POR ESSE AMOR - EP. 08: COMO ASSIM?

Um conto erótico de Escrevo Amor
Categoria: Gay
Contém 2516 palavras
Data: 07/03/2021 03:07:15

A convivência com o Sérgio é um treinamento de paciência. Após o velório de Carla, decidi "refugiar" o meu colega de escola, porém, algumas atitudes dele conseguiam me tirar do sério. Nos primeiros dias, a gente mal conversou, pois, ele vivia trancado no quarto. Aproveitei o período de férias para praticar meus desenhos.

Desenhar foi a minha válvula de escape para não matar o Sérgio. Sempre gostei de dar uma imagem para as coisas que imaginava, como por exemplo, o Sr. Chapéu Coco, também conhecido como meu primeiro amigo imaginário. Era um homem alto, careca, a pele verde e os olhos azuis. Ele sempre aparecia vestindo um terno preto com uma rosa azul na lapela e seu famoso chapéu coco.

As tardes em Manaus são imprevisíveis, entretanto, naquela sexta-feira, o sol decidiu dar uma folga e um clima europeu nos atingiu. Peguei meus materiais de pintura e fui para o jardim. Decidi fazer um desenho do Sr. Dente de Coelho, namorado do Sr. Chapéu Coco. Caramba, ele continua vivo nos meus pensamentos. Lembro de cada detalhe de seu corpo.

— Porquê o coelho está usando um chapéu? — perguntou Sérgio me assustando.

— Nossa, cara. Avisa. — falei no susto, parecendo mais afetado do que gostaria de admitir.

— Relaxa, Saturno. Bem, o papai pediu uma reunião. Me deseje sorte. — Sérgio anunciou como se fosse algo ultra secreto, antes de colocar seus óculos escuros.

— Quer que eu vá? — questionei, orando para uma resposta negativa.

— Não preciso de babá. Mas obrigado.

O dia passou rápido, só percebi que a noite chegou quando os pernilongos estavam fazendo um banquete no meu braço esquerdo. Levantei e estiquei a coluna, ouvi um ossos estralando. Alguns funcionários da casa passam por mim e desejaram boa noite. Entrei e senti um cheiro de comida, então, lembrei que não lanchei e estava morrendo de fome.

O cardápio da noite? Macarrão de abobrinha, smoothie de hortelã com abacaxi e cookies integrais de aveia. Caramba, que mulher sádica que a mamãe foi contratar. Ela fazia de tudo para me levar ao caminho da vida fitness, mas até então, só conseguiu ganhar minha antipatia.

Eu não sou um cara fresco, nunca fui. Sempre procurei entender o lado da outra pessoa, porém, a Lúcia era horrível. Adorava fazer comentários inapropriados, não gostava dela. Tentei conversar com a mamãe, mas parece que o projeto das pessoas carentes de Uganda tinha prioridade. Infelizmente, eu não teria coragem de demiti-la. O jeito era aguentar, coisa que virou minha especialidade.

Após o jantar, fui para a sala e coloquei uma série para assistir. A trama segue a vida de três irmãs que são bruxas, mas nunca desconfiaram de seus poderes. A mais velha consegue mover objetos com a mente; a irmã do meio tem o poder de congelar o tempo e a mais nova pode ler mentes. Achei a temática bacana e assisti até o sétimo episódio.

— Esse velho escroto. — Sérgio praguejou, carregando uma caixa e passando por mim.

Pausei a série e voltei a minha atenção para Sérgio. Ele parecia realmente chateado e dizia várias coisas desconexas. Respirei fundo, levantei do sofá e fui em direção ao quarto dele. A porta estava aberta, então, decidi entrar para conversar. Mudança de humor era uma das principais características dele. O encontrei chorando no chão.

Sentei ao lado dele com certa dificuldade, mas ele não esboçou reação alguma. Sérgio contou que o pai venderia a mansão para pagar algumas dívidas, ele ficaria com 40% da dinheiro arrecadado. Segundo o meu colega, o importante não era o dinheiro, mas sim o valor sentimental. Afinal, seus melhores momentos na vida foram naquela casa.

— Quer saber. — soltei pegando no ombro de Sérgio. — Vamos encher a cara. As bebidas no bar aqui de casa estão novinhos. Acho que podemos estrear algumas garrafas. O que me diz?

— Se eu aceitar vai parar de me olhar com essa 'cara' de pena? — ele questionou limpando as lágrimas.

— Prometo.

Nunca vi tanta bebida na vida. Eram garrafas estranhas e com nomes tão estranhos quanto, como por exemplo, a Vodka Anestasia que lembrava a figura de um grande diamante ou o Conhaque Hennessy que tinha o formato de um violão. Fui na opção mais óbvia e peguei uma garrafa de Johnnie Walker Blue Label. Queria dar um prejuízo para a mamãe e o Sérgio me ajudaria.

— Alexa! Tocar as melhores do Tino! — gritei e minha playlist começou a soar pelas caixas de sons da casa.

Depois do quarto copo de vodka perdi os sentidos. Escutei uma música conhecida. Lentamente, abri os olhos, quer dizer, só o olho direito e percebi que já era dia. Como eu sei? As luzes que saem da janela me deixam zonzo. Não sou uma pessoa matutina, nunca fui e jamais serei, então, não consegui levantar de primeira.

— Droga. Hoje é dia do trote. — pensei, ainda jogado no chão.

Levantei com uma coragem que daria inveja ao Hércules. Tomei um banho demorado. Nem sei por que faço isso, afinal, vou acabar sujo por causa do trote. Na Universidade Federal do Amazonas, também conhecida como Ufam, os trotes são permitidos. Geralmente, os alunos são pintados, humilhados e obrigados a pedirem dinheiro nos semáforos da cidade. Eu não estava muito afim, porém, o Sérgio acabou me convencendo.

Por falar nisso, o Sérgio estava há três semanas morando comigo. O pai dele decidiu vender a mansão em que moravam, e apesar dele ficar com 50% do valor arrecadado, Sérgio decidiu cortar relações com o pai. Tentei achar um meio termo, entretanto, o meu colega foi irredutível.

Nossa relação mudou muito nos últimos dias. Saímos de inimigos para colegas de "apartamento". Se considerar uma casa com 10 quartos um apartamento. Era bom ter mais alguém para conversar. Passei a conhecer um lado diferente do Sérgio.

— Vamos, Saturno! — se tocando da merda que falou. — Desculpa. Santino. Santino.

— Qual é esse teu encanto com o trote da faculdade? — pergunto sentando à mesa e servindo um copo de café.

— É a iniciação da faculdade, cara. Soube que esse ano, alguns cursos vão dar o trote juntos. Acho que Engenharia, Design e Ciência da Computação. — Sérgio fala de uma forma tão animada que dou uma risada. — Por que do deboche?

— Você está tão animado. Isso é bom. Gosto de te ver assim.

— Valeu. Eu devo muito a você. Sérião. Você apareceu no momento que eu mais precisava, sabe. Nem se importou nas coisas maldosas que eu fiz. Nem o meu melhor amigo me procurou nessas últimas semanas.

O tom da conversa ficou sério demais, então, quebrei o gelo pedindo para que o Sérgio procurasse na internet os últimos trotes da Ufam.

Animado, ele afastou a cadeira para perto de mim e mostrou os vídeos que encontrou. Caramba. Que bagunça. Os alunos era sacaneados pelos veteranos. Sério, quem inventou os trotes? Tá, eu sei que socialmente, o trote é uma tradição de todas as faculdades, um tipo de ritual de passagem. Vi em algum lugar, que o trote existe em terras tupiniquins desde o século XVIII, ou seja, não vai acabar tão cedo.

Só espero que não seja algo muito violento. Sei que existem muitas pessoas que passam dos limites, onde uma brincadeira sadia vira algo abusivo. Qualquer coisa, fujo ou fico escondido até acabar. Nada melhor que passar despercebido, né? Já fico nervoso só de pensar em chegar na universidade.

Vamos no carro do Sérgio. Por algum motivo, ele não aceita ir de carona comigo. Eu sou um ótimo motorista, passei no meu primeiro teste de direção. Mesmo contra vontade, entrei no carro dele e seguimos para a Ufam.

No caminho, a gente conectou o celular no sistema de som e descobrimos que temos um gosto musical parecido.

— Isso é Coldplay? — questionei ao ouvir os primeiros acordes de Paradise, uma das minhas músicas preferidas de Coldplay.

— Pode apostar. — ele disse sorrindo, colocando os óculos escuros e batendo os dedos no volante no ritmo da música.

Sim, pode acreditar. Sérgio e eu, cantando "Paradise" aos berros no trânsito de Manaus. Sabe esses momentos únicos, que a gente se sente vivo. Quase no fim da canção, na parte que diz "Ela sonhou com o paraíso", senti a voz do Sérgio um pouco embargada. Talvez, ele tenha associado à canção a sua mãe. Achei melhor deixa-lo curtir a dor e continuei cantarolando o hino perfeito.

Depois de umas cinco músicas, finalmente, chegamos na faculdade. Entrar na Ufam é um processo difícil. Ela fica localizada no meio da floresta, de acordo com o Sérgio, para chegar a pé aos prédios são 15 minutos andando. São várias estradas, existe até mesmo, placas apontando os lugares certos. Demoramos para achar uma vaga no estacionamento, a maioria dos alunos decidiram ir de carro.

Entrei no aplicativo da faculdade e verifiquei o local certo. O Sérgio olhou para mim e sorriu. Ele disse que a partir daquele momento é cada um por si. Respirei fundo e andei em direção ao ponto de encontro do meu curso. Já havia visitado o prédio algumas vezes, porém, ainda conseguia ficar perdido. Os alunos estavam espelhados por todos os lados, alguns gritavam, outros davam gargalhadas. Como sempre, estou só.

"Curso de Design Aqui", avisava uma placa feita com papelão. Sério, isso foi o máximo que os veteranos de design conseguiram fazer? Que merda. Passei uns cinco minutos falando mal da placa, mentalmente, claro. Jamais externalizaria um comentário maldoso sobre qualquer coisa que fosse.

— Gente, você está certíssimo. Essa é a placa mais feia que já vi. — disse uma moça tocando no meu ombro e rindo.

Assustado, virei para ver quem era, entretanto, sou ofuscado por um facho de luz. Caramba, que garota mais linda. É a única coisa que consegui pensar no momento. Ela era alta, olhos cor de mel, rosto perfeito sem qualquer sinal ou linha de expressão. Os cabelos? Um espetáculo a parte. Eram loiros e balançavam com o vento.

— Sim, meus cabelos são maravilhosos, né? — ela disse, mas eu percebo que seus lábios não se mexem.

— Como assim, você consegue ler meus pensamentos? — perguntei com cara de bobo.

— E você consegue ler os meus. — ela me abraçou e começou a dar pulinhos de alegria. — Tivemos uma conexão. Por favor, fala que você vai ser aluno de design.

— Hum. — soltei, entrando no modo Santino com vergonha.

— Me chamo Giovanna Vasconcelos. Sou caloura no curso de design. E você?

— Santino Peixoto. — falei tão baixo que ela pede para eu repetir. — Santino Peixoto! — dessa vez, exagerando na altura da voz.

— Ei. Não pensa assim. Eu sou uma garota diferente. Linda, porém, diferente. Vamos ser melhores amigos, tá?

Convencida? Um pouco, mas, gente boa. Ficamos chocados com a conexão que criamos e acabamos ficando na fila juntos. Enquanto esperávamos, analisei um pouco mais ela. Como qualquer outro ser humano, a Giovanna é mais baixa que eu. Vestia uma calça jeans surrada, uma camiseta das princesas da Disney e um tênis rosa. "Roupas mais antigas que achei", ressaltou Giovanna sorrindo.

E foi assim, dessa forma bizarra, que fiz a minha primeira amiga na faculdade. Achei a Giovanna uma garota estonteante, nunca pensei em fazer amizade com alguém igual a ela. Sabe, aquela famosa frase 'ela é muita areia para o meu caminhãozinho', pode-se aplicar aqui. Só que a melhor parte foi nossa ligação, conseguíamos conversar apenas com o olhar. Nunca vivi isso antes.

A gente se inscreveu juntos e pegamos o mapa do trote. Além de receber o trote, ainda teríamos que encontrar os veteranos no matagal da Ufam. Isso é receita para o desastre. Ainda bem que escolhi roupas leves e passei bastante protetor solar. A trilha que seguíamos era bem sinalizada, então, se perder não era uma opção aparente.

— Ei, Tino. — Giovanna falou usando nossa ligação mediúnica.

— Oi? — perguntei falando mesmo.

— Será que vão usar ovos? Não quero sujar meus cabelos. — Giovanna questionou, enquanto tirava uma touca lilás da bolsa para coloca na cabeça.

— Acho que você veio bem preparada. — brinquei, andando e colocando as mãos nas alças da minha mochila.

São 15 minutos de caminhada. Giovanna e eu conversamos sobre tudo. Ela contou- que tem dois irmãos e foi adotada pelos tios, após os pais morrerem em um acidente de carro. Se mudou para Manaus contra vontade, mas acabou gostando, principalmente, dos garotos bonitos da cidade.

Quando chegou o momento de contar mais sobre a minha vida agitada, tentei não parecer um escritor de dramas barato, só que não existia muita coisa para falar. Morava sozinho em uma casa enorme, estava ajudando meu antigo inimigo e sobrevivendo a cada dia. Então, lembrei do que vivi no Ceará e comecei a narrar as piores férias do mundo.

— Caramba. E tudo isso aconteceu em quatro dias? Suas férias definitivamente foram piores que as minhas. Fui para a casa da minha avó no Rio de Janeiro. Velha racista, homofóbica e louca. Detalhe, o meu irmão Yuri é noivo de um homem. Agora, imagina as festas interessantes que temos em família. — ela explicou dando um sorriso debochado.

— E você é de boa? Tipo, com a situação do seu irmão. Ele estando noivo de outro homem? — a pergunta saiu de forma natural, a Giovanna parou e colou a mão na cintura. — Claro que sim. Vou ser a madrinha desse casamento. O Zedu, noivo do Yuri, é como um terceiro irmão. E tudo bem você ser gay. Só não gostei do tal de Kleber e nem do Sérgio. Você é um santo.

A forma como Giovanna falou me tira um sorriso. Ela é do tipo espontânea, lembrou o Kleber. Eles são pessoas solares, que iluminam qualquer situação. Por um instante, desejei ter encontrado ela antes. A minha vida teria sido muito mais fácil com alguém igual a ela. Infelizmente, sou tirado do meu devaneio. Alguém jogou um balão com água bem no meu rosto.

Esperta, Giovanna ficou escondida atrás de mim. Os alunos que estavam em procissão a caminho do local determinado no mapa foram atacados pelos veteranos, ou seja, uma emboscada. Balões com água, farinha de trigo, ovos podres e tinta, não tive tempo de me proteger de nada. Giovanna saiu gritando igual uma louca: "no cabelo não, no cabelo não". Olhe para frente e vi três veteranos segurando balões. Coloquei a mão no rosto e senti o cheiro de xixi.

De repente, alguém chegou perto de mim e colocou uma algema na minha mão direita, não tenho tempo de fugir. Outro aluno também não tem tanta sorte e ficou preso a mim. Estava com um quilo de farinha no rosto, usei o lenço no meu bolso para limpar um pouco. Não sei o que é pior: o odor do xixi ou do ovo podre.

— Você está bem? — perguntou uma voz familiar.

— Espera... essa voz...

Limpei os olhos, virei na direção do aluno que estava ao meu lado e fiquei em choque. Era o Kleber, quer dizer, um pouco diferente do que me recordo, mas era o Kleber. Enquanto, os alunos eram atacados de todas as maneiras, nós ficamos nos olhando atônitos. Como o Kleber podia estar ali na minha frente? Ele morava em Manaus? Na real, a gente nunca teve tempo de falar sobre essas coisas.

— Santino? — ele perguntou ofegante.

— Como é possível? — questionei em seguida.

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