Contratados: A Rendição - Capítulo 13

Um conto erótico de M.K. Mander
Categoria: Gay
Contém 10585 palavras
Data: 11/10/2023 22:47:53

CAPÍTULO 13

*** MARCOS VALENTE***

— Oi, Marcos! — Isabella me saúda quando chego em casa. É o primeiro dia depois da lua de mel e eu franzo o cenho ao encontrá-la sozinha na cozinha, sentada em uma das banquetas, com os braços sobre o balcão, o rosto e parte das roupas sujos por algo que se parece muito com farinha, enquanto mexe em uma massa molenga e colorida.

Vestindo um short e uma camiseta simples, ela sorri para mim enquanto suas mãos mexem e remexem a gosma sem parar. Não sou capaz de evitar o estranhamento em minha expressão e

Isabella ri.

— É slime, Marcos! — Balanço a cabeça, concordando, mesmo que sua explicação não tenha feito nada para ajudar na minha confusão. Que diabos é slime? E por que parece tão nojento?

Passo os olhos pelo cômodo, procurando Anthony. Não porque quero vê-lo, digo para mim mesmo, mas porque Isabella está sozinha, sem supervisão, o que é estranho. Pelo menos, é a primeira vez que vejo isso acontecer.

— Oi, Bella... Slime... Hum... Entendi... — minto, — E pra que serve?

— Pra amassar! — É a minha vez de rir. Claramente, Isabela ainda não entende o conceito de propósito, porque amassar, com certeza, não é uma utilidade. Sem dúvida alguma, entendendo errado minha reação, ela sorri também.

— Cadê seu pai?

— Ele foi ao banheiro, ficou com vontade de fazer o número dois! — cochicha. Minha primeira reação é erguer as sobrancelhas, mas, logo em seguida, gargalho. Definitivamente, eu já tinha imaginado Anthony em todas as posições possíveis, menos sentado no vaso. Aproximo-me de Isabella e deixo um beijo em sua testa.

É a segunda vez que faço isso, mas a primeira pareceu tão certa, que não evito repetir.

— Você quer brincar de amassar comigo? O papai e eu estamos fazendo! Podemos comer também! — explica animada e me esforço de verdade para que o nojo que sinto ao imaginar colocar aquilo na boca não tome conta de todo o meu rosto, mas falho, porque Isabella volta a gargalhar, — É gostoso! Prova! — Estica a gosma como se fosse um chiclete infinito até que um pedaço finalmente se solte e o oferece para mim.

Abro a boca, procurando o que dizer, mas não faço ideia de como dizer para uma criança que não quero comer uma gosma nojenta sem dizer exatamente essas palavras, então a fecho sem dizer nada. Isabella me observa ansiosa, ainda com a mãozinha esticada, e eu a ela, totalmente sem ideia do que fazer. Os segundos vão passando e seu rosto vai ganhando uma expressão desapontada.

As sobrancelhas se unem, a boca forma um bico, e até mesmo os olhos parecem perder um pouco do brilho. Oh, merda! Por que eu simplesmente não passei direto? Procuro pela cozinha quaisquer pistas dos ingredientes da bendita gosma, mas não há nada. O que quer que elas tenham usado, já foi guardado ou descartado. Quando estico a mão para alcançar a de Isabella, peço aos anjos que não me deixem vomitar.

A sensação da gosma em meus dedos é ainda pior do que eu imaginei que seria. É molengo, grudento e, ao mesmo tempo, liso e escorregadio. Impossível de entender. A cena parece se desenrolar em câmera lenta enquanto minha mão avança para minha própria boca.

Bella tem os olhos levemente arregalados por uma expressão de expectativa em seu rosto, e, quando não há mais saída, finalmente coloco a coisa na boca com um plano simples: apenas engolir, sem sequer dar chance às minhas papilas gustativas de fazerem seu trabalho. No entanto, alguma parte da minha língua raspa na meleca e eu franzo o cenho.

Deixo que a coisa nojenta se assente em minha boca e ergo as sobrancelhas, surpreso. Tem gosto de bala e de marshmallow. Bochecho, sentindo a textura. Não é das melhores. É como marshmallow derretido. Nunca gostei dessa textura, mas o sabor é bom, um pouco oleoso, é verdade, e, definitivamente, doce demais, mas não é a morte do meu paladar, com certeza!

— Gostou, Marcos? Quer mais? — Isabella pergunta já esticando mais uma tira do seu brinquedo/lanche e eu me apresso em responder.

— Gostei, Bella! Mas não quero mais não, obrigado! A gente precisa deixar um pouco pra seu pai! — Soo um pouco desesperado, mas graças a Deus isso passa despercebido à ela que inclina a cabeça, parecendo ponderar minhas palavras e, por fim, concorda.

— É verdade, Marcos! É verdade! — para os movimentos, abre a boca e arregala novamente os olhos, — Já sei! Você pode me ajudar a pintar? As cores tão ali, —aponta para uma série de vidrinhos coloridos, — Mas o papai disse que eu não podia pintar sozinha... Eu já acabei esse pedaço. — Olho outra vez para o balcão, agora, com mais atenção. Percebo que há um recipiente com uma quantidade imensa da gosma, só que branca, e Isabella tem apenas uma pequena parte em suas mãos, já cor de rosa.

Penso por um instante, procurando uma maneira de dizer que não sem magoar a criança. Mordo o lábio inferior quando nenhuma ideia me vem à cabeça e, por fim, decido dar a desculpa que imagino ser mais compreensível.

— Não posso, Bella... Eu preciso trabalhar. — Sua cabeça é levemente inclinada e suas sobrancelhas se unem.

— Mas você não acabou de chegar do trabalho?

— Às vezes os adultos trazem trabalho pra casa... — surpreendendo-me, porque não achei que isso fosse possível em uma pessoa tão pequena, seu cenho se torna ainda mais franzido.

— Mas então a casa também vira o trabalho? — Deus, ela não podia só dizer que tudo bem e desistir?

— Às vezes, só às vezes, Bella...

— Ser adulto deve ser muito chato! Por que você não volta a ser criança, Marcos?

— Eu queria, Bella, mas ainda não inventaram um jeito... — Balança a cabeça e, seriamente, me responde.

— Quando eu crescer, eu vou ficar muito esperta e vou inventar um jeito! — Sorrio.

— Eu vou esperar, então!

— Tá bom! — responde e volta a mexer em sua massinha molenga, mas sem desviar os olhos de mim. Outra vez, mordo o lábio, e mesmo com uma sensação que depõe contra as minhas ações, recolho minha pasta, meu paletó e me despeço.

— Tchau, Bella...

— Tchau, Marcos... — Seus olhos de mantém fixos em mim. É quase como se eles pudessem ver através da minha mentira e me acusassem. O que vocês esperam que eu faça? Tenho vontade de lhes perguntar, mas também sei que isso é, puramente, coisa da minha cabeça. Isabella é uma criança que não faz ideia de que eu estou mentindo para ela.

Mas eu sei.

E por que eu me importo? Eu não deveria me importar, deveria? Então por que a cada passo na direção das escadas a sensação de peso no estômago se torna maior e tão incômoda a ponto de fazer com que eu interrompa minha caminhada? Olho para trás e Isabella já não me acompanha mais.

De costas para mim, é provável que nem mesmo se importe com a minha ausência. Ela já superou. Então, por que caralhos eu estou tão incomodado? Que senso de honestidade despropositado é esse para com uma criança?

Esfrego as mãos no rosto e deixo que a cabeça pese para trás.

Eu não acredito nisso!

Me viro, voltando para a cozinha e ao ouvir minha aproximação, o corpo infantil se vira na minha direção. O sorriso em seu rosto é tão natural que me faz entender a razão de ter voltado. Quer dizer, quem em sã consciência não faria o que estivesse ao seu alcance para fazer essa menina sorrir?

— Esqueceu de beber água, Marcos? — É a minha vez de sorrir.

— Não, Bella... Eu me lembrei que, na verdade, eu não preciso trabalhar agora, então eu posso te ajudar a pintar a massinha... — Sua boca forma um pequeno “O”, surpreso, pouco antes de voltar a se esticar em um sorriso, um ainda maior do que o anterior.

— Jura?

— Juro!

— Obaaaaaa! — Bate palmas, animada, e, de repente, qualquer dúvida que eu tinha sobre estar ou não fazendo a coisa certa, é eliminada.

Volto a deixar paletó e pasta sobre uma das banquetas, dobro as mangas da camisa até os cotovelos e me viro para a criança.

— Ok, chefe Bella, o que eu preciso fazer? — ri uma risada gostosa, espontânea e eu pisco para ela.

— Primeiro, tem que lavar as mãos, Marcos!

— Ok! Lavar as mãos! — repito, já indo até a pia da cozinha. Depois de concluir minha primeira tarefa, me volto outra vez para a menina que parece muito satisfeita com o papel que lhe atribuí.

— Agora, tem que escolher uma cor. Que cor você quer, Marcos?

— Hum... — Olho para ela, os cabelos loiros se destacam entre a infinidade cor de rosa que são suas roupas. —Amarelo?

— Sim! Amarelo igual ao sol! Vamos fazer um sol de slime! — rio, porque isso me parece estranhamente coerente, já que a tal slime nada mais é que uma poça de gosma, e, bem, o sol é quente... Ah, que seja, eu estou ficando louco.

Pego o vidrinho de corante amarelo entre os demais e caminho até a bancada, me posicionando do lado oposto ao que Isabella está sentada.

— E agora?

— Agora tem que espalhar açúcar aqui em cima. — aponta para a bancada entre nós. Concordo com a cabeça, me viro, abro o armário e alcanço o vidro de açúcar, mas Isabella me repreende.

— Não, Marcos! Esse não! Aquele! — Aponta para um recipiente cor de rosa, estampado de bolos, que eu nunca vi em minha casa antes. Passo quase um minuto inteiro olhando para ele e tentando entender porque não me sinto nem mesmo minimamente incomodado com sua presença, mas não chego a qualquer conclusão.

Sacudo a cabeça e estico o braço para alcançá-lo. Ao abrir o pote, encontro uma colher medidora dentro, usando-a, despejo o pó fino sobre a bancada e entendo que é, provavelmente, isso o que Isabella tem no rosto e nas roupas. Ela, imediatamente, usa as mãozinhas pequenas para espalhar a farinha doce sobre a bancada até que ela esteja quase completamente tomada, eu apenas observo.

— Ok, chefe Bella. E agora? — seu risinho infantil soa em meus ouvidos outra vez, me dizendo que ela está gostando muito dessa situação, no mínimo, esdrúxula. E, como se atraídas pelo adjetivo, a imagem de dois homens se desenha em minha cabeça. O primeiro deles, meu pai, ele está sorridente, satisfeito, o que é preocupante, já que ele e eu temos ideias bem diferentes de como é que meu casamento vai funcionar.

Se ele está satisfeito, eu, provavelmente, estou fazendo alguma coisa errada. O segundo é João Pedro. Em seu rosto também há um sorriso. Mas não é de satisfação, é de deboche. Eu posso entender o porquê. Afinal, estou espalhando açúcar sobre uma bancada e prestes a enfiar minha mão em um pote cheio de gosma sem propósito algum. Apenas para agradar uma criança com quem minhas interações não deveriam passar de cumprimentos objetivos.

Eu também riria da situação, se não fosse eu a vivenciá-la.

— Agora você pega um pouco de slime sem pintar no pote... — Obedecendo, retiro a tampa e ergo a mão. Não contenho a careta de desagrado conforme a aproximo na nuvem branca e gosmenta. Minha mão a toca, Deus! Isso é horrível!

— Puta que pariu! — xingo baixinho e só me dou conta disso quando o arfar horrorizado de Isabella atinge meus ouvidos. Oh, oh! Me fodi! Me fodi muito!

— Você xingou palavra feia! — acusa e eu olho para ela, estático, ainda com a mão afundada no pote de gosma.

— Ah... Eh... Hum... — Gaguejo, mas o que eu deveria fazer? — Bella... Eu... Hum... — O que será que eu posso oferecer para que ela não conte a sua mãe? — Seu aniversário está chegando, não está? — Me lembro e digo as palavras atropeladamente, desesperado para que dê certo. Bella inclina a cabeça e acena para cima e para baixo.

— Eu vou fazer quatro anos — repete, como sempre que a palavra aniversário é dita perto dela, e ergue a mão pequena, deixando quadro dedos levantados, — Assim.

— Hum... E o que você quer ganhar de presente? — pergunto, torcendo para que isso a distraia o suficiente e ela esqueça o que ouviu. Porra, por favor, que ela esqueça o que ouviu.

Não preciso ser nenhum gênio ou especialista em educação infantil para saber que Anthony vai me matar se souber que deixei que Isabella ouvisse um palavrão sair da minha boca.

Nos últimos quatro dias, desde o casamento, ouvi Anthony xingar mais do que no último mês inteiro eu achei que ele seria capaz, no entanto, nunca ao alcance dos ouvidos de Isabella.

— Eu quero uma festa! Na escola! — Franzo o cenho. Isabella não vai mais à escola...

— Por que na escola, Bella?

— Porque meus amiguinhos tão lá... A Júlia, a Lala, o Felipe, o Maurício, a Letícia e a outra Isabella... — Desembesta a explicar e eu sorrio. Achando graça da sua facilidade em se expressar e dando graças a Deus porque minha estratégia parece ter funcionado. Isabella se esqueceu do palavrão.

— Mas você não vai mais a escola, Bella... — Me arrependo imediatamente quando seu rosto é tomado por uma expressão triste e ela abaixa a cabeça, — Mas e se a gente fizesse uma festa fora da escola e convidasse todos os seus amigos? — Ela levanta a cabeça rapidamente com os olhos brilhantes.

— Podemos? — questiona, admirada.

— Podemos! — afirmo, sem me importar com as consequências. Ela parecia prestes a chorar. Anthony não vai poder me culpar por isso... Eu a impedi de chorar, afinal...

— Num parque? — Ok, agora as coisas estão ficando um pouco mais complicadas.

— Eh... — Tento ganhar tempo, mas os olhos de Isabella voltam a se abaixar, prevendo minha negativa e eu não vejo outro jeito, — Sim! Num parque!

— Oba, Marcos!! Oba! — Comemora, animada, e bate as mãos sobre o balcão, fazendo o açúcar fino voar diretamente para o meu rosto. Ergo a mão para evitar a nuvem de pó branco apenas para ser lembrando de que ainda a tenho afundada na massa gosmenta, puta merda!

Anthony escolhe esse momento para aparecer e seus olhos vasculham a cena que parece ter saído de uma série de comédia dos anos 90 com atenção. Isabella vira-se para trás, reconhecendo sua presença e grita, — Papai! O Marcos disse que eu vou ter uma festa de aniversário no parque com os meus amiguinhos da escola! — Os olhos de meu marido se arregalam e me procuram imediatamente. Meneio a cabeça em um pedido silencioso de desculpas e ele me olha, parecendo tentar entender como isso aconteceu. Boa sorte, Tony, eu também gostaria de saber. — E, papai! O Marcos xingou um palavrão! — Me denuncia.

Mas que oportunista! Me arrancou a promessa de fazer sua vontade e, ainda assim, me ferrou! Isabella, definitivamente, seria uma boa advogada no futuro! Mas isso não impede que eu me lamente.

— Ah, porra! — xingo outro antes de me dar conta do que estou fazendo. A boca de Anthony se abre e seus olhos se estreitam. Ele balança a cabeça, negando-se a acreditar, não sei no que. Se que eu tenha, realmente, por duas vezes, xingado na frente da sua filha, ou se reconhecendo que prometer a lua para a criança era uma tentativa de mantê-la calada.

O fato é que o desgosto em seu rosto é óbvio. Abro a boca para dizer alguma coisa, mas apenas um olhar seu me silencia, ele me repreende sem dizer nem mesmo uma palavra, exatamente como já o vi fazer com Isabella algumas vezes, e, embora isso soe e pareça ridículo, seu olhar é tão definitivo, que não ouso dizer mais nada.

— Bella, o papai vai conversar com o Marcos. Ele não sabia que xingar é feio! — diz pra a filha, mas olha feio para mim. Eu só consigo pensar que se esse olhar faz com que eu me sinta um merda, não quero nem imaginar o que não faz com a pobre menininha de três anos de idade.

— E quanto ao seu aniversário, o papai já disse que ainda não sabia se seus amiguinhos poderiam vir, não disse? — Ao ouvir a negativa, Isabella faz cara de choro.

— Mas o Marcos disse, papai... — recebo outro olhar intimidador e, vergonhosamente, me encolho na cadeira.

— O Marcos não sabia que as mamães dos seus amiguinhos trabalham o dia inteiro e talvez não possam levá-los à festa. Mas o papai vai tentar, tá bom? — Isabella balança a cabeça, concordando tristemente.

— Nós podemos contratar um transporte pras crianças e uma equipe de recreadores? Assim as mães não precisariam ficar lá... — Ofereço e, adivinhe só? Mais um olhar. Mas que porra! Isabella, por outro lado, parece ter tido a animação reestabelecida pelas minhas palavras.

— papai, o que é transporte? E o que é recreadores? — Tony suspira e fecha os olhos. Brevemente, nega com a cabeça antes de voltar a encarar a filha com os olhos abertos.

— São recreadores, Bella. Tem mais de um, então falamos são, lembra?

— Tá bom! O que são recreadores? Eles vão fazer meus amigos poderem ir no meu aniversário? — Adivinhe? Outro olhar.

— O Papai não sabe, mas promete tentar, tudo bem? Vamos terminar de colorir a slime? Precisamos descobrir se vai dar certo pro seu aniversário!

A criança balança a cabeça. Claramente, dividida entre se animar com a gosma, ou se ressentir da reposta evasiva do pai, mas, para felicidade geral da nação, depois de apenas um minuto, escolhe a primeira opção.

— Vamos! O Marcos e eu íamos fazer a amarela agora!

— Iam, é? — Tony questiona, me dirigindo uma sobrancelha arqueada ao encontrar minha mão ainda no pote gosmento. Oh, merda!

— Unhum! — Isabella confirma, balançando a cabeça.

— E ainda vão? — pergunta diretamente para mim. Mas, depois de tudo isso, se tem uma coisa que eu não quero, é correr o risco de dizer ou fazer qualquer outra coisa que eu não deva.

— Não... Na verdade não... Agora que você chegou, eu vou subir... — Aviso, finalmente liberando meus dedos e me levantando da banqueta.

— Mas Marcos... A gente nem pintou a slime...

— Eu sei Bella, mas agora o seu pai já voltou... Ele vai te ajudar. — A menina me observa, torce os lábios e, bem menos animada do que eu gostaria que ela estivesse para me sentir em paz, dá de ombros.

Anthony não diz nada enquanto limpo as mãos em um pano de prato e recolho minhas coisas. No entanto, em seu rosto, há um olhar, diferente do anterior, esse não me repreende, ele me pergunta: O que é que você está fazendo, Marcos?

E essa, definitivamente, é uma excelente pergunta. Uma para a qual eu não tenho resposta.

******************

— Ela te pegou direitinho, não pegou? — Me viro na direção da entrada da cozinha e encontro um Anthony sorridente caminhando em minha direção.

Meus olhos passeiam involuntariamente pelo corpo torneado vestindo nada além de um short de pijama preto. Meu pau dá sinal de vida imediatamente e Tony pigarreia, lembrando-me de que preciso prestar atenção do seu pescoço para cima também.

— Desculpe, eu...

— Estava me secando... — rindo, passa por mim, vai até a geladeira e tira de lá uma jarra de suco. Anthony se movimenta pela cozinha com naturalidade, tão ou mais dono do espaço que ocupa do que eu. A constatação me faz erguer as sobrancelhas.

Ele pega um copo, serve-se da bebida amarela e se senta diante da bancada com o copo cheio. Eu inclino a cabeça levemente sem saber como responder ao seu comentário. Estamos fazendo piada disso agora? Porque o latejar entre minhas pernas, definitivamente, não é engraçado.

— Talvez... — escolho uma saída diplomática e sua sobrancelha arqueada já seria resposta o suficiente, mas ele também fala.

— Unhum... Nem fodendo talvez é a resposta certa pra essa pergunta, Marcos...

— Você pode falar palavrões? — a pergunta é muito mais uma acusação do que qualquer outra coisa e Anthony ri a porra de um sorriso lindo. Lindo para caralho.

— Você está vendo Isabella por aqui, Marcos? —bufo, sem querer admitir a derrota.

— Ela é...

— Uma pequena manipuladora... — Me corta e sua declaração faz com que meus olhos se arregalem, — O quê? Ela é minha filha, e não há nada que eu não faça por ela, mas isso não muda os fatos! Isabella é capaz de conseguir quase qualquer coisa de um desavisado apenas com olhos tristes e um bico.

— Sim! Deus! Sim! Olhos tristes e um bico! — concordo, desesperado, me lembrando da expressão amoada que teria sido capaz de me fazer prometer lhe trazer o sol, a lua e as estrelas, se ela quisesse, no rosto da criança.

Anthony ri, balança a cabeça, negando, e volta a tomar um gole do seu suco.

— Pra referências futuras, Marcos... Não importa o quanto ela pareça estar triste, você não faz promessas, você me pergunta. Sempre! Você sempre me pergunta! — balanço a cabeça, concordando, e ele esfrega as mãos no rosto. O humor de antes levemente abalado por alguma coisa.

— Algo aconteceu?

— Não... É só... Isabella sente falta da creche e eu não consigo decidir se a estou mantendo longe por ela ou por mim, não consigo entender se essa realmente é a melhor escolha pra ela, e... Oh, Deus! — Se interrompe, — E você realmente não precisa me ouvir falar sobre nada disso. — conclui.

Abro a boca, porém não digo nada. Ele está certo, eu realmente não preciso, mas me pego querendo. Eu não deveria, deveria? Decido não pensar sobre isso.

— Eu quero...

— Tem certeza?

— Tenho... — Balanço a cabeça, confirmando minhas próprias palavras. Tony franze o cenho, antes de fazer o mesmo, como se também precisasse dessa confirmação.

— Eu não faço ideia se estou fazendo a coisa certa pra Bella ou não... Às vezes as coisas parecem tão difíceis... Deus, eu só queria um manual! — Rio, esse é um desejo que eu realmente posso entender.

— Aquela creche não é uma boa ideia...

— Eu sei, mas ela sente falta. Muita falta... — Esfrega o rosto em um reflexo nervoso.

— Talvez ela só precise ocupar o tempo com outras coisas... Atividades... Na idade dela eu adorava natação... — Deixo a caneca que tinha em mãos dentro da pia, viro o corpo e me sento na banqueta ao lado de Anthony.

Ele apoia o cotovelo sobre a mesa e deita a bochecha na mão, pensativa.

— E eu adorava dançar... — pensa alto, — Essa parece uma boa ideia. — Dessa vez, fala comigo. Concordo com a cabeça e me lembro de algo importante.

— Recebi uma ligação da RBA hoje...

— A revista brasileira de advocacia? — une as sobrancelhas, confuso, e eu aceno com a cabeça, em concordância.

— Exatamente... Eles querem nos entrevistar, fazer uma sessão de fotos...

— Por quê? — inclino o pescoço, deixando que ele conclua sozinho. — O império jurídico... O filho do juiz federal e o herdeiro da Valente & Camil... — Esfrega as mãos no rosto e abaixa a cabeça.

— Nós não precisamos fazer se você não quiser... — Morde o lábio, antes de negar.

— Não... Está tudo bem... É só que fazia muito tempo que eu tinha me esquecido desse título... E, agora... Todo mundo parece mais do que disposto a me lembrar...

— Como você fez isso? Quer dizer, esquecer... Não se ressentir... — Ele ri sem humor.

— Oh, eu me ressinto, Marcos! Pode acreditar, eu me ressinto! Mas rancor faz mal pra pele, então eu tento simplesmente não pensar sobre isso. Quando?

— Semana que vem?

— Parece bom... Mas eu não quero que Isabella faça parte disso...

— Eu nunca esperei por isso...

— Tudo bem... — suspira e vira o olhar para mim.

— Você sabe que eles vão fazer perguntas sobre o seu pai, certo?

— Sei...

— E você tem certeza que quer fazer isso ainda assim?

— “Deixar eu te exibir pra algumas pessoas...” Não foi isso que você me disse que queria, Marcos? Quando me propôs esse casamento, pra começo de conversa? Você está fazendo a sua parte, eu vou fazer a minha..., — a naturalidade em seu tom é desconcertante.

— E naquela mesma noite, você me disse que não gostaria de ser reduzido a isso...

— Você não se importou na época, não me diga que se importa agora, Marcos. — ri e bebe mais alguns goles do seu suco.

— Mas é claro que me importo. Aquilo foi antes...

— Antes do quê? — Me interrompe e o desafio a que eu cite a lua de mel é claro em sua voz.

— Antes de eu te conhecer, Anthony. Antes de eu saber como uma entrevista dessas pode afetar você. — dou uma resposta tão honesta quanto dizer que isso foi antes de transar com ele teria sido. Porque é verdade, eu me importo, e o fato é que comecei a me importar antes de tê-lo tocado, como, aliás, estou louco para fazer de novo.

— Isso não pode me afetar de jeito algum, Marcos... Meus pais perderam esse poder há muito tempo... — Balanço a cabeça, concordando, mesmo que eu não acredite.

Não depois de ver como ele reagiu à presença deles em nosso casamento. Independentemente de quais sejam os sentimentos evocados por seus pais, eles invocam alguma coisa. Mas não lhe digo isso.

— Eles já anunciaram? Você sabe... Que vai ser você o sucessor? — Desvia do assunto, como sempre, muito boa em fugir daquilo que lhe deixa desconfortável.

— Na verdade, a expectativa era que eles anunciassem que eu não seria... Mas, não mais... Provavelmente, vão oficializar na próxima reunião do conselho... — Anthony ergue o copo em um brinde solitário e sorri, mas não é um sorriso largo como costuma ser.

— Você vai resolver, Tony... Qualquer que seja a solução pra Isabella... Você vai encontrar...

— É... E, agora, eu também preciso organizar uma festa num parque de diversões... — desconversa, e, dessa vez, o sorriso em seu rosto é imenso.

— Ela fez cara de choro... — me defendo.

— E o que nós fazemos a partir de agora quando Isabella fizer cara de choro, Marcos?

— Perguntamos a você... — Anthony dá dois toques com os ossos dos dedos na madeira, em aprovação.

— Eu disse que você aprende rápido! — ironiza, repetindo o que me disse durante nossa viagem, e eu estreito meus olhos para ele.

— Falando em aprender... Nós precisamos aprender algumas coisas e combinar outras, pra entrevista...

— Isso faz sentido. — Acena,— Eles vão enviar as perguntas por e-mail? — Dá o último gole em seu suco e deixa o copo vazio sobre a bancada.

— Vão. Eu te encaminho assim que receber, mas talvez fosse bom nós conversarmos sobre as respostas ao invés de só escrever e trocar papéis, não acha? — Apenas uma de suas sobrancelhas se arqueia.

— Jura? Por quê?

— Não sei... Pra soar mais natural?

— É... Você vai ter que fazer melhor do que isso...

— O quê? Como assim melhor? Não é como se eu tivesse motivos escusos pra querer passar algum tempo sozinho com o meu esposo... — Tudo bem, eu tenho, e o sorriso de canto em meus lábios provavelmente me denuncia, porque é a vez dele de estreitar os olhos. Mas, porra! Não é possível que esse pensamento não atravesse sua mente uma vez sequer quando é quase tudo em que consegui pensar o dia inteiro.

— E quem foi que falou em passar algum tempo sozinhos, Marcos? — aproxima o rosto do meu e estreita os olhos.

— Um homem pode sonhar, não pode? — a resposta sai baixa pelos meus lábios. Sua aproximação foi despretensiosa, mas, com ele tão perto, é impossível não ir além de apenas me concentrar em sua voz. É impossível não acompanhar o movimento dos seus lábios e sentir minha boca salivar pelo seu gosto.

Meus olhos me traem, descem pelos lábios, reconhecendo o movimento prolongado de sua garganta ao engolir, ansioso, e continuam indo cada vez mais para sul onde encontram seu peito, nus e tão, mas tão convidativos, que meus dedos coçam para tocá-los.

Ergo o olhar, mas não encontro o de Anthony que também está perdido, passeando pelo meu próprio corpo. Se ao me encontrar aqui ele não teve uma grande reação à minha pouca quantidade de roupa, agora, seu corpo conta outra história.

Ele lambe os lábios enquanto os olhos se perdem pelo meu tórax nu e os morde quando alcança o elástico da bermuda de moletom. O ar ao nosso redor se torna pesado e minha respiração também.

— Ok, hora de ir! — Declara, como se precisasse estimular a si mesmo e se levanta abruptamente. Em uma surpreendente economia de movimentos, devolve a jarra de suco à geladeira e deixa o copo na bancada da pia.

— Fugindo, Anthony? — pergunto com um sorriso de canto e uma sobrancelha arqueada.

— Com toda certeza! — diz com todas as letras e nenhuma vergonha antes de se virar, me dando as costas e já caminhando para fora do cômodo.

— Fugir não é uma boa estratégia... — Ele já está quase na porta do cômodo, vira o rosto e me olhando sobre o ombro, sorri.

— Dom João discordaria... — me deixa para trás sem qualquer remorso. Acompanho o balançar gostoso dos seus quadris e rio. Esse homem é problema, eu sei disso, e não consigo me impedir de gostar.

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*** ANTHONY ***

O teto branco do quarto não está mais interessante hoje do que foi ontem ou antes de ontem, no entanto, eu continuo olhando para ele, mesmo depois de quase uma hora deitado em minha cama. Meu cérebro está ativo demais para conseguir dormir e, ao invés disso, decidiu esfregar em minha cara todas as situações que não fazem sentido no mundo em que estou me esforçando para viver. Aquele em que Marcos não passa de um babaca.

No pódio, ocupando o primeiro lugar, temos Marcos, sujo de açúcar de confeiteiro, com as mangas da camisa dobradas até os cotovelos e uma das mãos afundada dentro de um imenso pote de slime comestível.

Na segunda posição, mas, nem por isso menos surpreendente, há o mesmíssimo Marcos se encolhendo diante do meu olhar de repreensão, e, por último, apenas porque me recuso a dar a esse acontecimento o crédito que sei que ele merece, há, não apenas meu corpo inteiro acendendo diante do seu escrutínio ainda há pouco, mas também o meu coração. Órgão estúpido!

Sempre houve atração. A mudança de temperatura, a corrente elétrica que me percorria a cada toque seu, ou a súbita falta de ar causada por sua proximidade nunca me permitiram ignorar que o magnetismo sempre esteve lá. Mas, dessa vez, foi diferente, porque foi além, muito além da atração.

Seu olhar me despiu não só de roupas, mas de armaduras, libertando, agora, muito mais do que desejos e fantasias. Libertando lembranças de seu toque em minha pele, de sua boca na minha, em meu corpo, de minha consciência sendo partida em um milhão de pedaços enquanto eu gritava seu nome e o de mais ninguém.

E se antes sua forma não babaca de agir me confundia, agora, ela começa a me deixar frustrado comigo mesmo. Eu conheço a solidão há muito tempo. Na verdade, não me lembro de uma época na minha vida em que não a conhecesse. E Marcos, justamente o Marcos babaca, decide ensaiar me mostrar algo diferente?

Eu não quero o diferente.

Eu quero o seguro.

Eu quero o confortável.

Eu quero aquilo que funciona.

Uma porra. Uma grandessíssima, uma imensa porra. Porque não importa o quanto eu queira fugir, Marcos continua fazendo todas as coisas certas, e, assim, tornando cada vez mais difícil de manter a narrativa de que ele é apenas o Marcos babaca de quem é fácil me manter longe.

E se isso não fosse material o suficiente para enlouquecer uma pessoa, ainda preciso lidar com a com o crescimento desenfreado da pilha de momentos que, não importa o quanto eu deseje, não estou disposto a viver. Ou, ainda, com o fato de que o não que deveria sair tão facilmente da minha boca começa a ter suas vogais e consoantes transformadas em outras, formando uma palavra completamente diferente em forma e sentido.

Marcos é um babaca, Anthony... Ele saiu para transar com outro quando você disse não, lembra?

Mas ele tinha esse direito. Não tinha? Eu poderia ter feito o mesmo, se quisesse.

Marcos é um babaca, Anthony... Ele disse que você não seria nada além de um enfeite, lembra?

Mas depois ele se desculpou por isso e reconheceu o quão escroto isso soou...

Marcos é um babaca, Anthony... Um galinha, lembra?

E, ainda assim, em todas as vezes que esteve ao meu lado, seus olhos não se desviaram de mim nem por um segundo...

Marcos é um babaca, Anthony... Ele disse que essa relação seria estritamente profissional, lembra?

Mas antes mesmo de assinar o contrato, ele me deu um apoio maior do que qualquer outra pessoa ao meu redor fez, ele não precisava ter estado naquele hospital, ainda assim...

Marcos é um babaca, Anthony... Ele foi arrogante e prepotente o suficiente para não se dar conta de que estava fazendo suposições completamente erradas ao seu respeito, lembra?

Mas, quando a verdade veio à tona, depois de um acesso de raiva, ele foi capaz de reconhecer isso, e, a sua maneira, até mesmo de se desculpar...

Marcos é um babaca, Anthony... Ele deixou claro que não queria desenvolver qualquer tipo de relação com Isabella, lembra?

Mas, ainda assim, hoje, eu o encontrei comendo slime...

Puta que pariu! Respiro fundo, fecho os olhos e os cubro com as palmas das mãos. Era para ser simples. Dois anos de contrato. Dinheiro o suficiente para organizar minha vida, e fim.

Então, por que, eu estou aqui, sem sono, fazendo uma lista mental das atitudes babacas de Marcos que sempre são seguidas de um porém? Eu não me importo com os poréns! Não estou interessado neles! Mas eles são tantos...

Não estava ontem quando dispensei Marcos com um simplório “Foi só sexo...”, não estou hoje, mesmo que meu corpo inteiro queime com a vontade incontestável de bater em sua porta, que minha mente se recuse a dormir e insista numa perguntinha maldita de duas palavras, “e se?”

Expiro com força, expulsando o ar dos pulmões na tentativa vã de organizar meus pensamentos e acalmar minha própria pele, excitada pelas recordações e pela possibilidade, mesmo que ínfima, de que elas se repitam. Mas não adianta. Continuo tão aceso, em corpo e mente, quanto antes.

************

— E qual é o seu filme preferido? — Olho para o papel em minhas mãos por mera formalidade, porque tenho certeza de que essa pergunta não está na lista. Outra vez é madrugada e Marcos e eu estamos sentados na cozinha.

Isso se tornou rotina. É irritante e gostoso na mesma medida, o quanto sua presença parece ser atraída por eu estar fora da cama. Basta que eu saia do quarto por qualquer que seja o motivo para que, segundos depois, Marcos apareça no mesmo cômodo da casa em que estou.

Já cheguei, inclusive, a me perguntar se esses encontros realmente são acidentais, ou se ele não estaria fazendo tocaia com o ouvido preso à porta do próprio quarto apenas me esperando sair.

Mas isso é absurdo, eu sei. Se há algum responsável, ou melhor, irresponsável, por esses encontros noturnos, não é Marcos, e sim o universo, que parece gostar de brincar com fogo. Afinal, o resultado deles é sempre o mesmo: conversas curtas, olhares desmedidos e, então, uma fuga nada digna.

Hoje tenho quase certeza de que sim, ele estava de tocaia esperando que eu saísse do quarto, porque, alguns minutos depois, não só apareceu, como sempre, seminu, como trouxe consigo a lista de perguntas da entrevista que me enviou por e-mail hoje à tarde.

Sua justificativa? Perdeu o sono e decidiu respondê-las aqui embaixo enquanto comia alguma coisa. O curioso? Já estamos aqui há mais de quarenta minutos e ele nem sequer procurou por um biscoito que fosse.

Balanço a cabeça, negando. Quão cara de pau ele consegue ser? E por que ele acha que conversar sobre trivialidades é uma boa ideia? E por que esse esforço esquentou meu estômago? E por que eu quero dar uma resposta diferente além de um não sumário? E por que eu não posso querer dar essa resposta diferente?

— Isso não está na lista... — respondo, não pela primeira, ou segunda vez, já que essa deve ser a décima em que ele tenta desviar das perguntas da lista para outras que interessariam, se fôssemos amigos, ou um casal, exceto que não somos nenhum dos dois e isso precisa continuar exatamente assim, mesmo que Marcos continue fazendo todas as coisas certas.

Nos últimos três dias, mais interações de Marcos com Isabella aconteceram. Ele jantou conosco todas as noites, chegou, até mesmo, a assistir ao bendito filme da princesa e do dragão. E alguém precisa lhe dizer para parar com isso.

Não consigo parar de me perguntar a razão de tudo isso. É muito esforço apenas para transar comigo. E, mesmo que eu deteste reconhecer, não acredito mais que Marcos seria capaz, por exemplo, de se envolver com minha filha apenas para tornar nossa mentira mais verossímil, ou para me levar para cama.

Então, por quê?

Por que ele tem chegado em casa cedo, ao invés de, como me disse que faria, continuar levando sua vida de solteiro? Por que ele não só trata minha filha bem, como, todos os dias, lhe traz algum presente da rua, nem que seja apenas um doce?

Por que é que praticamente todas as noites, ele me encontra na cozinha de madrugada, nem que seja para que troquemos apenas um boa noite e um escrutínio despudorado um do corpo do outro. Por que ele continua agindo como um Marcos de quem, a cada dia, se torna mias difícil querer fugir?

Porque talvez fugir não seja exatamente uma necessidade...

— Mas ela pode decidir mudar o roteiro, pode perguntar o que nós dois mais gostamos de fazer juntos... — responde com a cara mais lavada do mundo.

— Ah, tá! E você vai dizer que é assistir As Panteras comigo?

— Sério, Anthony? Detonando? — Ergo as sobrancelhas, surpreso, não apenas para o desgosto em sua voz, como também para aquele em seu rosto.

— Ora, ora... Parece que temos um fã de Charlie aqui... — Inclino a cabeça para o lado e o observo com diversão.

— Eu sou fã da Cameron Diaz, aquela mulher é maravilhosa... — comenta, descontente, e rouba uma batata chips do saco que tenho aberto em cima da mesa. Dou um tapa em sua mão, mas ele é mais rápido e a enfia na boca.

— Primeiro, fica longe da minha batata! Se você quer uma, o armário está cheio delas! — Aviso, com o dedo em riste, e se o sorriso em seu rosto me diz alguma coisa, é que ele realmente não se importa como quantos pacotes de batatas chips há na despensa, ele vai comer a minha. Hurgh! — E, depois, ai, meu Deus! Você estava realmente prestando atenção! — falo bem mais alto do que é necessário, impactado pela constatação, e levo às mãos à boca, chocada.

— Se Cameron diz, eu ouço... — comenta, como se não fosse nada demais.

— Ai meu Deus! — repito a exclamação já feita e sacudo a cabeça, ainda incrédulo, mas, agora, também muito curioso.

— Tudo bem! E qual é o seu filme preferido, Missão Impossível? — Assim que digo o nome, sorrio, porque a resposta para a pergunta brilha em minha mente impossível de ser ignorada.

— Não me diga! Eu quero adivinhar! O poderoso chefão?

— Você é bom...

— E você não poderia ser mais óbvio... — Marcos leva a mão ao peito como se eu tivesse lhe atingido no coração. Ele faz uma careta de dor e eu dispenso sua dramatização com um aceno de mão e um sorriso.

— Ok! E o que é que nós mais gostamos de fazer juntos? — volto à pergunta original e ele sorri imenso, dizendo, sem palavra alguma, qual seria sua resposta ideal, — Unhum, claro, Marcos! Vamos estampar na revista mais lida pela tradicional elite brasileira a palavra foder, por que não? — minha resposta faz com que ele gargalhe e eu agradeço, porque isso quer dizer que o estremecimento em meu corpo, causado pela simples ideia de foder com ele de novo, passou despercebido.

— Suas palavras, não minhas... — Formo um bico com os lábios e balanço a cabeça de um lado para o outro.

— Unhum... Nem que você tivesse usado vogais e consoantes conseguiria ter sido mais explícito... Ou óbvio... — Ele morde o lábio e seu olhar viaja para longe, não preciso ser nenhum gênio para saber onde ele foi.

— Ok, hora de ir... — Me despeço, já me levantando, — Foi um bom ensaio... Você estava certo, afinal... — Meu corpo se movimenta praticamente sozinho. Meu cérebro ativou o modo de defesa anti-Marcos e sua melhor estratégia é fugir. Correr.

Sair da presença desse homem o mais rápido possível antes que a cortina de fumaça que eu passo o tempo inteiro alimentando através de palavras ácidas, comentários desdenhosos e reviradas de olhos suma e ele se dê conta de que não é o único que quer mais do que tivemos naquela ilha.

Sua língua passeia sobre os lábios, umedecendo. Marcos cruza os braços na frente do peito, flexionando os músculos. Meus olhos são, imediatamente, atraídos para eles, expiro com força e, escondida pela bancada entre nós, aperto as coxas uma contra a outra, subitamente quente, antes de conseguir desviar o olhar. Ótimo! Nesse ritmo, eu vou quebrar meu vibrador!

— Eu tenho ideia de outras coisas em que posso estar certo... — comenta, sentado na banqueta, com os joelhos levemente flexionados e os pés apoiados no ferro de apoio.

— É claro que você tem... Boa noite, Marcos... — Pego meu pacote de batatas.

— Você não cansa de fugir, Anthony? — Meu coração acelera no peito com sua pergunta, porque eu me fiz ela ainda hoje. Será que eu vou conseguir manter o ritmo pelos próximos dois anos? Porque tenho quase certeza de que se ele me tocar, não serei capaz de dizer não.

Não como disse antes de saber exatamente qual é a sensação de tê-lo fazendo cada uma das minhas vontades, até mesmo aquelas que eu não sabia ter. Então, que outra opção me resta, senão fugir?

— Eu acabei de começar...

— Sabe... Eu sou bem resistente... — sorrio. É claro que ele é.

— E por que tanto esforço pra uma noite de sexo, Marcos? Nós dois sabemos que você não precisa disso. Meia mensagem, e não vão te faltar opções... — Não gosto das palavras que digo, mas elas são verdadeiras e eu preciso de mais fumaça. Além disso, a pergunta implícita nelas saiu pela minha boca praticamente sem a minha permissão.

Marcos sorri de canto, abaixa os olhos e, quando volta a me encarar, aquelas piscinas azuis estão tão intensas, que tenho a sensação de que estou me afogando. Engulo em seco e puxo o ar com força, deliciado, alarmado com o fato de que ele tenha me alcançado, mesmo que haja mais de um metro de distância entre nós.

— Sexo? — balança a cabeça para cima e para baixo sem deixar que o sorriso escorregue de seus lábios, — Eu achei que seus dias fingindo ser inocente tinham acabado, Anthony... — arfo, pisco e engulo, uma coisa depois da outra quando meu corpo parece prestes a ter um colapso com sua resposta direta. Minha reação dura dois segundos antes de eu me obrigar a fingir que suas palavras não me abalaram.

— Eu não faço ideia do que você está falando... — dou-lhe as costas e começo a caminhar para longe.

— E a lua amanhece, o céu é verde, e o mar amarelo... — ri baixinho, — Você sabe... Dom João fugiu, mas depois voltou... — diz, quando já estou na porta da cozinha. Olho para ele por sobre os ombros e é sorrindo que lhe respondo.

— E ele só precisou de treze anos... — Deixo-o na cozinha e tenho quase certeza de ouvir um resmungo que se parece muito com “Você é melhor do que isso...”. Ignoro.

**********

Olho ao redor uma última vez, conferindo o espaço, hoje, milimetricamente organizado. Não há brinquedos perdidos, meias desencontradas ou sapatos fora do lugar. Isso me faz rir, porque eu tenho certeza de que, apesar de todos os meus esforços, em algum lugar, há, sim alguma coisa fora do lugar. Eu só não descobri ainda. E espero não descobrir em uma foto estampada na revista jurídica mais importante do país.

Sinceramente, eu acho que isso só tornaria a narrativa de família feliz ainda mais verdadeira, afinal, é impossível que uma casa com criança esteja sempre perfeitamente organizada. No entanto, duvido muito que pessoas como meus pais, por exemplo, público certeiro da RBA, concordem com isso. Não, para eles pareceria apenas que eu deveria trocar os funcionários responsáveis pela limpeza e organização da casa.

Depois de passar a semana inteira empenhado em criar o espaço perfeito para a mentira que Marcos e eu precisamos fazer parecer verdade, sua cobertura mal parece a mesma. O sofá que costumava ter cinza como cor predominante, agora, tem almofadas coloridas. Há fotografias espalhadas em porta-retratos por toda a casa, além de desenhos emoldurados de Isabella em pontos estratégicos.

Me lembro daquela manhã há mais de um mês quando ele falou em decoração afetiva e eu lhe disse que precisaríamos de muito mais que fotos para isso. E precisamos. As cortinas escuras foram substituídas por persianas claras, os objetos decorativos masculinos foram mesclados com itens casuais e até com lembranças de viagens inventadas.

As poltronas ganharam mantas, as mesas de centro, velas aromáticas. O tapete rústico que ocupava toda a sala de televisão deu lugar a um felpudo e fofo e agora há flores espalhadas por todos os aparadores da casa, desde o hall de entrada, até os corredores de acesso. Respiro fundo, procurando qualquer indício de nervosismo em mim mesma, mas não encontro nada.

O apito do elevador soa alto e eu confiro minha imagem no espelho do corredor. O terno verde escuro parece perfeitamente ajustado ao corpo. É o tipo de roupa que eu usaria se trabalhasse na Valente.

Definitivamente, não é o tipo de roupa que um pai usaria em casa, mas a revista, sem dúvida alguma, não está interessada nesse lado da minha vida. Viro o rosto, admirando a joia em meu pescoço. O diamante em formato de gota é singelo, no entanto, cumpre, e muito bem, seu papel de ostentar riqueza.

Fora meu novo guarda-roupas e o de Bella, foi a primeira compra realmente cara que fiz usando meu “bolsa esposo contratado”, como gosto de chamar mentalmente o cartão de crédito disponibilizado por Marcos para mim. A verdade é que embora a ideia de retomar minha vida fosse muito atraente, a cada dia que passa, eu percebo que não tenho uma vida para a qual eu realmente queira retornar.

Primeiro, porque as pessoas com que eu costumava me relacionar estão quase todas no Rio de janeiro ou no exterior, o que seria um empecilho, se eu quisesse voltar a me relacionar com elas. Eu não quero. Se nenhuma delas se importou com o meu sumiço há cinco anos, não há razão para que eu lhes procure agora, e, sinceramente, seu descaso anos atrás nem mesmo me surpreendeu. Eu não tenho amigos nesse círculo social. Com exceção de Grazi, nunca tive.

Eu tinha colegas com quem ia à festas, mas nada além disso. Eu também não tenho nada que realmente deseje fazer. Percebi, tarde demais, que as palavras de Marcos, no dia em que me fez a proposta, poderiam até ter sido ofensivas, mas também foram realistas. “Viver de compras”, ele disse.

E não era exatamente isso o que eu fazia? Poderiam não ser roupas o tempo todo, mas era sempre alguma coisa. Procedimentos estéticos, joias, eletrônicos, itens exclusivos, peças de moda, ingressos para festas... Era sempre sobre comprar alguma coisa e hoje eu, definitivamente, não me importo com nada disso.

Adorei entrar em lojas e escolher o que eu queria sem precisar perguntar o preço. Amei comprar todos os sapatos que achei que ficariam lindos nos pés da minha filha. Foi incrível lhe dar quase todas as pelúcias que ela viu nas prateleiras e simplesmente fantástico encher três gavetas apenas de laços para o seu cabelo. Mas também foi o suficiente. Eu não preciso de mais do que isso.

Depois de alguns dias pensando no que eu faria com o meu tempo, conclui que só havia uma resposta possível: aproveitar cada momento do desenvolvimento de Isabella e usá-lo para me tornar alguém de quem minha filha não apenas se orgulhe, como também se inspire.

O primeiro passo? Ser profissionalmente bem sucedido e, um dia, dispensar a pensão pós-casamento sem que Bella precise ter seu padrão de vida, agora, altíssimo, reduzido. Na verdade, fiz disso um objetivo.

O que significa que desde que retornamos de viagem se não estou envolvido em alguma atividade com Isabella, estou estudando. Apesar de ter trancado a faculdade, comecei um curso de francês para falantes fluentes já que fazia muito tempo que o meu estava engavetado. Comecei também um curso para estudantes de direito. Ambos à distância.

Eu estaria satisfeito em passar os próximos dois anos, ou, pelo menos, até que essa rotina se torne insuficiente, fazendo apenas isso, no entanto, sou obrigado a reconhecer que Isabella precisa de mais. Ela precisa sair de casa, precisa ver gente. Sua insistência em voltar para a creche é só uma confirmação e estou trabalhando em opções. Além da sua festa de aniversário, é claro. Em duas semanas. Em um parque. Deus, onde é que Marcos estava com a cabeça?

— Uau! Estou no apartamento certo? — É ele quem diz, com um tom brincalhão, e eu reviro os olhos.

— Não seja estúpido! Não está tão diferente assim... — Desdenho, fingindo um interesse inabalável no meu próprio reflexo, não querendo olhar para ele, não ainda, porque sei e não sei exatamente qual vai ser a sensação: um solavanco forte que parece se tornar mais intenso a cada dia e atingir a um número maior de partes do meu corpo também.

Não sei o que me desestabiliza mais. Primeiro, há a forma como simplesmente não consigo me impedir de desejar seu corpo, esteja ele vestido, de terno e gravata, ou seminu, como Marcos insiste em me atormentar praticamente todas as madrugadas, passeando pela casa com nada além de shorts ou calças de moletom.

É quase como se ele fizesse de propósito. Não das primeiras vezes, mas desde que chegamos de viagem? Definitivamente.

Depois, há a maneira como, a cada dia, eu tenho estado mais obcecado para que ele cometa erros, para que se prove o babaca que eu sabia que ele era quando aceitei este casamento.

Alerta de spoiler, ele continua não cometendo nenhum sequer. Se houvesse um placar, Marcos babaca x Marcos descente, o descente estaria dando uma surra no babaca e isso não é nada bom para a minha sanidade.

Marcos arruína meus planos de tentar me preparar para o impacto que é sua visão quando se aproxima devagar. Acompanho o caminhar do seu reflexo, focado em suas pernas até que ele pare de andar bem atrás de mim. Ergo os olhos, encontro seu olhar pelo espelho e me embrenho nele de uma maneira que seria fácil fingir que não foi meu o movimento, mas foi.

O calor de seu corpo se agarra ao meu como se uma fogueira tivesse sido acesa bem às minhas costas e eu odeio e adoro isso ao mesmo tempo. Essa atração, essa coisa de não podermos chegar perto demais um do outro é uma benção e uma maldição.

Uma benção, porque faz com que a confusão de sentimentos e sensações que nos ronda pareça completa. Nós não somos apenas descobertas despretensiosas de algo que gostamos um no outro a cada dia, nós não somos apenas um desejo louco e desenfreado, nós não somos apenas admiração mútua silenciosa, somos tudo isso, junto, misturado, e impossível de separar.

Uma benção, porque Marcos foi o melhor sexo da minha vida. Uma maldição, porque o mesmo magnetismo que tornou isso possível, torna também impossível de esquecer, se envolve com uma vontade cada vez maior de descobrir do que seríamos capazes juntos e me transforma em um Anthony confuso e fujão da qual eu não gosto.

Seus olhos não gastam nem mesmo dez segundos analisando a própria casa. Eles parecem ter pressa em analisar o próprio esposo e como em todas as vezes, a perdem no segundo em que pousam em mim. Seu olhar me esquenta, despe e lambe, tudo de uma só vez. E, para meu horror, ele cruza a linha que não deveria, me toca.

Passa um braço ao redor da minha cintura.

— Você está lindo... — Elogia, eu ergo uma sobrancelha, ele ri. Sinto-me aterrorizado por estar em seus braços e, ao mesmo tempo, incontestavelmente confortável neles.

— Você é lindo... — admite e eu balanço a cabeça, satisfeito, — E modesto... — Dou de ombros, nem um pouco preocupado com o fato de eu saber que sou lindo. Mas muito, muitíssimo com a proximidade alarmante. Seu braço me puxa para trás, colando minhas costas à sua frente e meus olhos se fecham brevemente.

— O que você está fazendo? — Traído. É como me sinto quando minha voz sai enrouquecida. Encaro Marcos pelo espelho e, por isso, acompanho quase que em câmera lenta o afundar de seu nariz em meu pescoço.

Luto contra o estremecimento quando ele puxa uma inspiração profunda em um movimento que não deveria ser tão malditamente sexy quanto é, mas que se torna impossível de ignorar quando o corpo dele estremece, como se, ao sentir meu cheiro, ele provasse de uma droga da qual estava em abstinência. Seus lábios sustentam um sorriso safado e ele os aproxima da minha orelha.

— Ensaiando... — Sussurra.

— Nós não precisamos de ensaio, Marcos!

— Pra fazer parecer real? Não... Não precisamos... Mas se eu passasse mais um segundo sem sentir teu cheiro e sem te tocar, a terra, provavelmente, pararia de girar...— Viro-me em seu enlace. Meus mamilos se esfregam em seu peito e, puta merda! A sensação é uma delícia.

Eu gostaria de dizer que não sabia que a queria, mas seria mentira, porque eu sabia. Eu o quero desde o momento em que meus olhos viram o homem a minha frente. E, sentir seu corpo nu, há mais de sete dias, que mais parecem uma eternidade inteira, não fez nada para aplacar esse querer, muito pelo contrário, apenas o aumentou e Deus é testemunha do esforço hercúleo que eu tenho feito para mantê-lo exatamente assim, apenas como um querer.

Foram dias difíceis. Foram dias diferentes de todos os que vivi nos últimos anos. Foram dias de companhia, sorrisos e conversas. Foram dias em que a solidão quase desapareceu. Foram dias em que vi alguém além de mim e Grazi dar a minha filha toda a atenção que ela merece.

Em cada um deles, em cada interação de Marcos com Isabella, havia um fator comum. Ele estava fazendo suas vontades. A mais ridícula? Tomar chá com as bonecas. Esse homem, desse tamanho, estava tomando chá, água de torneira, com as bonecas.

Foram dias fáceis. Foram dias difíceis, muito difíceis.

Dias em que me senti ridículo, porque senti inveja da minha filha. Da facilidade com que ela o aceitou em sua vida, com que o puxou, absorveu e o tem tornado parte dela sem medos e receios. Sem se preocupar com quem ele é ou foi, sem tentar medir cada uma de suas atitudes, aplicando gráficos e equações impossíveis de resolver antes de decidir se ele é merecedor ou não de algo que ela nem sabe se ele quer. Sem se sentir culpado por mentiras e segredos contados em um momento que parece ter acontecido uma vida inteira atrás. Sem se sentir covarde por continuar guardando o último deles, por medo, egoísmo e o que mais puder definir meu silêncio a esta altura.

— O que você está fazendo, Marcos? — repito a pergunta, agora com os olhos presos aos seus, e não apenas ao reflexo deles, meu coração ensaia uma mudança em seu ritmo corriqueiro, e eu quero levar a mão ao peito, apertá-lo e dizer para que se comporte.

— Eu já disse, ensaiando...

— Deixa de besteira! Você está, deliberadamente, me provocando, por que você faria isso? — As palavras teriam muito mais credibilidade se minha voz tivesse um terço da firmeza de costume, ela não tem. Marcos ergue uma sobrancelha e ri, — É uma ideia ruim, Marcos... Uma péssima ideia, e você sabe... — quero acusar, mas a verdade é que choramingo.

— Eu não sou exatamente conhecido por fazer boas escolhas, Anthony... — o tom é sussurrante enquanto seu nariz toca minha pele com leveza em uma carícia desnecessária, despropositada, e gostosa, muito gostosa. Aproveito-a com o corpo inteiro.

— Obrigado pela parte que me toca... — ironizo, cravo minhas unhas em seus braços, colo a testa na sua e me empurro levemente em sua direção, querendo mais, só um pouquinho mais.

— Oh, não! Você, definitivamente, foi uma exceção... Eu não estou te provocando. — A cabeça abaixa, deixando os lábios perigosamente não, porque perigoso é estarmos tão próximos, deixando os lábios desesperadamente perto, muito, muito perto, — Eu estou garantindo que você não fuja... — Sua expiração morna atinge a região entre meus lábios e nariz, sua mão aperta minha cintura, sua boca chega cada vez mais perto.

Meus olhos imploram para se fecharem, minha mente suplica para se entregar e meu corpo decide seguir as próprias vontades. Uma de minhas mãos sobe pelo braço de Marcos, tateando os músculos duros e cobertos pelo paletó até alcançar sua nuca. Meus dedos se infiltram em seus cabelos e eu os agarro, puxando-os. Ficamos assim, presos ao toque um do outro que não é nada e que ao mesmo tempo, é tudo.

Eu entendo sua necessidade, porque, de alguma maneira, é também a minha. Mas existe uma necessidade maior, muito maior, eu só não consigo me lembrar de qual é. Não consigo, não consigo, não consigo. Mas me esforço, mesmo que isso pareça esticar meus neurônios ao limite em uma tentativa de rasgá-los em dois.

E quando acho que não vou mais suportar meus próprios conflitos, eu me lembro. Esse casamento não pode falir além do que já está falido. Essa é a necessidade. Isabella. Mantê-la bem, segura, saudável. A mais importante de todas as minhas certezas e dúvidas.

É ela que me dá forças para depois de uma frenética, exaustiva e silenciosa batalha interior, soltar as mãos do corpo de Marcos, mesmo que pareça que a pele das minhas palmas esteja sendo separada dos meus músculos.

A primeira necessidade, embora menor que a segunda, é tão firme, consistente, impossível de ignorar e completa, que pousar a mão em seu tórax e afastá-lo de mim me deixa ofegante, respondendo ao imenso esforço físico que não exigiu de mim nenhum gasto de energia real.

Seus olhos me queimam e transformam quase tudo em cinzas, menos a vontade absurda de beijá-lo, de tocá-lo.

— Anthony... — A voz é rouca, o tom suplicante.

— Marcos... — digo seu nome, porque sei que o “não” não vai sair. E espero, com tudo o que há em mim, que ele não perceba que esse momento ridiculamente breve serviu apenas para comprovar que a temporada de negativas saídas da minha boca em sua direção foi oficialmente fechada.

— Porra, Anthony! — O corpo enrijecido deixa claro o nível de autocontrole que Marcos está exercitando para respeitar minha decisão. Bom, muito bom. E ruim, terrivelmente ruim.

Seguro o “sim” que quero dizer, mesmo que a palavra pareça arame farpado em minha garganta. Nunca achei que a necessidade de ser tocado pudesse ser tão palpável e que negar isso quando me é oferecido poderia, de fato, beirar o doloroso. Marcos acena com a cabeça e antes que alguma outra palavra deixe sua boca, o interfone toca. Eu poderia chorar de alívio.

****************

— É um lindo lar o que vocês construíram aqui! — Clara, a representante da revista comenta, quando já estamos sentados na sala, depois da sessão de fotos.

Finalmente. Quase ajoelhei e agradeci aos céus quando o fotógrafo disse que tinha o suficiente. Depois dos minutos que antecederam a chegada dos entrevistadores, passar uma hora me afogando na presença, cheiro, proximidade e toques de Marcos enquanto posávamos para fotos, definitivamente, pode ser enquadrado na definição de tortura.

— Obrigado. — agradeço, e Marcos apenas sorri.

— Então... — A mulher de pele negra e cabelos volumosos sorri, e pela expressão em seu rosto, já sei que a próxima pergunta não terá qualquer relação com nossas carreiras, — Não se fala em outra coisa que não o casamento de vocês..., — começa, e eu colo um sorriso falso em meu rosto. Primeiro, porque não faço ideia se isso é verdade ou não e, segundo, porque, se for, é sério que realmente é isso o que ela quer perguntar? — Foi uma união surpreendente! Há quanto tempo vocês estão juntos?

— Quase dez meses agora... — É Marcos quem responde, dando a resposta que combinamos.

— Entre namoro e casamento? — Não anota nenhuma palavra, já que tem seu celular com um aplicativo gravador entre nós, registrando cada palavra dita.

— O que podemos dizer? Somos impulsivos... — brinco.

— E você diria que foi a impulsividade que te levou a cortar relações com os seus pais, Anthony? — pergunta a queima roupa, como se estivesse falando sobre o tempo. Ergo as sobrancelhas, surpreso. Eu sabia que a pergunta viria, mas, definitivamente, não achei que seria tão cedo. O abraço de Marcos ao meu redor se aperta em uma demonstração silenciosa de apoio, e eu sorrio elegantemente, como aprendi a fazer quando ainda era criança.

— Não eu não diria.

— E qual você diria ser a razão?

— Na verdade, eu não tenho intenção alguma de falar sobre ela. Achei que o assunto dessa entrevista era o meu casamento, não a minha relação com os meus pais. — Clara sorri falsamente, como se eu estivesse dizendo bobagens.

— Imagina! É claro que o assunto principal é o casamento, mas é justamente por serem os herdeiros de duas das maiores fortunas e legados da advocacia brasileira... Entender suas relações familiares é importante para os nossos leitores construírem os perfis de vocês... — explica, com a resposta na ponta da língua. O que me diz que tanto quanto eu sabia que ela perguntaria, Clara também sabia que eu me recusaria a responder.

— Bom, então eu lamento que meu perfil terá de ficar incompleto nas mentes dos seus leitores, é uma pena, mas realmente não há nada que eu possa fazer quanto a isso. — A entrevistadora inclina a cabeça para o lado, e logo depois acena, concordando.

— Tudo bem... Então vamos falar sobre como você se tornou o protagonisto de um romance de Cinderela contemporâneo gay? O herdeiro borralheiro... — Comenta, e abre as mãos no ar, diante dos próprios olhos, como se estivesse desenhando as palavras em flashs, — Talvez esse seja o título da matéria... — anuncia e volta a me encarar. Marcos faz o mesmo, procurando em meu rosto algo que eu não sei o que é, e eu rio, dessa vez, de verdade, apesar de sem humor algum.

— Clara, querida, me parece que, embora faça tanta questão de reafirmar quem eu sou, você esteja, deliberadamente, se esquecendo do que isso significa. Veja só, meu pai é, como você já disse, um dos maiores nomes do direito brasileiro, meu marido é outro, meu sogro e minha sogra, outros. Eu? Bem, embora você não tenha perguntado, eu sou um estudante de direito. — Coloco uma mecha de cabelo no lugar, — Veja bem, eu aprendi a dizer não, antes de dizer qualquer outra palavra, e, como o bom advogado que sou e que vi todas as pessoas ao meu redor serem, não serei vencido pelo cansaço. Você realmente quer essa entrevista? Porque caso a resposta seja sim, eu sugiro que você mude radicalmente a sua linha de questionamentos, e, se a resposta for não, então, acredito que meu marido e eu já perdemos tempo demais. — Digo cada palavra sem deixar que o sorriso escorregue do meu rosto, diferente da jornalista, que enfim percebe que sua tática não vai funcionar.

— Muito bem, então... Eu lamento ter dado a impressão de que queria insistir em um assunto indesejado, por que nós não falamos sobre as perguntas que enviei por e-mail?

— Parece perfeito!

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