 05/12/2023 09:53:05
Assuntos: Gay, Início, Sexo, Traição

_Tem certeza que não quer falar com Alice antes?_ perguntou Rafael ao telefone.

_Sim, já falamos tudo o que tínhamos pra falar um pro outro na última vez.

_Vocês são melhores que isso. Não vai nem me contar o motivo da briga?

_Não tem motivo, apenas falamos pro outro aquilo que estávamos guardando há muito tempo. Agora a gente precisa de um tempo para absorver tudo.

Ele suspirou ao telefone em sinal de cansaço.

_E Pedro?

_Continua se fazendo de forte. Disse que ia pra uma balada hoje comer a primeira que topasse.

_Cada um lida com a dor de um jeito.

_Suponho que sim.

A voz dele voltou a ficar doce ao telefone.

_Vou ficar com saudade...

_São só alguns dias, Rafa, daqui a pouco eu estou de volta.

_Mas Porto Alegre é muito longe!

_Já parou pra pensar que meus avós também tem saudade de mim? Preciso visitá-los de vez em quando.

_Me liga, viu?

_Ligo sim.

_Te amo.

_Também te amo, Rafa.

E desligamos. Nunca achei que fosse do tipo que ficaria meloso ao namorar, mas parece que o amor nos deixa mesmo bobos, afinal.

Tudo o que Alice tinha me falado ainda rondava minha cabeça. Era até bom ter uns dias longe de todos para por meus pensamentos em ordem. Vinha acontecendo tanta coisa comigo ultimamente, que eu mal tinha tempo para assimilar tudo.

Como todo ano, eu viajava com minha família para Porto Alegre todo final do mês de julho para visitar meus avós maternos.

Ao contrário da minha família paterna, que sempre foi mais humilde e carinhosa, a família da minha mãe sempre foi mais séria e dura. Isso é bastante explicado pelos meus avós. Vovô era um ex-militar de média patente aposentado. Nunca o vi sorrir e falava usando o mesmo tom com o qual tratava seus subordinados. Por conta disso, a sua casa era muito disciplinada e desvios não eram aceitos. Minha avó era uma mulher amarga, se formos analisar mais a fundo. Foi criada para ser uma dona de casa e foi isso o que se tornou. Na minha visão, quando ela percebeu que ela podia ser mais da vida do que mãe e esposa, já era tarde demais para deixar tudo para trás. Então, ficou presa àquele homem e a seus filhos, num ressentimento mudo que talvez nem se desse conta.

E dentro desse lar que foi moldada uma pessoa como minha mãe. Ouso a dizer que foi isso que a levou para a medicina, uma profissão extremamente rígida e disciplinada. Ao mesmo tempo, que ela sufocava os filhos com o carinho que não ganhou dos pais, ela tinha um respeito imenso pelo seu modo de vida, seguindo à risca o seu conservadorismo.

É o tipo de coisa que só se percebi quando pude analisá-los já depois de alguns anos. No auge dos meus dezoito anos, a sua frieza era apenas o seu modo de ser.

As visitas a eles se resumiam a isso: refeições silenciosas à mesa (nas quais nem minha irmã tinha coragem de encostar no celular), minha avó nos empurrando guloseimas como se para nos forçar a imagem de avó perfeita, alguns passeios pela cidade com meus irmãos e trancados nos quartos pelo resto do tempo em que estivéssemos ali. Sim, era tudo muito tedioso, mas estava fora de questão nos livrar daquilo. A visita anual aos pais era o ritual da mamãe, e ninguém era capaz de contrariá-la. Mesmo o meu pai, que claramente odiava tudo aquilo mais do que eu e meus irmãos, se calava. Quando estávamos dentro daquele casarão, só o silêncio e a obediência tinham lugar, como se nos lembrasse permanentemente do meu avô, mesmo quando ele não estava no mesmo cômodos do que nós.

Estou contando tudo isso, para conseguir explicar de onde vinha tanto medo de sair do armário.

Passando pelo elegante aparador da sala de visitar dos meus avós, peguei um dos porta-retratos e analisei com cuidado aquela foto. Nela, meus avós posavam num festejo militar no começo da ditadura com minha mãe e seus três irmãos mais velhos. Vovô vestia um traje militar completo, tinha a postura alinhada e a expressão séria, nada condizente com um foto de família. Minha avó vestia um vestido simples e um sorriso fraco, traído pela profunda tristeza que havia em seu olhar. Meus dois tios mais velhos era cópias menores do meu avô, com sua postura reta e o rosto sério. Minha mãe era a única que ria, com não mais de cinco ou seis anos de idade e um sorriso desdentado emoldurado por seus cachos dourados. Mas o que sempre me chamava a atenção naquela imagem era a sexta figura daquela família. Um menino magro aparentando em torno de dez anos, com os ombros encolhidos e uma expressão amedrontada. Eu acho que me via naquele menino, por isso ele me chamava atenção. Era o único tio que eu nunca tinha conhecido, os outros eu reconhecia facilmente na foto.

Quando eu era criança, cheguei a pergunta ao meu avô:

_Quem é esse, vovô?

Uma sombra passou pelos seus olhos, o que aumentou o medo que sempre senti dele. Ele rapidamente tomou o porta-retratos da minha mão e o colocou de volta no lugar.

_Seu tio Aurélio. Está morto.

E foi toda a informação que tive. Aquilo permaneceu na minha cabeça por um bom tempo. Se para uma criança os mistérios que cercam a morte já são assustadores, some-se a isso aquela imagem do menino desajustado e a identificação (inconsciente) que eu tinha com ele, e o resultado é uma noite em claro.

Quando contei ao meu pai o que estava me amedrontando, ele coçou a cabeça, claramente despreparado para aquela pergunta, suspirou e respondeu:

_Bernardo, existem várias formas de morte. Seu tio não está fisicamente morto. “Estar morto” pode ser uma forma de falar. Quer dizer que ele não convive mais com a família.

_Mas por que?

_Porque ele mora em outro país muito distante daqui.

_Mas por que?

_Um dia, quando você for mais velho, sua mãe te conta._ falou para encerrar a discussão.

Uma resposta destas não satisfaz uma criança, e é claro que aquela história ficou na minha cabeça durante muito tempo. Mas eu não perguntava nada, porque todos ficavam visivelmente incomodados com o assunto. Até o dia em que eu já tinha por volta de, estava ajudando minha mãe a arrumar seu armário e uma foto caiu. Nela, ela posava com seu irmão imediatamente mais velho, o tal Aurélio. Ele estava mais velho do que na foto que eu conhecia, talvez com seus, anos, mas ainda mantinha os ombros caídos, o olhar amedrontado, e um sorriso triste, totalmente oposto à minha mãe. Me lembrei das questões sobre ele que me rondavam à cabeça e perguntei a minha mãe quem era, como se não soubesse.

_Quem é esse, mãe?

Ela olhou para foto e vi uma expressão triste se formar no seu rosto. Ela pegou a foto, a olhou por alguns instantes e tornou a guardá-la de onde tinha caído.

_É meu irmão, Aurélio. Você não chegou a conhecer.

_O que aconteceu com ele?

Ela suspirou fundo. Se sentou na cama e bateu nela como um sinal que eu me sentasse junto a ela.

_Você já está grande, é hora de saber algumas coisas sobre a vida.

Ela pareceu juntar força para alguns segundos antes de começar a história.

_O seu tio Aurélio sempre foi diferente de mim e dos seus tios. Ele não gostava das mesmas coisas que a gente, não pensava como a gente, não se parecia com a gente. Era como se ele fosse de uma família diferente. Mas eu o amava muito. Amava até mais do que amava seus outros tios, porque eles eram bem mais velhos que eu e eles nunca fomos muito próximos. Ele parecia sofrer muito com a vida que levávamos dentro de casa, mas seguia as ordens do seu avô sem reclamar, como todos nós. Nas nossas conversas, ele sempre dizia “eu quero crescer e sair daqui, sair de Porto Alegre e conhecer o mundo”. Até que tudo mudou. Foi um pouco depois de essa foto ser tirada. Aurélio tinha XVI anos e arranjou um novo amigo: Marcos. Ele nunca foi de muitos amigos, e de repente começou a andar pra cima e para baixo com esse tal Marcos. Eu me senti traída de perder meu melhor amigo, e me afastei dele de vez. O seu avô viu que tinha algo de errado com aquele garoto.

Sua expressão ficou mais grave. Eu percebi que o tom tinha mudado. Ela começou a falar do seu irmão com uma tristeza nostálgica na voz, mas então passou para o ressentimento. Naquela época, eu já tinha consciência que era diferente dos outros garotos, e que eles me atraíam mais do que as meninas. Por causa disso, senti meu estômago se revirar ao prever para onde aquela história estava caminhando.

_Então começou a época das brigas. Seus tios já eram maiores de idade e tinham se mudado para estudar em São Paulo. Eu não tinha ninguém para me proteger dos gritos entre meus pais e Aurélio. Era assustador, sabe? Nenhum de nós nunca tinha levantando a voz para nossos pais, e de repente eu via Aurélio brigar com eles energicamente. E tudo por causa daquele Marcos._ tinha um tom de nojo em sua voz quando falava o nome dele _Meu pai só queria alertar Aurélio pro mal que aquele garoto fazia a ele, entende? Mas seu tio não entendia. Ele estava enfeitiçado por aquele garoto. Foram meses de brigas. Do meu quarto eu escutava o som do cinto de couro do meu pai cortar a pele do meu irmão. Seu choro e seus gritos abafados no travesseiro me assombravam nos meus pesadelos.

Eu já estava muito arrependido de ter perguntado sobre aquela história. Eu estava passando mal. Eu não queria saber como aquilo terminava. Aquele garoto era eu! Eu via isso claramente agora, e eu estava sentindo a sua dor.

_Até que chegou o grande dia._ a voz da minha mãe já era um misto de raiva e nojo _Seu tio já tinha XVII anos e estava em mais uma das brigas com seu avô. Sua avó assistia do sofá sem forças para se intrometer. Eu também assistia aquilo tudo, com o medo que não perdi com o caráter rotineiro daquelas brigas. A campainha tocou e era o tal Marcos. “Você não vai sair com esse viado!” falou seu avô, “vou sim!” respondeu seu tio, “enquanto você viver sobre meu teto, você vai seguir minhas ordens!”, meu pai rebateu. E sabe o que Aurélio respondeu? “Você não entende? Eu amo o Marcos!”. Amor? Onde já se viu? Entre dois homens? Seu tio estava cego. Ele não estava raciocinando direito, era aquele Marcos mexendo com sua cabeça. Seu avô então lhe deu um soco, e depois outro, e depois outro... Sua avó fechou os olhos e me tirou dali. Mas não a tempo de eu ver meu pai esmurrar meu irmão.

Lágrimas caiam do rosto da minha mãe. Eu queria confortá-la, mas estava assustado demais para fazer qualquer coisa.

_Meu irmão desapareceu. Quando perguntei, me disseram que ele tinha ido morar com nosso tio em Recife. Todas as suas coisas tinham sumido do seu quarto. E eu não voltei a vê-lo até dois anos depois. Ele apareceu em casa para o natal e já tinha quase vinte anos. Eu o abracei o quanto o revi, mas era um estranho para mim, não era mais meu irmão. Era o início dos anos 70. Ele se usava uma farta barba, jeans velho e uma camiseta surrada. Como um daqueles terroristas de quem meu pai tanto falava que não conseguiam ver como os presidentes militares tinham colocado o Brasil no eixo. Mais do que tudo, o que mais me impressionou nele foi seu olhar. Não tinha mais o medo que eu cresci vendo. O que eu via neles agora era só raiva e um atrevimento, como se ele fosse muito maior que todos nós. Ali eu percebi que ele odiava a todos nessa casa. Então, passei a odiá-lo também.

Ela já não falava para mim, e sim para si mesma, com os olhos mirando o infinito. Ela estava revisitando uma memória guardada há muito tempo.

_A ceia de natal foi só apenas uma atualização das brigas que vi nos anos anteriores. A diferença era que agora ele estava mais dono de si, meu pai tinha perdido completamente o controle sobre ele. As palavras “viado”, “bicha” e “degenerado” foram usadas várias vezes. Por fim, ele se levantou e se declarou gay. O seu avô levantou a mão para bater nele, mas seu tio levantou o punho também. Foi um horror! Aquilo era o fim da nossa família. O meu pai então apontou o dedo para a porta e mandou que ele saísse e nunca mais voltasse, porque não fazia mais parte daquela família. E o que ele respondeu? “Com prazer! E já vou tarde!”, e saiu, mas não sem antes lançar um olhar de desprezo sobre todos nós e gritar que ia procurar o tal Marcos. Seu avô riu, numa das únicas vezes que o vi rir, e disse “boa sorte”. E nunca mais o vi. A última notícia que tive, que um amigo em comum em Porto Alegre me deu é de que ele vivia na Alemanha desde o final dos anos 70. Fim da história.

Ela então pareceu despertar de suas próprias lembranças e virou para mim:

_Vê, Bernardo? Uma fruta estragada estraga a cesta inteira. O seu tio destruiu a nossa família com sua doença. O meu pai nunca foi o mesmo, minha mãe chorou escondida por meses, as fotos de famílias ficaram para sempre com um buraco.

Ela suspirou, olhou em volta e se virou para mim com um sorriso cansado:

_Que tal a gente fazer uma pausa, hein? Vou preparar um lanche para a gente._ falou saindo do quarto.

Eu estava aterrorizado com aquela história. Desejava nunca tê-la ouvido. Mas eu tinha que fazer uma última pergunta. Estava me corroendo:

_Mãe, o que aconteceu com o tal Marcos?

Ela se virou com um olhar frio já na porta do quarto.

_Quando eu me tornei médica, fiz um juramento sobre a importância de salvar uma vida, não importasse de quem. Hoje, eu sei que há vidas que não merecem ser salvas. Seu avô fez o que achou ser necessário para sumir com o homem que destruiu nossa família.

E saiu do quarto, deixando aquela última informação queimando como veneno o meu corpo. Eu era como Aurélio, eu era como Marcos. Eu não queria destruir minha família. Eu não queria que eles passassem a me olhar com outros olhos. Eu não queria ter que fugir para um país estrangeiro. Eu não queria que ser encontrado morto numa rua escura, ou, provavelmente como aconteceu a Marcos, ter meu corpo jogado no mar na calada da noite, destinado a nunca ter paz, mesmo após a morte.

Foi ali, aos XIII anos, que decidi que nunca descobririam sobre mim. Eu nunca teria o mesmo fim deles. E era isso que aquela casa em Porto Alegre me lembrava. Era a representação física da prisão que eu criei para mim mesmo. Em cada canto que eu olhava eu via meu avô socando meu tio. Eu olhava para o quarto onde meu irmão dormia, e via meu avô açoitando o próprio filho. Aquela casa era o reino do silêncio e da dor de uma família destruída.

Dei uma última olhada na foto em família que ainda segurava e voltei a pousá-la no seu lugar, mas não sem antes dar uma última olhada em Aurélio. O medo e a tristeza que ele carregava no olhar eu também via no meu. Eu me perguntava se minha mãe também já tinha notado a semelhança.

Era por isso que aquelas visitas a Porto Alegre me faziam tão mal. Era como se mãe me mostrasse: “olha o que aconteceu aqui, você não quer o mesmo para nossa família, não é?”. Durante os dias que fiquei ali, não liguei para Rafael como tinha prometido, apenas mandei mensagens para dizer que estava vivo. Ele era uma lembrança de como tudo estava prestes a desmoronar na minha vida.

Hoje, analisando, eu acho que sofria mais por saber que eu não podia continuar com aquele joguinho por muito tempo. Eu não conseguiria continuar equilibrando as expectativas de Rafael numa mão e a imagem que minha família tinha de mim na outra. Aquele malabarismo estava com os dias contados e, quando acontecesse, eu mudaria a minha família para sempre.

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Comentários

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Entendi melhor o Bernardo agora, realmente, em uma casa que concordam com o golpe de 64 e já tem histórico de homofobia, não tem como acreditar que se assumir é uma coisa boa. Sinto muito por ele.

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Acho que você não é tão cachorro. Tá mais pra rebelde COM causa. Tamo juntos!

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Que horror! Um avô homofóbico milico assassino. Uma mãe médica que acredita que algumas vidas não são importantes. Dá pra entender o porquê do Bernardo não ter coragem de sair do armário.

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Caramba, agora toda a barreira do Bernardo começa a realmente fazer sentido, ele já sabia de antemão que sua mãe repudiava oq ele era, já sabia qual seria a reação dela...

Pelo menos ta explicado o pq de tnto medo dele se assumir.

Enfim, uma pergunta respondida, faltam 314 kkkkkkkk

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