Contratados: O Prazer - Capítulo III

Um conto erótico de KaMander
Categoria: Gay
Contém 8426 palavras
Data: 20/04/2023 10:46:26

CAPÍTULO III

*** EDUARDO ***

O PRÉDIO ALTÍSSIMO, bem no meio da avenida paulista, me apavora. Confiro, pela milésima vez, o papel em que anotei o endereço da entrevista: Avenida Paulista, número 1928. Está correto. Então, por que raios eu me sinto tão inadequado para estar aqui? Quando atendi o telefone ontem, mal pude acreditar no que ouvia, uma entrevista! Finalmente um dos milhares de e-mails que enviei me dava algum retorno, mas fiquei tão atordoado que esqueci de perguntar para qual vaga era o processo seletivo.

Para ser sincero, também não sei se seria uma boa ideia fazer essa pergunta. Afinal, não deve parecer um bom sinal aos olhos de ninguém, que o número de currículos enviados por um candidato à vaga de emprego no seu estabelecimento seja tão grande, a ponto de ele precisar perguntar de que vaga se trata quando é convocado para uma entrevista. Então, não me permiti surtar sobre isso, pelo menos não até chegar ao endereço que anotei e me deparar com um prédio altíssimo, de mais de quarenta andares, todo feito em aço e vidro.

Quer dizer, eu esperava chegar a uma loja para ser entrevistado para uma das vagas de vendedor as quais me candidatei, ou um café, para outra das tantas vagas de barista as quais também submeti minha candidatura, mas nunca, em momento algum, imaginei um prédio como esse. É tão alto, tão bonito, tão imponente, que não consigo pensar em

nenhuma vaga para qual eu, possivelmente, tenha me candidatado aqui. Por isso, há quase dez minutos, estou parado na calçada, olhando para o prédio e me amaldiçoando, porque depois de muito tempo esperando por isso, quando finalmente recebo uma oportunidade, posso ter arruinado tudo, anotando o endereço errado.

E, para piorar, mais uma das coisas que eu não fiz em meio à euforia de receber uma resposta, foi perguntar o nome da empresa, ou eu poderia, mesmo com o endereço errado, procurá-la. Saí de casa bem cedo para não correr o risco de chegar atrasado, assim, mesmo que eu me perdesse, daria tempo de encontrar o lugar certo, se eu tivesse o maldito nome. Mas eu fui estúpido, um milhão de vezes estúpido, e não anotei. As únicas informações que peguei foram o endereço, possivelmente errado, e o nome de quem devo procurar, Norma, no 42º andar.

O som constante do trânsito de São Paulo não ajuda. Depois de um dia quente, a noite está abafada e seca. Expiro com força, olho para um lado, depois para o outro na calçada e, resignado, decido entrar no prédio. Se eu realmente for perder a oportunidade por causa da minha própria estupidez, é melhor descobrir logo. Estufo o peito, buscando coragem, pois a ideia de realmente ter estragado tudo me apavora. Eu sei que era só uma entrevista, mas, ainda assim, foi a primeira fresta de luz avistada no fim do longo túnel que minha vida se tornou em meses.

Com passos decididos, avanço na direção das portas do prédio, elas se abrem automaticamente para mim e, no momento em que piso na área interna, meus olhos se arregalam e eu abro a boca, em choque com o tamanho do lugar. É grande, imenso, enorme. O piso e as paredes são claras e brilhantes, revestidos por algo que se parece muito com mármore branco de veios multicoloridos, mas a ideia de tudo aquilo realmente ser mármore é absurda, custaria uma fortuna e ninguém gastaria tanto dinheiro assim com o chão, certo?

Nas laterais, próximos às paredes, há alguns homens de terno, acredito que sejam seguranças, e eles me olham desconfiados. Tudo bem, é compreensível, eu também estou desconfiado de que a minha presença aqui seja um completo engano. É tudo tão bonito, definitivamente, minha calça jeans surrada, os sapatos pretos gastas e a blusa preta, desbotada, de botões, que estou vestindo, não combinam com esse lugar, mesmo que sejam as melhores roupas que tenho, e que eu as use somente para entrevistas de emprego.

O mesmo vale para minha bolsa de qualidade razoável que tenho, ambos presentes de Joana há algum tempo atrás. Minha amiga ficou tão feliz quanto eu quando contei para ela que tinha sido chamado para uma entrevista. Oh, céus! Ela vai ficar tão decepcionada comigo! Burro, burro, burro! Ao ver sua foto na tela do meu celular na segunda-feira, achei que ela estivesse me ligando para falar do email, mas acontece que ela nunca o recebeu. Provavelmente, a internet lenta do vizinho caiu no momento em que cliquei em enviar. Não seria a primeira vez, e, com certeza, não será a última.

Mas ela me ligou apenas para dizer que o meu horóscopo do dia prometia grandes mudanças. Estou longe de ser tão crente em esoterismo quanto a minha amiga, mas ontem me vi obrigado a concordar que a previsão acertou, ou, pelo menos, eu achava que tinha acertado, até agora. Ando em direção aos fundos do grande andar térreo, onde há mesas de recepção e algumas catracas que dão acesso aos elevadores. Me aproximo do balcão com um sorriso simpático no rosto, mas a recepcionista me lança um olhar desdenhoso de cima a baixo, antes mesmo que eu possa cumprimentá-la.

A atitude me incomoda, mas não é como se eu pudesse culpá-la. Ela veste um uniforme fino, cinza escuro, tem o rosto muito bem maquiado e os lábios pintados de vermelho. Seus cabelos estão presos em um rabo de cavalo alto, com um topete na frente, que em conjunto com seu rosto bonito, a deixa com a aparência de uma artista. Abaixo a cabeça, envergonhada da minha própria aparência e respiro fundo, repetindo na minha mente o meu mantra multiuso, porque serve para quase todas as situações em que eu tenho vontade de me encolher e chorar até dormir, ou de sair correndo: não é culpa sua, Eduardo! Não é culpa sua, vai ficar tudo bem, você só precisa ter fé!

Ainda com a cabeça baixa, aperto os olhos e respiro fundo, depois de alguns segundos, finalmente volto a olhar para a mulher bonita na recepção:

− Olá, boa noite. Tudo bem? E-

− Em que posso ajudá-lo? - me corta antes que eu possa chegar à minha pergunta, me olhando com cara de poucos amigos e desviando o olhar para os seguranças ao nosso redor várias vezes, sem ter nem mesmo a decência de disfarçar. Franzo as sobrancelhas, agora, me sentindo mais chateado. Porque até entendo que ela me julgue inadequado e que olhe minhas roupas velhas com desagrado quando está tão infinitamente melhor arrumada do que eu, mas a forma como está me olhando diz muito mais do que isso.

O que ela acha que eu vou fazer? Roubá-la? Agredi-la? Que loucura!

− Eu estou sendo esperado no 42º andar. - Digo, já sem o sorriso no rosto e optando por não perguntar, mas sim afirmar. Assim, se eu estiver no endereço errado, ela pode simplesmente me dizer que ninguém está sendo esperado no andar que anotei e pronto. Vou embora desse lugar. No entanto, quando a mulher reage ao que eu disse, percebo que posso ter feito uma escolha errada, pois suas feições se transformam, deixando de transparecer desconfiança para passar a algo que se parece muito com deboche, o que começa a me irritar.

− No quadragésimo segundo andar? Me questiona com uma sobrancelha levantada.

− Sim, moça! No quadragésimo segundo! Foi o que eu disse! - Respondo, perdendo a paciência com a forma que ela está me tratando.

− A menos que você seja o senhor Eduardo Salvador Porto, você não está sendo esperado no quadragésimo segundo, querido! - Arrogante, a mulher me responde com um tom que quase escorre sarcasmo, elevando a voz no querido e sorrindo ao terminar de falar. Por uns segundos, fico sem reação, porque se ela sabe meu nome, não importa se acredita ou não que eu seja eu, o que importa é que eu não anotei o endereço errado. Sinto um alívio enorme e solto o ar com força, involuntariamente, um sorriso se forma em meu rosto, e, por alguma razão, o da mulher se apaga.

− Na verdade, eu sou sim. -digo, ainda sorrindo, e a mulher inclina a cabeça e me olha com seriedade e incredulidade evidentes.

− E você teria um documento que comprove? - Torce os lábios no final da pergunta.

− Tenho sim! - Abro a bolsa e retiro da carteira minha identidade, entregando a ela. A mulher pisca algumas vezes, por alguma razão que eu desconheço, sem conseguir acreditar que eu sou o homem que está sendo esperado no andar. Ela retira meu documento da proteção plástica e o vira de um lado para o outro, o coloca contra a luz, faz vários procedimentos, tentando verificar se é verdadeiro, e eu aguardo, tão feliz por não ser o endereço errado, que toda a sua atitude estranha e antipática simplesmente perdeu a importância.

Finalmente satisfeita, a recepcionista começa a digitar uma série de coisas no computador à sua frente, depois, me entrega um cartão escrito visitante e pede para que eu o prenda na roupa. Eu o faço, ela me diz para buscar meu documento de identidade na saída, libera minha passagem pela roleta de segurança e me acompanha até o elevador em silêncio.

Ele chega, eu entro e agradeço sem nem mesmo olhar para ela, já sentindo a ansiedade revirar meu estômago e meu coração acelerar. Minha chance, essa é a minha chance... as portas se fecham e eu deixo a mulher mal humorada para trás enquanto o elevador desliza para cima como nenhum outro em que eu já estive antes, mal dá para sentir, eu nem fico tonto e, em segundos, ele para. Confiro o visor, achando que ainda não é o meu andar, mas, para minha surpresa, é sim. 42º, o último andar do prédio, as portas se abrem.

− Puta merda! - Sussurro baixo, sem conseguir me controlar. O elevador apita, anunciando que as portas se fecharão novamente e eu me obrigo a sair, mas paro exatamente no limite entre ele e o enorme hall diante dos meus olhos. Agora, a incredulidade da recepcionista faz todo sentido do mundo. Se eu achei o térreo bonito, isto aqui é outro universo. Será que eu mandei currículo para ser auxiliar de serviços gerais aqui? É o único cargo possível para alguém que só tem o ensino médio em um lugar como esses.

Forço minha memória, mas realmente não consigo me lembrar de ter mandado nem mesmo um currículo para uma vaga de encarregado de limpeza, estava cogitando começar a fazer isso na semana que vem. Mas se eu realmente não mandei, então que raios estou fazendo aqui? O cheiro de algo delicioso que eu não consigo identificar se infiltra no meu nariz a cada inspiração. Não é cheiro de um material de limpeza perfumado, mas sim de perfume. É forte e lembra folhagens e madeira ao mesmo tempo.

O espaço aberto é enorme e tem o chão e as paredes revestidos com o mesmo material do térreo, mas, aqui, ao invés de muito espaço vazio, o salão é preenchido por móveis finos e sofisticados. Sofás e poltronas macias, mesas de centro de várias alturas, sobre as quais descansam livros de capas coloridas e duras e objetos decorativos de um vidro que mais parece cristal, de tão bonito. Há também aparadores com vasos de flores de cores vivas, lindas. Orquídeas. Há vasos de orquídeas espalhados por todo o espaço.

A uma distância que eu imagino ser de uns vinte passos do elevador, está um longo balcão fosco de recepção feito em madeira clara, que não tem cor de madeira, mas um tom pastel suave, combinando com os veios coloridos que atravessam o piso e paredes. Acima dele, há uma logo em aço escovado onde lê-se Grupo Govêa Editorial. E, atrás, forma-se um largo corredor que termina alguns metros à frente em dois outros, um a esquerda e outro a direita. O ambiente faz eu sentir frio, e um frio que nada tem a ver com o vento gelado que sai por algumas frestas no teto.

− Senhor Eduardo Porto? -Ouço chamarem meu nome e procuro pela voz, me assustando ao perceber que a senhora gordinha, baixa e de cabelos completamente brancos está há apenas um braço de distância de mim.

− Me de-desculpe. - Me atrapalho com as palavras e ela sorri para mim com doçura, sem jamais desviar os olhos dos meus, ou não reparando nas minhas roupas surradas, ou não se importando com elas, o que faz o frio congelante que me abraçou desde que saí do elevador, se afastar, mesmo que apenas alguns milímetros, de mim.

− Está tudo bem, criança. Eu sou a Norma. Você pode vir comigo? - pergunta com as mãos juntas na frente do corpo e eu concordo com a cabeça, passando a segui-la e, só então, me dando conta do silêncio e do vazio no lugar. Nós ultrapassamos o balcão, em que deveria haver recepcionistas, mas não há, e entramos no largo corredor atras dele. Ao chegarmos ao final, viramos à direita, onde logo podemos ver uma porta larga e preta, passamos por ela para, em seguida, pararmos diante de uma mesa longa e muito bem organizada de madeira escura. Observo o computador, os vários porta-lápis e canetas e os diversos outros materiais de escritório.

A cadeira giratória do outro lado parece confortável. Norma dá a volta na mesa, sentando-se nela.

− Você pode aguardar ali, em instantes você será recebido. - diz, apontando para um conjunto de sofá e poltronas à sua esquerda: – Você quer beber alguma coisa? Uma água, um café, um suco? - Me surpreendo com o oferecimento. Não com o fato de um lugar como esse oferecer todas essas coisas a um candidato de emprego, mas o que me surpreende é ser eu a estar aqui. E, cada vez mais, a pergunta por que? se repete em minha mente. Eu não faço ideia de que vaga é essa.

Enquanto olho para Norma, penso em perguntar à ela, mas a vergonha vence a preocupação, decido que descobrirei quando entrar, afinal, a pessoa vai ter que me dizer para que estão me entrevistando, certo? Com isso em mente, apenas aceito o suco. Se eu não conseguir o emprego, o que é muito provável, afinal de contas, não há nada que eu possa fazer em um lugar como esse, pelo menos o dinheiro da passagem me pagou um suco que, com certeza, é gostoso.

Norma concorda com a cabeça, eu ando na direção das poltronas indicadas e me sento. Ela faz uma ligação breve, em seguida, se levanta, sumindo na ponta oposta do corredor por onde viemos. Alguns minutos depois, volta. Em suas mãos, carrega uma pequena bandeja com duas garrafinhas de vidro, dois copos longos, também de vidro, e um recipiente parecido com uma bomboniere. Para à minha frente e deixa tudo na mesinha, diante de mim.

− Eu também trouxe uma água e alguns biscoitos. - diz com o mesmo sorriso acolhedor que me deu na porta do elevador: – Não se preocupe, você está adiantado, pode comer, assim que estiver pronto, eu aviso que você chegou. - declara, e meus olhos ardem, com lágrimas implorando para serem derramadas. Como ela pôde saber que eu não tinha comido nada hoje? Por que ela está fazendo isso por mim? Abro a boca, mas antes que eu tenha a chance de dizer alguma coisa, ela dá uma piscadinha para mim, se vira e volta a se sentar diante daquela que, aparentemente, é sua mesa.

Volto meus olhos para a bandeja e encaro o lanche inesperado, mas completamente necessário. Começo pela água. Sirvo meio copo, levo-o à boca e sou completamente pego de surpresa. Quem quer que tenha dito que água é igual em todos os lugares, estava errado, e eu não fazia ideia disso até este momento da minha vida. O líquido gelado desce refrescante pela minha garganta seca, leve, e delicioso, como eu não fazia ideia de que algo sem gosto poderia ser.

Abro a bomboniere, que é, na verdade, um jarro de biscoitos amanteigados, e usando o pequeno pegador também colocado sobre a bandeja, pinço lá de dentro um biscoito.

Ao prová-lo, tenho vontade de gemer por razões diferentes. Primeiro, porque eu estou com fome, mesmo que eu esteja acostumada a lidar com ela, me alimentar é sempre um evento. Mas, principalmente, porque o doce derrete sobre a minha língua, deixando uma festa amanteigada explodir na minha boca.

Depois de comer uns dez biscoitinhos, abro o suco de uva e meu paladar dá o terceiro salto mortal comemorativo da noite. Assim que o despejei no copo, tive certeza de que beber aquilo seria uma experiência completamente nova. O líquido é espeço, encorpado, a cor é viva e densa, e bastou retirar a tampa da garrafa para que o cheiro de uvas frescas atingisse meu nariz. E eu não me decepcionei, o suco envolve minha língua, se espalhando por toda ela e eu fecho os olhos, novamente, sinto-os ardendo com a vontade de chorar, me sentindo grato por esse pequeno momento: por uma água gelada, alguns biscoitos amanteigados e um suco de uva.

Aperto os olhos com força, controlando minhas emoções, impedindo-me de chorar e me concentro em terminar de comer o que dona Norma me trouxe com tanto cuidado. Quando as duas garrafas estão vazias, meu estômago está cheio e eu sinto uma satisfação que há tempos não sentia, viro o rosto, preparando-me para levantarme e falar com a senhorinha, mas me deparo com seus olhos já grudados em mim e, mais uma vez, com seu sorriso gentil.

− Pronto? - pergunta e eu aceno com a cabeça. Ela pega o telefone sobre a mesa e ouço dizer para a pessoa do outro lado que o senhor Porto chegou. Depois de ouvir com atenção por alguns segundos, volta a colocar o telefone no gancho, levanta-se da mesa e me dá um olhar significativo.

Me levando e caminho até ela, meu coração retumba dentro do meu peito, como se fosse uma bateria de escola de samba, sinto minhas pernas estremecerem, e minha pele se arrepia da cabeça aos pés, meu corpo reage à minha caminhada como se reconhecesse que algo muito grandioso está para acontecer e eu franzo as sobrancelhas com esse reconhecimento, mas logo alivio a expressão. Me esforço para colar no rosto serenidade, ao invés de ansiedade ou qualquer outro sentimento.

Dona Norma e eu caminhamos lado a lado até a larga porta preta pela qual passamos quando cheguei, assim que paramos, ela segura minha mão e me olha no fundo dos olhos, antes de sorrir, como se quisesse me passar confiança. Eu aprecio o gesto, mas não acho que exista qualquer coisa capaz de me deixar confiante agora. Ela me solta para girar a maçaneta da porta, e eu sinto a ausência do seu toque reconfortante imediatamente.

No momento em que uma pequena fresta se abre, dona Norma se vira e caminha de volta para sua mesa, deixando-me sozinho para lidar com meus próprios problemas. É só uma entrevista, Edu! Vai ficar tudo bem! Se não der certo aqui, dará em outro lugar, não é culpa sua, EDUARDO! Não é culpa sua! Vai dar tudo certo, você só precisa ter fé! Respiro fundo e, fazendo um biquinho, expulso todo o ar de dentro dos meus pulmões, depois, empurro a porta com delicadeza e, com toda a coragem que consigo reunir, entro na sala atenta à porta a minha frente, quando a fecho e me viro para quem me espera ali dentro, o que vejo, me rouba o ar, o chão, e até mesmo a consciência de que sou capaz de me mover.

Um homem, o homem.

Não outra velhinha simpática, responsável pelo setor de recursos humanos, ou um velho barrigudo, careca e suado. Não! Nada de homem magro feito um palito, com cheiro de cigarro e cabelo ensebado de óleo, nada de mulher de meia idade loira, tentando esconder os fios brancos. Quem me espera, do outro lado da sala de paredes e chão escuros como a noite, que invade a sala pelas enormes janelas que tomam três paredes inteiras do chão ao teto, é o homem mais bonito que eu já vi em toda a minha vida.

Seu corpo é alto, forte. A calça azul marinho, provavelmente, parte de um conjunto de terno e, certamente feita sob medida, se agarra às coxas, desenhandoas em um caimento perfeito. A cintura está marcada por um cinto preto, prendendo meus olhos ao seu abdômen, que sobe esguio, alargando-se até o peitoral, depois pelos ombros. A camisa branca tem as mangas dobradas na altura dos cotovelos, deixando os antebraços de veias largas expostos, e os primeiros botões abertos, praticamente intimando meus olhos a espiarem a pele clara guardada ali.

Então vem o rosto. Quem disse que os anjos se parecem com aquelas pinturas em tetos de igrejas, claramente, nunca viu este homem na vida, porque é impossível que exista um rosto mais bonito. O maxilar quadrado é coberto por uma barba espessa escura, assim como seus cabelos, cortados curtos para que não pesem sobre os ombros, mas longos o suficiente para que mãos possam puxá-los. A boca é um par de almofadas finas e rosadas em meio àquela densa floresta escura de pelos. O nariz fino é empinado, perfeitamente alinhado com as maçãs do rosto totalmente proporcionais a tudo, mas foram os olhos que me aprisionaram desde o segundo em que os encontrei.

Azuis. Azuis e limpos como o céu claro no fim de uma tarde de verão. Azuis. Azuis e tempestuosos como as águas translúcidas dos mares mais bonitos. Azuis. Azuis e brilhantes como as estrelas, que reluzem no céu noturno, absorvendo a escuridão e iluminando-a ao mesmo tempo. Azuis. Azuis e devoradores como o fogo, que extingue gás, incendiando-o e consumindo-o.

E era isso. A compreensão veio como um choque físico provocado por uma ventania invisível. Preso naquele instante, completamente despido de sanidade, chão e ar, eu soube. Ali, naquele momento, naquela sala, tive mais certeza sobre isso, do que jamais tive sobre qualquer outra coisa em minha vida. Eu queimaria.

− Eduardo Porto? - A voz grave e aveludada quebrou o silêncio, arrancando minha consciência do torpor em que se encontrava, mas não tendo a mesma consideração pelo meu corpo, aceso como uma árvore de natal. O vento frio do ar condicionado açoita minha pele simplesmente por tocá-la, minhas pernas mandaram a firmeza passear e se agarram à espasmos sutis como se disso dependesse suas existências. Gotas de suor brotam em minha nuca e deslizam pela minha lombar, sob o tecido escuro da blusa de botões. Minha respiração insiste em não encontrar um ritmo, obrigando-me a manter os lábios entreabertos, na tentativa de não ofegar.

A postura do homem demonstra certo tipo de surpresa, mas seus olhos, seus olhos são como prisões e eu decido que prefiro evitá-los. Esforço-me para fazer com sutileza, desviando o olhar para o seu nariz.

− Boa noite. - Minha voz sai mais firme do que eu esperava, e muito mais baixa do que eu gostaria.

Ele franze as sobrancelhas, seus olhos escorregam por todo o meu corpo, em uma fração de segundo, analisam-me dos pés à cabeça, mas eu noto, como se eu realmente estivesse preso a cada movimento daquele olhar, ainda que não esteja focado nele. Engulo em seco sob a sua análise, meus nervos mais sensíveis reagem, como se respondessem a um chamado e eu não entendo, eu simplesmente não entendo o que está acontecendo aqui, nunca estive embriagado, mas tenho a impressão de que a sensação é exatamente essa.

− Sente-se, por favor. - diz, fazendo sinal para as poltronas de frente para a mesa preta, e eu preciso de um momento para processar o pedido, me lembrar do que é que eu estou fazendo aqui. Obrigo minhas pernas a se moverem e me sento diante da mesa. Mantenho minha cabeça levantada na direção do seu rosto, mas não me atrevo a levar meus olhos até os seus. Ele permanece de pé, diante das janelas, separado de mim apenas pela mesa e alguns passos.

O homem tem os braços cruzados e os lábios apertados em uma linha fina. E a visão, aliada à super-reação dos meus sentidos, me obriga a tomar uma respiração profunda da maneira mais silenciosa possível, aguardando, ansiando, pelas suas próximas palavras. O corpo alto se move com agilidade e fluidez e, rapidamente, está sentado à mesa, agora, literalmente, diante de mim. Corrijo minha postura para acompanhar a nova direção e engulo em seco outra vez. De repente, toda a umidade da minha boca sumiu, tudo o que tenho é língua e mucosas, a saliva acabou.

O homem pega uma espécie de tablet sobre a mesa e dá alguns toques na tela. Depois, volta seu olhar para mim, e finalmente se apresenta:

− Eu me chamo João Pedro Govêa. - Meus olhos crescem em meu rosto, Govêa como o nome da recepção? Ele é o dono da empresa? Por que o dono da empresa está me entrevistando?

− Você não sabia... - Sussurra muito baixo, mas eu ouço ainda assim e continuo calado, sem ter ideia do que dizer. Mas é claro que eu não sabia! Como eu deveria saber de uma coisa dessas? Tudo o que eu fiz foi enviar um e-mail, e eu nem mesmo sei para trabalhar com o que. Ainda que eu me esforce para manter um ritmo normal de respiração, o ar continua me faltando com frequência, obrigando-me a tomar inspirações profundas mais e mais vezes.

− Eu recebi o seu currículo. - É sua próxima declaração e seu tom não me passa despercebido, eu não sei o que tem nele, mas sei que tem alguma coisa.

− Eu imagino que sim, enviei muitos. - Respondo, honestamente. Gostaria de dizer mais coisas, mostrar que sou comunicativo, que tenho facilidade para me relacionar com pessoas, mesmo as desconhecidas. Mas sua presença é sufocante, a sensação é de que meu suprimento de ar foi cortado pela metade e minha mente não consegue se ocupar com muitas outras coisas, além de respirar, estando diante desse homem.

Mesmo sabendo que a resposta foi curta demais, sua reação é muito diferente de qualquer uma que eu poderia esperar. Suas sobrancelhas se levantam, não sei se em espanto, ou questionamento. Mas fico me perguntando o que ele esperava, se mais fala da minha parte, ou que eu não comentasse sobre ter enviado currículos para outras pessoas. Minha última experiência de trabalho foi há nove meses, se ele tem meu currículo, tem essa informação. Minha procura por oportunidades não deveria surpreendêlo.

− Todos iguais? - Dessa vez, o tom diferenciado é claro como o dia, repreensão. O porquê eu realmente não sei.

− Basicamente. - Tento sorrir amigavelmente, se ele, pelo menos, me dissesse qual é o raio do emprego, talvez eu tivesse mais o que dizer a respeito. Puta merda. Quanto tempo já se passou? Cinco minutos? Vinte? Uma hora? Uma risada seca e curta escapa por seus lábios e eu franzo o cenho involuntariamente. O que é engraçado?

− Você não é o que eu esperava... - Comenta com um ar de desdenho que me fere a alma, e, então, contra todo o meu bom senso, faço o que já tinha ficado mais do que claro que não deveria, olho em seus olhos. Batalhamos. Ninguém desvia, ninguém diz nada por sabe-se lá quanto tempo, mas, ao mesmo tempo em que me sinto preso, sinto-me tão distante dele, que tenho a necessidade de retribuir a agressão que ele me fez, mesmo sabendo que para ele não vai significar absolutamente nada.

− Você também não! - Declaro com firmeza na voz e nos olhos, ainda fixos nos seus. Dessa vez, sua resposta é imediata.

− E o que você esperava, Eduardo? - A voz baixa e aveludada atinge minha pele antes de atingir meus ouvidos, arrepiando-me inteiro e assustando-me.

Mas o que é isso? Franzo as sobrancelhas para ele quando presto a atenção que deveria na pergunta que me foi feita. Essa batalha já está perdida, não está? Eu não faço ideia de qual é o emprego ao qual estou me candidatando, esse homem, claramente, não gostou de mim, eu não sou o que ele esperava.

Trocamos meia dúzia de palavras e nada de bom ou produtivo saiu disso, e, sendo honesto, se eu souber o que é melhor para mim, vou manter a maior distância possível dele. Foi a minha vez de rir secamente.

− Um velho gordo, careca e barrigudo? Um homem magro, cheirando a cigarro e com o cabelo ensebado, ou, talvez, uma mulher loira de meia idade tentando esconder os cabelos brancos embaixo de tinta de farmácia? - Ao ouvir minhas expectativas, seus olhos se arregalam e um vinco surge em sua testa antes de ele reafirmar a pergunta já feita e já respondida.

− Era isso que você esperava?

− E não é como costumam ser?

− Achei que fosse sua primeira vez, era o que dizia no currículo...

− Em algo assim? - Pergunto, referindo-me a uma empesa como aquela: − É! Mas eu já fiz outras coisas, então sabia o que esperar. - Ele sacode a cabeça positivamente.

− E você teria ficado satisfeito com qualquer uma dessas opões que descreveu?

− Com certeza! Com qualquer um que me contratasse! Eu estou pronto para absolutamente tudo! - Respondo categórico, talvez ainda haja uma chance, afinal. Se eu conseguir mostrar que sou bom de trabalho, que estou disposto a aprender, talvez consiga fazê-lo mudar de ideia. Os melhores funcionários são aqueles que precisam do emprego, e, nesse momento, eu não conheço ninguém que precise mais de um emprego do que eu: – Eu sei que talvez não tenha a experiência que você precisa, mas eu aprendo muito rápido. Posso garantir! Tudo o que vai ser necessário é me dizer exatamente o que você quer que eu faça, e eu farei melhor do que qualquer um já fez antes.

Ele me ouve e balança a cabeça, novamente, incredulidade atravessa seu rosto e eu fico com a sensação de que eu disse alguma coisa errada. O senhor Govêa desvia os olhos dos meus e encara a rua pelas janelas ao seu lado. Ficamos em silêncio por vários minutos, e quando ele volta a me olhar, o que vejo, me assusta.

− É, eu sei. - Diz, balançando a cabeça afirmativamente: − É exatamente o que diz no seu currículo. - Afirma, me deixando confuso, porque eu não me lembro de ter qualquer coisa assim no meu currículo. Eu estou desesperado, mas não a ponto de colocar isso por escrito para pessoas que eu não conheço, elas poderiam interpretar errado, ou, pior, poderiam interpretar certo, mas querer virar minhas próprias palavras contra mim.

− Isso é normal pra você? - Questiona, com um tom de voz raivoso. E a pergunta começa a inflamar a raiva existente em mim. Mas que porra! Achei que eu viria para uma entrevista de emprego, não para um passeio de montanha russa! Irritado, deixo que as palavras façam o caminho dos meus pensamentos para os lábios sem obrigá-las a, antes, passar pelo filtro de polidez ou bom senso. Foda-se!

− É! É pra todo mundo que não nasceu em berço de ouro! É assim que o mundo gira quando você não tem ninguém conduzindo ele pra você!

O homenzarrão se levanta, e todas as máscaras de educação, paciência e bons modos são jogadas de lado. Esticando os braços sobre a mesa e apoiando-se neles, ele me encara de cima, em uma posição que deixa clara a superioridade que eu acabei de cuspir em sua cara.

− Sabe de uma coisa, Eduardo? Se você está tão desesperado assim, eu posso te dar um emprego! Só que eu vou precisar saber de duas coisas: primeiro, você aceita trabalhar por diária ou só contratos a longo prazo?

A pergunta me pega desprevenido, me colocando em uma posição difícil, sem saber se me rendo à minha necessidade de dinheiro e engulo meu orgulho, ou se mando tudo pelos ares. Respiro fundo, e a resposta óbvia brilha em minha mente. Passo a língua sobre os lábios, tentando, precisando, umedecê-los, mas a sensação é como eu imagino que seja a de uma lixa passando sobre pele sensível. Sentado abaixo dele, tomo coragem para olhá-lo, inclinando minha cabeça para trás.

− Não é o ideal, mas dependendo do que você quiser, eu posso trabalhar por diária sim.

O sorriso arrogante e o ar desdenhoso que se apossam de seu rosto me reviram o estômago, fazendo me acreditar que não há como ele me humilhar mais na minha vida inteira, do que sua atitude arrogante e sorrisos críticos fizeram nos últimos minutos.

− Tudo bem, Eduardo. Agora, o segundo ponto, para que eu possa te contratar, eu preciso ter certeza de que você não mentiu no seu currículo! - Seu olhar é duro e censurador, sua voz rascante pronuncia as palavras pausadamente.

Aquilo cai como a última gota d’água em um copo já transbordante. Quem esse infeliz pensa que é para me tratar assim?! Eu passo fome, mas não aturo esse tipo de coisa! Espelhando sua posição, levanto-me em um salto e estico meus braços sobre a mesa. Nossos corpos ficam mais perto agora, do que jamais estiveram desde o momento em que nossos olhares se cruzaram pela primeira vez, há sabe Deus quanto tempo atrás, quando eu ainda estava na porta da sala.

Contra todo o meu bom senso e a sensação de urgência exigida pela minha raiva, minha pele arrepia pela proximidade, minhas pernas estremecem, me obrigando a me apoiar com força sobre os braços e partes diferentes do meu corpo palpitam, irritando-me por essa reação tão involuntária. Apesar da posição semelhante, sua altura, muito superior à minha, me força a manter a cabeça inclinada para conseguir olhá-lo nos olhos.

O problema é que eu pareço estar perdendo o controle sobre o meu próprio corpo, que vai se aproximando, como se houvesse um imã, atraindo-me, cada vez para mais perto dele, até que as laterais de nossas mãos se tocam e um raio me atinge, me atravessando inteiro, me rasgando ao meio, e me energizando também. Com a cabeça a apenas alguns milímetros de distância, sibilo entre os dentes por raiva e medo. Raiva do que ele disse, e medo do que pode acontecer se eu abrir a boca estando a minha tão perto da dele.

− Eu NUNCA mentiria no meu

currículo!! - Ele estreita os olhos para mim e meneia cabeça levemente.

− Nem na última frase? -Pergunta, em um desafio claro. Levo um tempo para assimilar, porque seu hálito me invade e domina meus sentidos e pensamentos, tudo de uma vez. O cheiro frutado é forte, amargo e alcoólico, mas, por alguma razão, essas informações apenas passam pela minha cabeça e o que realmente se fixa é, se tem esse cheiro, qual será o gosto?

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*** João Pedro ***

ELE ASPIRA profundamente com o nariz tão perto da minha boca que eu preciso piscar por uns segundos. Homem maldito! Puta! A porra de um puto sem noção que sai espalhando currículos por aí, mas que caralho! O que ele tem na cabeça? E por que isso está me enlouquecendo a ponto de gritar com um desconhecido por fazer o que bem entende com a própria vida?

Quando se virou para mim depois de abrir a porta da minha sala, eu mal pude acreditar no que estava vendo. As roupas surradas, o cabelo maltratado, preso para esconder esse fato, a pele pálida e a magreza beirando a desnutrição, definitivamente não eram o que eu esperava de alguém que manda um e-mail como aquele. Mas a minha reação a ele era o que eu, definitivamente, não esperava.

Porque o aspecto descuidado, ao invés de me fazer recriminá-lo, despertou em mim uma vontade completamente diferente, a de conhecê-lo, saber pelo que ele vinha passando, de ajudá-lo. Por que, além de tudo, mesmo com a aparência maltratada, o infeliz ainda era a porra do homem mais lindo que eu já vi na vida, e me fez cogitar realmente contratá-lo, apenas por uma noite, claro. Ainda assim... Puta que me pariu!

Mas, antes, eu precisava saber como

foi que ele chegou até mim. Desde a notícia de que Norma havia conseguido marcar a entrevista, eu criei milhares de teorias sobre como tudo isso poderia ter acontecido, em todas as que envolviam um profissional do sexo, o dito homem era um prostituto de luxo com contatos, e, algum deles, um colega, ou até um amigo babaca, passou meu e-mail pessoal. Eu jamais, sequer, cogitei a ideia de ser só um garoto pobre e desesperado por dinheiro. E, agora, era mais do que curiosidade, era necessidade.

Eduardo sentou-se diante de mim com a postura perdida, e eu me perguntei se não seria esse o caso, apenas desespero.

Talvez fosse isso, sua aparência deixava muito claro que ela vinha passando por maus bocados. Decidi não o abordar diretamente, achei que, se eu estivesse certo e aquela fosse apenas uma medida desesperada em uma situação desesperada, poderia assustá-lo, ou fazer com que se sentisse mal, e esse não era o meu objetivo.

Me aproximei dele, e tive vontade de me aproximar mais, de deixar de lado a distância que uma mesa entre nós imporia e sentar-me ao seu lado. Mas essa era uma ideia estúpida e sem sentido, afinal, para todos os efeitos, isso ainda era uma entrevista de emprego, eu sabia disso. Ainda assim, mesmo com um enorme e maciço móvel entre nós, senti-me sendo atraído, puxado, por seus olhos, tão fodida e contraditoriamente inocentes que estavam me tirando do sério, mas aos quais ele continuava me negando acesso, focando-os em meu nariz.

Seus lábios, rosados e perfeitamente desenhados, com o arco do cupido perfeito eram tão convidativos quanto o olhar. A contradição estava no fato de que se o segundo despertava em mim uma vontade inexplicável de cuidar dele, o primeiro me despertava algo muito diferente, que, certamente, não poderia ser descrito como zelo. Se aquele currículo fosse sério, ele deveria acrescentar uma boca feita para o pecado nele.

Lutando contra a vontade magnética de me aproximar, nem que fosse apenas no olhar, me apresentei e, mais uma vez, o homem me surpreendeu. Seus olhos arregalados, lábios entreabertos e bochechas levemente coradas deixavam claro que ele não faz ideia de quem eu era. O que apenas me intrigou mais. Como ele veio parar aqui? Diante de mim? Com essa postura que é, ao mesmo tempo, assustado e determinado?

Precisando de respostas, fiz o primeiro comentário sobre seu currículo e a porra da resposta fodeu a minha mente.

“Enviei muitos”, ele disse, “Enviei muitos!”, E, assim, como um castelo de cartas, tudo o que eu tinha pensado sobre ele ruiu. Não querendo acreditar no que ouvia, tentei perguntar outras coisas, mas quanto mais ele falava, mais se distanciava do menino inocente que aparentava ser, e mais o homem que digitou um currículo sexual e o enviou para mim por e-mail emergia. Essa percepção me enlouqueceu, porque algo em mim se debatia para cuidar do menino inocente que ele não é. Aquele currículo não foi uma medida desesperada, mas friamente calculado. Ele estava disposto aceitar a proposta de quem quer que fosse que a contatasse primeiro, disse-me com todas as letras.

Tudo isso me tirou do sério, a cada palavra que saia da sua boca, meu corpo enrijecia mais e meus pensamentos tornavam-se mais embaralhados. A necessidade súbita de protegê-lo guerreava contra o julgamento que eu jamais me impediria de fazer, afinal, era ele quem estava fazendo isso consigo mesmo. E, por último, havia o pior dos problemas: que, apesar do motivo de tudo isso permanecer intacto, era apenas com ele que eu estava preocupado, irritado e queimando de ódio. Era não ser capaz de protegê-lo de si mesmo que me incomodava, ao invés da pergunta que continuava sem resposta: como ele chegou até mim?

Perdi o controle. Pura e simplesmente, precisei dizer alguma coisa que a enlouquecesse na mesma medida em que eu estava me sentindo enlouquecido. Qualquer coisa. Perguntei sobre um trabalho único tanto para irritá-lo, quanto, porque, apesar de tudo, alguma parte doente de mim ainda queria saber. Mas não adiantou, como a todas as perguntas que fiz antes dessa, ele respondeu com firmeza e propriedade, negando a mim o que eu tanto queria, vê-lo descontrolado.

Mas eu precisava disso. Precisava vê-lo descer daquele pedestal de segurança absurdo, tanto quanto precisava de ar para respirar e de água para viver. Vasculhei seu rosto, invadi o olhar que ele tanto me negava, investiguei cada um dos pensamentos que me foram entregues e, percebendo o quão orgulhoso ele parece do maldito currículo, ataquei-o! Questionei sua veracidade, o que, levando em conta nossa conversa até aqui, nem mesmo é surpreendente, mas foi o suficiente, finalmente ele criou coragem de me encarar e eu pude vê-lo por inteiro. Eduardo explodiu. Perdeu o controle, ressentiu-se e, em nenhum outro momento desde aquele em que esses olhos azuis pálidos me viram pela primeira vez, o infeliz esteve tão malditamente bonito.

Seu peito sobe e desce, ele também parou de tentar controlar a respiração, como vinha fazendo antes. Seus lábios estão entreabertos e seus olhos queimam de raiva. É bom, Eduardo? É fodidamente bom perder o controle?

− Por que a raiva, Eduardo? Eu só quero ter certeza do que vou receber aquilo pelo que vou pagar! - Meu rosto se aproxima do seu sem que eu tenha qualquer controle sobre isso, ficamos tão próximos, que respiramos o mesmo ar. Sinto minha calça ficar cada vez mais apertada, mas realmente não quero pensar sobre as razões disso agora. Ele, mais uma vez, aspira profundamente, se embriagando com meu hálito. Seus olhos se fecham e eu retribuo, bebendo sua imagem, reparando em pequenas sardas ao redor de seu nariz, agora que estamos tão perto.

Passeio meus olhos por seus cílios longos, pelas maçãs salientes de seu rosto, pela curva deliciosa dos lábios, e aproximo minha boca, deixando-a tão perto, que basta lamber meus próprios lábios para lamber os dele também a atração por ele é fodida. Eu o quero, quero como há muito tempo não me lembro de querer qualquer coisa ou pessoa.

− Eu já disse que nunca menti no meu currículo! - Dessa vez, sua voz sai num sussurro, tão afetado pela proximidade inevitável entre nós quanto eu. O cheiro dele, de sabonete e algo único, algo dele, me envolve inteiro, fazendo-me passar meu nariz a milímetros da sua pele, desejando que fosse a língua.

− Nem sobre o seu cuzinho virgem, pronto para mudar de status, Eduardo? - pergunto, com a boca quase colando na sua e ele abre os olhos. Uma expressão de horror toma conta do seu rosto, ele impulsiona o corpo para trás e vai tropeçando, esbarrando e derrubando a poltrona em que antes esteve sentado, prendendo os pés no tapete, sacudindo os braços em um desespero evidente, e que me arranca do torpor de desejo apenas para me lançar em um outro completamente diferente, um que eu não reconheço, mas que já não gosto.

Franzo minhas sobrancelhas e dou um passo à frente, com a intenção de alcançá-lo, mas ele finalmente para de andar quando bate com as costas na parede e estende os braços com as palmas das mãos viradas para mim em um sinal universal de pare, e eu o faço.

− O-o-q -o que vo-você di-disse? - A voz, diferente do orgulhoso de segundos atrás, agora, assim como seu corpo e olhar, é trêmulo. Eduardo se agarra à sua bolsa, que só agora noto, esteve pendurada em seu ombro durante todo este tempo. Ouço sua pergunta, sei qual é a resposta, só que, agora, com as névoas de desejo e raiva dissipadas, tendo apenas preocupação com ele pairando sobre mim, percebo que repetir as palavras ditas com a única intenção de descontrolá-lo é muito difícil.

− Eu... - Começo, mas não sei como concluir, e paro. Levo as mãos aos cabelos, puxando-os para trás.

− O que você disse? - pergunta de novo, e, dessa vez, a voz é firme, gritada.

Abro a boca e fecho-a algumas vezes antes de encontrar o que dizer.

− No seu currículo, no seu currículo dizia que você tem um cuzinho virgem pronto para uma mudança de status.

− Ai meu Deus! - balbucia e seus olhos se arregalam, perplexos, em choque absoluto, sendo tomados por lágrimas brilhantes, o que me deixa totalmente confuso. Volto a ensaiar dar passos em sua direção, mas ele move a cabeça freneticamente, dizendo que não. Seu pescoço e rosto assumem uma coloração vermelha e, ele está chorando, me deixando fodidamente perdido.

− Ai meu Deus! A internet não caiu! - grita, mas a voz sai sussurrante, oca e fantasmagórica, antes de ele sair correndo e passar pela porta da minha sala como um raio. Antes mesmo que eu me dê conta do que estou fazendo, já estou em movimento, indo atrás do cara que provocou mais sensações em mim nos últimos vinte minutos, do que qualquer outro durante os meus trinta anos de vida, mas ao chegar ao elevador e ver as portas se fechando com ele dentro dele, percebo que não foi por mim que corri, foi por ele.

Tento alcançar as portas, mas o elevador entra em movimento e eu me vejo perdido no meio do hall já vazio de funcionários em função do horário. Jhonatan aparece correndo e eu o dispenso com a mão antes de tomar as escadas e descer 42 andares de degraus em absoluto desespero. Puta que pariu!

Eu precisava ter investido na tecnologia de elevadores mais rápido pra porra do prédio, caralho?! Não vai dar tempo, não vai dar tempo...

Chego ao térreo ofegante, suado, irrompo pela porta corta-fogo da escada de emergência e os seguranças do saguão vem todos na minha direção, mas o elevador jaz aberto, parado e vazio.

− O homem que desceu, onde ele está? - Grito enquanto corro na direção da saída do prédio, avançando pelas portas automáticas e sendo atingido em cheio pelo ar quente da noite da avenida paulista. Os seguranças, todos eles, correm atrás de mim, provavelmente sem ter ideia do que está acontecendo.

− Foi para a direita. – O que está mais perto de mim, responde, e enquanto eu corro em um ritmo mais rápido do que em qualquer das minhas corridas matinais, eles continuam em meu

encalço, juntos, devemos estar formando uma imagem muito interessante, porque vários carros diminuem a velocidade para nos observar. Passantes, literalmente, interrompem suas caminhadas para fazer o mesmo.

Eu ignoro a todos, varro as ruas iluminadas por luzes brancas e florescentes atrás daquele corpo pequeno, da calça jeans velha, dos cabelos presos em um rabo de cavalo alto, mas nada, nem sinal dela. Algumas ruas depois, meus olhos finalmente encontram algo que os faz pararem quietos, mas não é ele. É um ponto de ônibus, um ônibus acelera seu caminho para fora da parada, liberando minha visão para o que estava atrás dele. Uma cobertura vazia, basta isso para que eu saiba, eu o perdi.

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O documento de identidade sobre a minha mesa me encara de volta, enquanto eu me pergunto o que fazer. Cinco dias. Cinco dias desde que recebi aquela porra de e-mail, três dias desde que o homem entrou na minha sala, me irritou, provocou, me deixou de pau duro, me tirou do sério e depois saiu correndo feito um louco, deixando para trás seu documento de identidade na recepção do prédio.

Eduardo Salvador Porto, vinte e dois anos, nascido em São Roque, está em São Paulo há quatro anos. Não é um puto, está desempregado há nove meses, vem procurando emprego desde então, mas seu histórico ruim nas vagas que já ocupou não facilita sua contratação em nenhuma empresa de ramos nos quais ele já tenha trabalhado, aparentemente, ele agir como alguém que não leva desaforo para casa não foi privilégio meu. Sorrio ao pensar nisso, o maldito do garoto é pequeno, mas bravo.

Ele não é um puto. O que me leva a pergunta que está me enlouquecendo desde a manhã de hoje, quando recebi o produto de algo que eu deveria ter feito no momento em que Norma me disse que havia conseguido marcar a entrevista, mandar investigar o dono do currículo. Meu cara me ligou há quase dez horas atrás, o que só fez com que meu dia pudesse ser declarado como oficialmente perdido, porque não importou o que tentei fazer, o fim foi sempre o mesmo, meus pensamentos correndo de volta para Eduardo aqui, na minha sala, tão perto de mim que seu cheiro me impregnava e eu conseguia contar as sardas sobre o seu nariz. Ou, então, para a pergunta de um milhão de dólares, se ele não é um puto, que porra estava pensando ao me enviar um e-mail como aquele?

E algo que ele disse, não me sai da cabeça. Desde que me dei conta de que o havia perdido, já repassei os acontecimentos daquela noite na minha mente um milhão de vezes. Ele disse que a “internet não caiu” o que isso deveria significar? Porra... além disso, ele mentiu, ou não mentiu, dependendo do ponto de vista. O fato é que ele realmente enviou muitos currículos, mas apenas um como o que eu recebi, o meu. Por quê?

Esfrego as mãos no rosto, como se isso pudesse expulsar ou amenizar o enorme fluxo de pensamentos, hipóteses e perguntas que atravessam meu juízo. Expiro com força. Por que eu quero tanto saber disso? Por que não enviei essa porra de documento por um motoboy, já que eu tenho o endereço do maldito? A pergunta me faz soltar um bufo indignado, mais uma coisa para minha cabeça, aquele homem, daquele tamanho, mora no pior lugar possível. Bem no meio de Paraisópolis, o maior bairro favelizado do estado, porra! Ele quer me enlouquecer! Não podia morar em um bairro normal, tranquilo e que não me trouxesse preocupação?

− Puta que pariu! - Falo em voz alta para ver se faz alguma diferença. Não faz. Por que caralhos eu me importo? Por que, porra?! O relógio, pendurado sobre a porta do escritório, me diz que já passa das oito da noite. Talvez seja também a hora de eu admitir para mim mesmo, puta merda! Mil vezes puta merda! Admitir e fazer o que com a admissão? Meus olhos voltam a procurar a imagem que tem me atormentado dia e noite, e encontram o rosto fino, de pele clara e sardas espalhadas impresso em uma foto no documento de identidade sobre a mesa.

Ele tinha dezoito anos quando tirou essa foto. Já era lindo... será que ele decidiu se prostituir? Será que cansou de procurar um emprego? Lindo desse jeito, não seria de se admirar, mas, então, por que o único movimento que fez nesse sentido foi o maldito e-mail? São perguntas demais e respostas de menos..., olhando para o documento, tomo uma decisão, é hora de buscar respostas, e só tem um lugar onde posso encontrá-las.

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Comentários

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Simplesmente estou preso nessa história como a mt tempo n fico. Continua logo pfvr!!!

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Por favor, não faz isso com a gente. Estou com a cabeça pegando fogo com tudo que aconteceu e você ainda deixa a gente nesse vácuo. Já nem estou mais ansioso, estou com os nervos a flor da pele. São dois polos opostos mas que podem se completar, preste muita atenção no que você vai aprontar, podemos ter um puta final feliz, coisa de sonho ou uma tremenda desilusão como as porradas que a vida costuma nos dar. Sua história é linda, muito bem escrita, com detalhes, por favor não demore muito. Obrigado.

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Um conto tão impactante e instigante. Como será que vai acontecer quando ambos se reverem?

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