Diários de caça - Capítulo final - Ciclo da Vida

Um conto erótico de Fabio Mendes
Categoria: Homossexual
Contém 4119 palavras
Data: 15/04/2023 18:35:04

- Está vendo, Fabio? É uma fêmea. E está grávida.

Disse meu pai. Reconheci tudo naquela cena. O lugar, os animais. Eu, anos mais novo e meu pai, no auge de sua vitalidade. Soube logo de cara que era um sonho, e torci desesperadamente para não acordar.

O vi pegar a fêmea e soltar, e a mesma sair correndo com a boca cheia do alimento que usamos de isca.

- Mesmo os preparadores precisam ter respeito. Não existe vida sem um ciclo. Assim como nascemos, crescemos e morremos, o alimento passa das plantas aos animais, dos animais entre eles e depois vai aos fungos e bactérias retornando para a terra.

Meu pai, em toda sua sabedoria e eu, de volta um garoto, bebendo de suas palavras.

- Caçar por puro esporte, sem um objetivo, e pensando apenas nos seus ganhos sem se importar com aquilo que deixa é loucura. O homem não se tornou o superpredador e sim seu parasita. Pois pregadores preservam. Rles caçam, mas se preocupam em construir algo com aquilo. Diferente da praga que devora tudo e depois sai sem deixar nada pra trás. Sem dar as chances de algo bom crescer de novo e proliferar. Você é um caçador, Fábio. Não um parasita. Não se esqueça disso.

- Sim, papai – falei entre o sono e o despertar, naquela manhã de domingo.

Acordei e levantei com lágrimas nos olhos. Olhei para o lado e Amir dormia. Nu, de costas pra mim. Respirando profundamente em pesado sono, após a canseira que lhe dei na noite anterior.

Naquela noite eu quase havia sido pego com as calças arriadas, se não fosse a atuação de minha exageradamente simpática vizinha, que prendeu Amir em um longo assunto desnecessário na portaria, dando tempo de meu convidado se vestir e fugir pela escada de incêndio. Devia agradecer também a José, o segurança de meu prédio, que havia me alertado da chegada sem aviso prévio de meu namorado. José, que também era usufruto de minhas escapadas, ficou muito feliz em me agradar e assim garantir sua vaga nas gozadas ocasionais que lhe dava na cara quando terminava o expediente. Ele adorava quando eu ejaculava em seu rosto depois de um caprichoso sexo oral

De qualquer forma, o sexo na surdina foi interrompido e Amir acabou recebendo todo o rompante que eu havia preparado para o jovem que hoje sequer lembro o nome. Algo que recebeu sem reclamar.

Na mesa do café da manhã, eu estava perdido em meus pensamentos, sabendo que Amir falava sem parar sobre algum assunto ao qual eu devia estar participando, mas sem conseguir.

- Então? O que acha? – o ouvi falar.

- Desculpe – despertei, de repente – Não vai dar.

Eu nem sabia sobre o que ele estava falando, mas eu já estava entrando em outro assunto.

- Como assim, não? Você vai adorar a Síria. Não vai ser difícil conseguir um visto pra você e não se preocupe com a língua. Eu guio você.

- Você não está entendendo. Não dá mais – falei em um suspiro. Não sabia como dizer aquilo sem que fosse da forma mais brutal e sincera. Eu me sentia sufocado e precisava gritar. – Isso, não dá mais.

- Fábio. Você está me preocupando. O que não dá mais?

- Nós dois, Amir. Não da mais. Não posso mais fazer isso. Com você, comigo. Não consigo mais.

- Fábio...

- Eu te trai, Amir. – descarreguei – mais de uma vez.

Silêncio. Amir com uma expressão indecifrável no rosto. Como uma estátua.

- Mas... – ele arriscou, sem saber exatamente como continuar dali – Você diz isso porque está arrependido e...

- Esse é o problema. Eu não estou arrependido. No começo eu tinha uma justificativa. Ou achava que tinha. Eu nem lembro mais. Na verdade nem sei mais porque continuo.

- Então você está dizendo isso pra que? Pra zombar de mim?

Pela primeira senti um algo semelhante a um sentimento humano em sua voz.

- Não. Eu só... Só estou cansado. Não sei que merda é essa que eu me tornei. Mas não sou eu. Não é o que eu quero ser. Isso começou errado desde o início e eu não quero mais fazer isso.

- Mas Fábio. Ainda podemos fazer dar certo e...

- Como, Amir? – revoltei – Pelo amor de Deus, homem. Tenha dignidade. Briga comigo, me bate se quiser. Faz uma cena ou simplesmente me despreza, pois eu sei que mereço. Mas para de se humilhar. Para de mendigar migalhas. Só... Para.

Achei que na primeira vez que terminamos eu tivesse sido convincente, mas agora percebi que sequer cheguei perto. Naquela manhã sim, eu falava com convicção. E Amir tinha certeza de que naquela vez eu falava sério. Que era definitivo.

Acho que por isso levei aquele soco. Pois pela primeira vez, sabendo que não teria mais volta, ele não tinha mais nada a perder.

Nunca fui de apanhar calado. Mas não quis revidar. Apenas me levantei do chão, pois o golpe havia me derrubado da cadeira. Limpei a linha de sangue que escorria de meu lábio e esperei.

Amir ainda estava com raiva. Com razão. Mas também estava assustado. Pois nem ele esperava aquilo. Amir nunca foi um homem violento. Aquela relação tóxica havia destruído nós dois. Ambos éramos animais feridos, violados e raivosos com o mundo. Não nos reconhecíamos mais, não éramos capazes sequer de chegar perto sem nos ferir.

- Me desculpa – pedi.

Ele saiu. Pegou as coisas que achou dele pelo apartamento e saiu. Apenas me dignou a palavra quando já estava na porta.

- Eu te odeio.

Não era verdade. Mas eu quis acreditar que sim. Era mais fácil.

Por incrível que pareça, eu não me sentia culpado, ou magoado. Apenas aliviado. Quando comecei aquela conversa kamikaze, eu só queria acabar o mais rápido possível. De fato, eu havia me tornado um parasita.

Acho que pela primeira vez me atentei para a decoração daquele apartamento e notei que não havia vida ali. Nenhuma planta ou animal. Nada. Só móveis. Eu estava sozinho.

- Acho que preciso arrumar um gato – pensei sozinho, talvez uma forma de fugir do cerne da questão que acabara de explodir em minha cara.

*

No dia seguinte, liguei para Veneza. E disse para ela que precisava de um período sabático. Que ia me desligar da empresa para focar em outros projetos.

Ela de cara notou haver algo errado, mas não tentou se aprofundar no assunto.

- Tire o tempo que precisar. – mostrou-se solicita - Só torço muito que você esteja pronto pra voltar daqui há uns três meses. Pois vamos iniciar o projeto no Chile e você sabe como o quero em minha equipe.

Agradeci a confiança e prometi pensar. Eu não sabia o que me esperava. Mas também não quis entrar no assunto com ela, até porque Amir também fazia parte de sua equipe. E eu não ia colocar o peso de decidir entre nós dois em seus ombros.

Talvez fosse melhor sair de cena com dignidade. Eu ficaria bem. Tinha trabalho para mim. Já fui assediado por umas três empresas enquanto trabalhava com Veneza, as quais recusei por estar satisfeito onde estava. Sempre pintava trabalhos por fora também. Enfim. Eu sobreviveria.

E também, três meses era muito tempo. Quem sabe o que o mundo me reservaria? Eu, sinceramente, naquele momento, não queria saber.

E foi na manhã seguinte que eu, sem necessariamente pensar a respeito, decidi que minha vida precisava de uma reiniciada. Então, peguei o primeiro avião seguido do primeiro ônibus disponível para minha cidade natal.

Não avisei ninguém, apenas as 21h estava eu batendo na porta da minha mãe.

O rosto dela foi mudando de expressão rapidamente, da dúvida para a surpresa, então felicidade, depois preocupação. Em questão de segundos ela se perguntou o que havia trazido seu filho de volta assim de repente, sem avisar. Porém, rapidamente ela também percebeu que talvez não seria a hora de questionamentos. Então, apenas sorriu da forma amável que eu me lembrava e me chamou para entrar. Me ofereceu aquela janta simples e caseira que me encheu de apetite. Depois, me guiou até meu antigo quarto, o qual fez questão de manter de jeito que eu deixara, apesar de minhas constantes insistências em aproveitar aquele espaço para algo mais útil.

Não me lembro quando foi a última vez que dormi tão profundamente.

Na manhã seguinte, o cheiro de ovos mexidos me despertou. Desci até a cozinha e minha mãe sorriu, mandando eu me sentar. Ao me por o prato, percebi que ela tomara o cuidado de ajeitar os ovos de forma que parecessem com o desenho de um leão.

- Quantos anos você acha que eu tenho, dona Maria? – brinquei.

- Se não quiser, eu tiro.

Eu rapidamente puxei o prato para mim antes que ela cumprisse a ameaça.

Sorrimos um para o outro e eu agradeci, comendo com vontade. Ela ficou me olhando comer, o que me deixou sem graça. Resolvi puxar assunto, para me deixar mais a vontade.

- Me desculpe por aparecer assim, sem avisar.

- Você sempre foi meio impulsivo. Sabe que até estava com saudades disso? – riu – Como quando você se metia naquelas matas de repente e só voltava de noite. Depois da terceira vez que você fez isso eu até parei de ligar para o necrotério, hospital e para seu pai.

Ri, saudoso.

- Bons tempos – então, olhei em volta – E a maninha?

- Está dormindo na casa do noivo.

Aquela informação me pegou de surpresa.

- A senhora a deixa dormir na casa do noivo antes do casamento? Onde diabos eu vim parar?

- Sem nomes feios na mesa do café – me repreendeu, deixando claro que algumas tradições ainda deviam ser respeitadas – Mas sim, sua irmã sempre teve juízo, diferente de você. E também, depois de tudo o que aconteceu, sei que me preocupava demais com o que essa gente desta cidade pensa. Em vão. Eles sempre vão pensar besteira, não importa o que façamos. E também, a opinião deles vale tanto quando cocô de baratas.

- Nada de nomes feios na mesa do café – lembrei e ela riu.

Terminei de comer e, de repente, percebi que seu olhar se tornou mais triste.

- Eu queria te pedir desculpas – soltou – Não estive do seu lado como devia quando... Aquilo aconteceu.

- Mãe. Você não tinha como saber e...

- Não. Eu tinha sim. Mas escolho ser cega. Você é meu filho e eu cheguei a duvidar de você. Como sabe, assumi a igreja há alguns anos e desde então, recebo o testemunhos de alguns jovens da época de Felipe e...

Sua voz tornou-se amarga. Eu me levantei e a abracei por trás. Ainda sentada e sem forças para me encarar, ela apenas segurou meus braços enquanto chorava.

- Diz que me perdoa – pediu

- Nunca lhe guardei mágoas para precisar perdoar. Mas se te fizer sentir melhor: sim, eu te perdoo.

- Obrigado

Ficamos em silêncio naquele abraço que eu aproveitei tanto quanto ela.

Naquela tarde, ela estava cuidado do jardim. Parte da casa que floresceu e muito em minha ausência. Acredito que posso atribuir essa evolução a ausência de um garoto hiperativo que gostava de brincar com a bola em cima das flores.

Enquanto estávamos juntos, contei a ela sobre meu relacionamento. Sobre Amir e como tudo terminou. Nunca conversei tão abertamente com ninguém a respeito de meus sentimentos. Nem com papai. Ela ouviu atentamente, começando a falar apenas quando eu tivesse botado tudo pra fora.

Ela então começou a podar uma de suas plantas.

- As vezes, quando uma planta começa a dar muitos ramos, eu fico com pena de podar. É triste sabe? Ter de arrancar uma parte dela. Parece cruel, errado. Mas muitas vezes é necessário. Fico tentada a deixar as coisas como estão, achando que tudo vai se resolver sozinho. Mas não é assim, não é? As vezes precisamos cortar, sangrar na própria carne. Pois não é porque estamos já acostumados a uma coisa que ela é boa para nós.

A vi tirar o ramo e preparar a terra de um vaso.

- Achamos que estamos matando, mas na verdade estamos salvando. A árvore é forte o bastante para viver sem o ramo e poderá inclusive crescer melhor e mais forte sem ele. E muitas vezes, tudo o que o ramo precisa é se libertar do restante da árvore para começar de novo e crescer sozinho.

E terminou de plantar.

- A senhora é muito sábia. – comentei

- Vou encarar isso como um elogio, apesar de seu tom de surpresa – riu-se.

- Não é isso. Só... – fiquei encabulado – E que parece um tipo de conversa que eu tinha com meu pai.

- Seu pai gostava das metáforas da natureza. Mas eu também conheço algumas – rebateu, sem modéstia – mas você sempre foi ligado ao seu pai. Não estou reclamando, gostava de ver como vocês dois se davam bem. Admito, tinha uma pontada de inveja uma vez ou outra. Mas era bonito de se ver. Assim como eu e sua irmã somos próximas, você e seu pai eram uma dupla e tanto.

- Sinto falta dele – admiti.

- Eu também, meu amor. Eu também.

Naquela tarde, fui apresentado ao meu cunhado. Devo admitir que por mais evoluído que eu possa ter me considerado, ainda assim senti brotar em mim aquele instinto machista e superprotetor, que vê como ameaça qualquer outro macho que adentre seu núcleo familiar. A perspectiva daquele homem ter deflorado minha irmãzinha me encheu de vontade de ter uma conversinha séria com ele, de homem para homem

Mas bastou o conhecer melhor para saber que aquele garoto tão educado e introvertido logo seria devorado vivo pela astúcia de minha irmã. Meu faro também não tinha detectado nenhum enrustido, então ela não estava sendo ludibriada. Ela estava segura, enfim. Escolheu fazer faculdade de agronomia na cidade ao lado, mantendo assim os vínculos com a cidade. Diferente de mim, minha irmã gostava de lá, apesar das pessoas. Era bom saber que ela sempre estaria lá para a mamãe.

O período que passei com minha família me ajudou a dar a reiniciada que precisava em minha vida. Fechar de uma vez a porta daquele ciclo para poder enfim iniciar outro. Quando voltei, entendi que não fazia sentido continuar no Espírito Santo, tão perto de Amir e da vida que partilhamos. Mudança não era nenhum bicho de sete cabeças para mim. Ao escolher o novo lar, acabei, quase que instintivamente, optando pela mesma cidade em que comecei minha jornada solo. Ela já não era mesma de minhas lembranças. Meus antigos amigos já nem estavam lá. Sequer Don Pedro, que pelo que soube, tinha partido para morar em Portugal.

Mas fui bem integrado, ainda assim. Vivi minha vida com calma. Trabalhei, não para Veneza, estudei e me diverti. Descolei uma transa ou outra. Nada sério, nem tão excitante como nos meus tempos de caçador. Na verdade, desde meu namoro, senti que aqueles instintos que antes me guiavam foram me abandonando e eu ainda não tinha decidido se isso era bom ou ruim.

Isso até um certo dia, que pode se chamar de um ponto de mudança naquele novo paradigma. Foi numa tarde de sábado em que eu, sem mais nada para fazer, dei uma volta no shopping para almoçar. Entrei em um restaurante árabe, comida que havia aprendido a apreciar e depois evitar graças a Amir.

Foi na entrada que a encontrei. Demorei para reconhecer, tinha o cabelo mudado, estava vestida de forma leve e natural, longe dos terninhos com os quais me habituei a enxerga-la quando trabalhava comigo na concessionária de Augusto.

- Vera?

Nos olhamos e ela logo sorriu. Só então notei o volume em sua barriga.

- Meu Deus! – esclamei. – Mas como? Digo... Quem?

A resposta veio na forma de um forte tapa em meu ombro.

- Então está vivo, garoto! – e aquela sonora risada que eu conhecia tão bem.

Sim, Vera e Augusto estavam juntos. Meu antigo patrão havia largado a esposa, a qual vivia a reclamar, e se entregado a uma antiga e inconfessada paixão. Da qual ninguém, nem eu nem Vera, suspeitamos.

Pedimos uma mesa para três onde uma conversa divertida se instalou. Como eu sentia saudades daquela energia.

- Então eu finalmente me livrei daquele aquário de tubarões que era minha casa, embora a peixona lá tenha abocanhado uma parte boa de mim no inventário – gargalhou.

Vera, radiante como eu não lembrava de ter a visto, contava as novidades no ramo automobilístico, as roupas que comprava para o bebê e as últimas novidades da cidade, transitando de um assunto ao outro sem eu saber como ela conseguia enreder tantos temas distintos.

Ao final da refeição os deixei comprando o enxoval do futuro herdeiro e me preparei para sair. Todavia, algo me chamou a atenção. Era uma livraria. Não sei porque, mas entrei, levado por uma súbita vontade de adquirir algo para ler. Talvez alguma revista sobre carros, ou algo que me ajudasse no curso de paisagismo que estava fazendo.

Todavia, meu corpo me levou para a parte de biologia. E minha mão instintivamente pegou um exenplar de “O ciclo da vida”, cujo autor eu sequer tinha ouvido falar.

O livro em si falava dos desmatamentos na Amazônia e a maneira como a natureza, se lhe fosse permitido a recuperação natural, fazia para se reeguer diante das catástrofes.

Eu peguei o prefácio, que tinha um tom de auto ajuda, e que talvez por isso mesmo tenha parecido falar tão diretamente a mim.

“Somos parte da natureza, não o contrário. Ela estava na Terra antes de nós, e viverá muito bem sem nós. Sem o homem. Estar em guerra com a natureza é entrar em uma batalha onde nenhum vencedor sairá de lá. Mas uma coisa é certa: não importa o quanto a agredimos, ela se erguerá. Talvez não possamos estar aqui para ver, mas acontecerá. Pois assim é o ciclo da vida. A destruição não abre outro caminho possível que não seja o renascimento. Como o alimento passa da planta ao animal, de um animal a outro, e deste para a terra novamente, assim acontece com todos os seres. Por mais destruídos que pareçam, a natureza sempre vai encontrar forças e um motivo para seguir em frente. Ali reside a verdadeira força de todos os seres que transitam neste planeta batizado Terra”.

- Com licença – escutei uma voz distante, que demorei para associar a algo real e vivo, ainda mais imaginar que estaria tão próximo.

Quando dei por mim, havia um homem ao meu lado. A julgar pelo rosto constrangido e o sorriso amarelo, imaginei quanto tempo ele estaria ao meu lado, talvez esperando eu terminar para enfim resolver chamar minha atenção.

- Desculpe. – repetiu – Eu só... Gostaria de saber se você pretende levar este livro. Não me leve a mal. É que estou atrás dele tem um tempo. Esta já é a terceira livraria que vou e pela internet está dando um prazo de entrega absurdo. Eu precisaria dele para terminar um artigo e... – pediu desculpas com os olhos – se você não fosse o levar, gostaria muito de poder ficar com ele. É o ultimo daqui, pelo que a vendedora me disse.

- Ah sim ... – despertei, olhando mais uma vez a capa e lhe estendendo – sou apenas um curioso no assunto. Não tenho nada tão importante para fazer com ele quanto você.

Ele pegou o livro como se fosse uma criança que recebe seu presente de natal antecipadamente.

- Muito obrigado, mesmo – falou com sinceridade.

Ele devia ter a minha idade, embora o ar intelectual parecesse lhe conceder alguns anos a mais. Tinha a pele queimada de sol, usava óculos, barba bem feita e cabelos cacheados iguais os meus, só que mais curtos. Tinha um belo sorriso, pelo que pude notar na forma como sorria aliviado ao conseguir seu tão procurado exemplar. Vestia camisa branca e jeans. Tinha um porte atlético e olhos e cabelos castanhos. Uma beleza calma e que inspirava respeito.

- Olha, muito obrigado mesmo – tornou a repetir, enquanto folheava o exemplar, conferindo se era aquele mesmo que tanto procurava – Estou numa correria danada. Tenho de terminar o artigo e daqui a duas semanas viajo para uma pesquisa de campo.

Não sei se falava comigo, ou consigo mesmo, mas continuou a narrar sua vida como que para um conhecido de infância:

- Sou biólogo, sabe? Trabalho para a universidade. E vou par a amazônia fazer uma pesquisa a respeito das plantas para... – e riu, de repente. Parecendo se lembrar que eu era um estranho – Desculpe. Aqui estou eu lhe enchendo de informações que não pediu.

- Para dizer a verdade, estava achando interessante. Seu emprego parece ser o dos sonhos. Queria eu... Anos que não entro em uma floresta e fico conectado com a natureza.

- Você gosta?

- Durante anos foi meu estilo de vida e... Não sei. Acho que me perdi no caminho.

Ficamos nos olhando um tempo, sem conseguirmos desviar o olhar. O seres vivos possuem inúmeras formas de se comunicar. Cheiros, olhares, pequenos gestos ou sinais. A humanidade, hoje quase que exclusivamente dependente da linguagem escrita, perdeu muito dessa habilidade, mas não completamente. Ela ainda se encontra registrada em seu código genético, e se manifesta apenas em alguns momentos.

Para um crente ou romântico, aquilo que ocorreu entre nós foi alguma espécie de mágica. Nosso santo tinha batido. Mas não. Tínhamos apenas encontrado um no outro, alguém capaz de entender uma linguagem própria que não era mais comum a ninguém. Como dois cães que, pelo cheiro, se conhecem, identificam e até enxergam afinidades.

- Meu nome é Fábio – falei de repente – Fábio Mendes.

Ri, pois soei formal demais. Não reconhecia aquela sensação que hoje seu bem qual era: nervosismo.

- Prazer, Fábio Mendes – sorriu. Aquele gesto encantador. Então apertou minha mão. Não sei se o suor era meu, dele ou de ambos – Me chamo Arthur Simões.

- Um prazer...

Mais silêncio.

Só fomos despertados por seu celular, que tocou o alarme.

- Desculpe. Ah sim. A veterinária. Tenho de buscar o Thor. Então... Bem. Prazer, Fábio.

Pediu licença e foi ao caixa. No caminho, olhou umas duas vezes para trás.

Continuei estático, sentindo uma vontade louca de ir atrás dele sem saber explicar porque. Era como se meus ínstintos, que desde Amir estavam adormecidos, voltassem com tudo. Mas não era a mesma sensação de tempos atrás. Aquela era nova. Não era aquele desejo primitivo de dar o bote e devorar a a presa, dilacerandl suas roupas. Eu sequer estava salivando. Mas tinha algumas semelhança, uma urgência, eu tinha um desejo enorme de cravar minhas garras e impedir que ele fosse embora.

Então, seguindo esse impulso, andei até o caixa e, como pretesto, peguei o primeiro livro que achei pelo caminho. Ele percebeu assim que me coloquei atrás dele na fila.

- Oi. Que coincidência – e abriu aquele belo sorriso, mostrando estar feliz em me ver novamente, mesmo que com um tempo de ausência tão pífio.

- Sim, eu... Resolvi vir pagar logo.

- Que legal. E o que você... – sua voz morreu quando olhou para o exemplar em minha mão. Percebi seu lábio tremer e um olhar que misturava dó e cuirodade me fitar.

Quando percebi que o que eu carregava era “A vida sexual da milher feia”, me senti encolher como nunca antes.

- Eu.... Eh. Acho que estava querendo adquirir esse livro – e ri de mim mesmo – a verdade é que. Eu só queria ouvir mais de você. De seu trabalho e tal.

O vi morder o lábio, reconheci em seu gesto um pouco do nervosismo que vi em mim.

- Se você não se importar, a pet shop fica aqui mesmo no shopping. Podemos pegar o Thor e tomar um café. Tem um ótimo ali na rua ao lado.

- Acho ótimo. Adoro animais

- Imagino que sim. Que bom que você veio pois, admito que também estou muito curioso para saber mais de Fábio Mendes. Mas fico nervoso em ser insistente.

- Normalmente eu sou mais ... Intenso. Mas hoje confesso que sei como se sente.

- Espero ver essa intensidade em breve – e corou, sabendo ter sido um pouco atrevido.

Por sorte, seu constrangimento foi interrompido pelo pigarro da caixa, que nos aguardava, os próximo a realizarem a compra e colocar a fila de volta a andar.

Deixei o meu exemplar nas desistências e acompanhei Arthur. Talvez eu tenha de fato me aposentado como um caçador. Afinal, cacadores não deviam ter as mãos suando, ou tantas incertezas a respeito de uma presa. Mas acho que ao fim, já era hora de velhos hábitos serem deixados de lado. Afinal, a evolução é necessária. Ou talvez, quem sabe,

eu estivesse experimentando pela primeira vez os prazeres se ser uma presa?

FIM

***

Pois é, pessoal.

É com muito orgulho que entrego o final desta intensa história. Espero que tenham gostado tanto quanto eu. Foi um imenso prazer acompanhar cada capítulo ao lado de vocês.

Agora, é enfocar no "Retorno do Colégio Pracinhas" , que está fervendo na minha cabeça.

A primeira parte já foi publicada na Amazon, e a segunda em produção.

Devo ficar off um tempo para me concentrar.

Um forte abraço e nos vemos por ai.

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Comentários

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Nos informa aqui, por favor, quando você for publicar a segunda parte do segundo livro de Colégio Pracinhas, já li os dois primeiros livros umas 3 vezes kkkkk

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Blz? Cara, você já sabe quando vai publicar na Amazon a segunda parte de "Retorno ao Colégio Pracinhas"? Terminei de ler a primeira e estou doido para ver a continuação. 😁😁😁😁😁😁

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Amei esse conto com todos os que você escreve! E que venha os pracinhas!!!

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Obrigado por ter compartilhado conosco mais essa pérola da sua autoria. É sempre um prazer acompanhar suas histórias e depois ficar ansioso pela próxima surpresa.

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Obrigado Fábio, ótimo conto, como sempre!

Ansioso pela volta do Pracinhas, até lá...

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