PARA ALÉM DO VÉU - Capítulo 03 de 07

Um conto erótico de Alison T
Categoria: Homossexual
Contém 2253 palavras
Data: 05/01/2018 14:52:31

* Em algum dia, no fim do ano 2001 *

Quem diria, mais de um ano se passou e amanhã é o aniversário dele. Como o José Mário mudou, meu Deus! Está se tornando um homão, forte e bonito. Estou morta de cansada mas não vou dormir antes de preparar um bolinho. A gente tem muito que comemorar e se Deus quiser, vamos ter muito mais. Isso, meu filho, dorme. Descansa. Adoro ver você dormir, adoro a forma como se desapega do mundo e voa para os sonhos. Como é que a mãe que o teve nove meses no útero não viu que você era homem? Eu, que não tenho o seu sangue, vi no primeiro olhar. Parei o caminhão na mesma hora que vi aquele garoto assustado, com roupas femininas, à beira da estrada. Falei para mim mesma: "olha aí o preconceito fazendo mais uma vítima!" Claro que eu não ia deixar você na rua. Meu ex tomou nossos dois filhos e fez a cabeça deles contra mim, mas Deus não me deixou sozinha e me trouxe você. Você é um menino muito especial, José Mário!

Alisei-lhe os cabelos, fiz-lhe um carinho nos ombros e o cobri com um edredom. Passei um tempo ali, sentada à beira da cama, recordando o dia da sua chegada. O vestido feioso de menina de família fanaticamente religiosa não combinava com ele. O cabelo que seu pai nunca lhe permitiu cortar, também não. Eu o deixei em casa e fui à rua, comprar o básico para um rapaz. Seus olhos brilhavam quando decepei seu cabelo com a tesoura e arrematei o corte à maquina, ao estilo militar. Meu queixo caiu quando vi seu corpo semidespido, após o banho. Podia-se dizer que não tinha nada de seios. Os ombros largos combinavam com o maxilar anguloso e o queixo largo. De toalha na cintura e torso nu, como se tivesse agido assim por uma vida. E, óbvio, o melhor jeito de protegê-lo era mostrá-lo. Eu o integraria aos rapazes do meu trabalho. Não seria difícil. Sua voz era grossa e a falta de barba se explicava pela idade.

Se eu dissesse que foi fácil, seria mentira e se dissesse que foi difícil, também seria. Os rapazes questionaram por que cargas dágua eu tinha arranjado um ajudante tão magrinho e despreparado. Respondi-lhes que basicamente todos eles eram magrelos e despreparados quando chegaram, logo, não tinham motivo nenhum para criticar. José Mário não era tão fraco quanto os rapazes julgavam, dia após dia ia se tornando mais forte e logo se mostrou muito habilidoso para dirigir. Tinha ótima noção de espaço e se situava fácil.

Mas nem tudo eram flores. José Mário era um garoto que menstruava e tinha que esconder o fato a qualquer preço. Tinha cólicas severas, passava a noite jogado na cama se retorcendo de dor e muito antes do sol nascer, já estava de pé, pronto para encarar mais um dia de trabalho, com todas as consequências inerentes ao período. Ir ao banheiro só não era mais complicado porque ele urinava de pé. Não sabia explicar como, só sabia que desde a infância, sempre conseguiu, vai ver, nasceu sabendo.

Logo quis se hormonizar e como não podia deixar de ser, eu o apoiei. A testosterona lhe deu músculos, alguma acne (pouca, oh pele abençoada!), pomo de Adão, pelos tipicamente masculinos e barba. O surgimento dos caracteres secundários o tornou melhor aceito entre o grupo e bastante atraente aos olhares femininos. Atualmente, estava na fase de só usar camisa para ir à rua e dormir só de cueca. Entre suas pernas, o genital se avolumava. Por ora, a timidez e o medo o impediam de exercer sua sexualidade mas estava muito visível que não ia aguentar muito tempo, afinal, era um garoto saudável, com os mesmos desejos de tantos outros.

Como sua mãe do coração eu me preocupava com seu futuro. Precisava estudar mas... como? Cadê documento? Até ali, Deus tinha nos livrado de todas as encrencas. Por mais que pensasse acerca desse problema, só enxergava um meio de resolvê-lo: levar o José Mário a um cartório e fazer uma nova certidão de nascimento. Ele ia ficar sem o nome do pai mas... e daí? Problema mesmo seria encontrar um tabelião que concordasse em praticar o ato. Certidões de pessoas nascidas em casa já não eram tão comuns. Eu tinha me informado e o "certo" era procurar um advogado e entrar com uma ação de registro tardio. Deus me livre. Não tinha a mínima chance de dar certo. Ia ter que ser direto no Cartório. E eu ia ter que fazer o que não queria: apelar para o Gutão, o cara que fez meu casamento.

Gutão era um espetáculo de homem, porém, casado. Tinha fama de "viúvo negro" porque duas de suas ex tinham morrido e sua mulher estava com câncer. Quando me casei, Gutão me infernizou até o limite. Era discreto mas arranjava os mais variados recursos para me cientificar de que queria ter um caso comigo. Há quatorze anos eu o conhecia e em todos eles, as insinuações para a cama chegavam a mim. Eu morria de medo de mulher na minha porta, fazendo escândalo e me tirando de vagabunda mas já que a mulher do Gutão estava quase morta... se ele quisesse a minha buceta para registrar o José Mário... eu dava, ué! Dava e lavou, tá nova. Se gostasse, dava mais. Se ele dissesse que não fazia o registro, eu ia botar o cu na mesa. Nunca tinha dado meu cu mas se fosse ruim, ninguém daria. O plano era esse: depilada, de vestido e sem lingeries, iria ao Gutão. Ele ia me ajudar a resolver o problema dos documentos do meu menino.

O tempo passando e o bolo por fazer... Ainda bem que ao menos o aniversário desse filho eu posso comemorar. Um dia, Camila e Victor vão crescer e vão descobrir que eu nunca os abandonei, seu pai é que os tirou de mim. Levou-os para passar um fim de semana, nunca os devolveu e me ameaçou de todas as formas.

Eu, Ieda, nunca fui mulher de ficar prostrada. Na falta de melhor preparo escolar, fui ser motorista de uma van escolar. O ex não dizia que eu dirigia melhor que ele? Pois então, eu ia fazer o que sabia. Ia ganhar a vida honestamente. De motorista da van, passei a caminhoneira e achei meu lugar no mundo. A vida na estrada foi feita para mim. Fui recebida com preconceito, entre os colegas de profissão. Primeiro, por ser mulher e segundo, por ser bonita. Mulher bonita, segundo o pensamento tosco dos meus colegas, era para estar em casa, sendo sustentada por um homem. Mas se o homem que eu tinha me traiu e me deixou sem um tostão, e ia fazer o que? Me encostar no próximo e esperar o novo chute na bunda? Mas nem fodendo! Depender da minha mãe, viúva e pobre? Jamais! Cavei uma vida minha. Uma vida dura mas totalmente minha. Todo dia vivido era uma vitória contra o preconceito.

Às vezes, me permitia algum encontro sem compromisso. Agora, José Mário comia as unhas por mim, cada vez que eu saía com um ficante. Fosse a hora que fosse, quando chegasse em casa, ele estaria de pé, andando em círculos, todo preocupado. Meu menino que me abraçava com o coração aos saltos. Eu tinha orgulho dele.

* Final do ano 2000 *

Cena de uma tarde domingueira: estou sentada na cadeira de balanço que pertenceu à minha avó e enquanto leio um jornal, José Mário está deitado no sofá, com a cabeça no colo da minha mãe, que lhe enche de carinhos que ele, carente e amoroso como é, recebe feliz da vida.

Quem te viu e quem te vê, dona Gilda! Fez o auê do auê, quando lhe contaram que havia um garoto morando comigo. Deu barraco e até gritou!

-Mas era só o que me faltava, Ieda! Todo santo e bendito dia que Deus dá, me perguntam por que você abandonou um marido que nunca deixou faltar nada, que não tinha vícios e nunca te maltratou, só por causa de uma aventura. Nem tirando seus filhos o Henrique conseguiu dobrar esse seu orgulho! Pra que isso? Pra trabalhar de motorista, de caminhoneira, ganhar nome de piranha e viver na boca do povo? E quando eu acho que você não tem mais o que inventar para nos fazer passar vergonha, escuto por boca dos outros que você perdeu o restinho da decência e deu para sustentar um garotão! Deus do céu! Perdi as esperanças do seu ex marido te querer de volta. Dizem até que o garoto é menor e que você vai ser presa! Um menino que ainda nem tem barba, enfiado na sua cama, que baixaria! Tudo isso é vontade de abrir as pernas? Que fogo, Deus me livre!

-Mãe... Não misture as estações. Meu casamento acabou há três anos. Esse é um assunto. O Henrique tirou as crianças de mim covardemente. Esse é outro assunto. Tem, sim, um menino morando comigo. Esse é outro assunto que não tem nada a ver com os anteriores. E eu não devo satisfação dos meus atos ao povo que em vez de trabalhar, se ocupa de vigiar e deduzir a minha vida. Mais um assunto. Isso cansa, sabia? Já que a senhora cogitou o absurdo, nada do que eu disser vai convencê-la, então, não vou abrir a boca. Vou trazer o José Mário aqui, assim, a senhora vai poder ver por si mesma.

-NÃO SE ATREVA! Minha casa não é puteiro para você trazer macho que não é seu marido. Aqui não é bagunça, eu tenho moral, se não se importa com a sua reputação, não estrague a minha. Não traga o seu amante adolescente! Olha que eu deixo vocês dois do lado de fora, passando a maior vergonha. Não vai adiantar chamar, implorar, gritar e se esgoelar, eu vou dar com a porta na cara dos dois, isso se não chamar a polícia. ESCUTOU?

Oh, sim, eu tinha ouvido o bastante para saber que o melhor era recuar. Passei dois meses mal aparecendo porque sei que quando a raiva seca, ela se quebra e, uma vez quebrando, se vai.

Num domingo, comuniquei ao José Mário que iríamos visitar minha mãe, informação que o deixou roendo as unhas. Que isso, menino, sua avó não é bicho! - disse-lhe, tirando sua mão da boca.

Acredito que minha mãe esperava ver um playboyzinho desdenhoso vestido com roupas de marca, me agarrando em público como um cão marcando território. Sua expressão foi de total surpresa quando o José Mário se aproximou, todo filial em relação a mim, tímido, humilde e estendendo a mão já grossa de trabalho braçal, lhe pediu: "A bênção, senhora." Isso a desarmou por completo. Dali em diante, tornou-se sua defensora fervorosa e ai de quem falasse um "a" do seu menino, seu neto do coração.

Minha mãe soube da sua história no mesmo dia, contada pelo próprio José Mário, sem nenhum subterfúgio, sem cortes, livro aberto. Perguntou, ouviu tudo, tudão - de sua infância aos hormônios que começara a usar. Com lágrimas, ouviu de sua paixão pela menina Laura e de suas orações questionadoras. Ouviu sem interromper. Ao final, o abraçou e disse o que jamais suspeitei:

-Eu te entendo, meu filho. Eu preferia mil vezes ter nascido homem, sabia? Às vezes, falo umas coisas sem noção com a Ieda só mesmo porque ela tem coragem de bancar uma liberdade que eu sempre quis e nunca tive. Passei a vida tentando podar a minha filha. Nunca deu certo nem podia dar, é minha filha. O sangue dela deve ser todo feito do lado transgressor que eu escolhi esconder. Sabe qual era o meu sonho? Ser militar! Enquanto as meninas da minha idade preparavam enxovais e sonhavam com vestido de noiva, eu sonhava com as forças armadas. No dia em que me casei, pedi ao meu marido para me despir sozinha, sem ele no quarto. Ele deixou. Deitei na cama com o vestido de noiva, segurando o buquê na posição que estaria um defunto. Chorei. Não era meu casamento, era meu enterro. Eu morri por dentro porque fiz exatamente o que os meus pais esperavam de mim e não o que eu quis. Agradei a todo mundo, menos a mim mesma. Nunca seja o que os outros querem, José Mário, seja você mesmo.

Minha mãe chorava, José Mário chorava e os dois não se soltavam do abraço. Passaram a se adorar, não tinham segredos e ele escapulia para a casa da avó sempre que surgia uma oportunidade. Através dele, meu relacionamento com a minha mãe evoluiu de uma forma inacreditável. Ela se abriu, renasceu e até remoçou. As paquerinhas do seu menino eram as suas novelas. Quando ele soube que Laura estava casada, foi a grande novela mexicana. "José Mário do Bairro" e tome lágrimas. Os dois choraram todos os oceanos e, por fim, ela o consolou, dizendo: "-Meu filho, o que tiver que ser seu, será." Ele acreditou e sofreu menos. Ela o enchia de chá de rosa branca para as cólicas e de chá de erva doce, para os nervos mas, às vezes, na pressa de fazer seu menino melhorar, confundia tudo, de modo que a erva doce ia para as cólicas e as rosas para os nervos. No fim das contas, dava tudo certo pois o que curava era o amor. Amor de avó do coração - mãe não apenas duas mas três vezes, com direito a um sonoro amém final.

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Comentários

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Eu que sou sua fã, Coroa! Além dos contos ricos de estrutura e sensualidade você faz comentários super inteligentes que eu adoro ler. Você falou a verdade, a mão estendida na hora da necessidade é tudo, ai de nós sem esses anjos sem asas porque todo ser humano, um dia, vai precisar de algo que está além da sua capacidade de prover. Eu também tive uma fada madrinha, minha vozinha Shirley. Meu pai me espancou e me expulsou de casa porque "não criou filho para ser viado". Disse a ele que não era "viado" porque não tinha tesão nenhum por homem, só por mulher. Mas não como homem. Como mulher. Isso o deixou mais irado: "se fosse viado, pelo menos era algo que existe mas homem ser mulher não existe. Não te criei para ser aberração mas já que quer ser, suma daqui. Você não tem mais pai nem mãe e não vai levar nada. Você não é mulher? Aqui só tem roupa de homem, você não precisa disso." E eu saí. Toda roxa, com o lábio sangrando e o nariz também. A vovó correu atrás de mim com uma lata de leite em pó. Eram as suas economias. Ela me deu tudo o que tinha e providenciou meu primeiro emprego, numa fábrica de batatas fritas. Ela é meu anjo, minha vozinha Shirley. Ela mora comigo. É um prazer poder agradecer tudo o que ela fez, enfrentando e contrariando o meu pai. E é um prazerzão agradecer porque mais uma vez você veio. Beijo beijo!

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Alison, este foi o capítulo que mais me agradou. Tocou forte na minha sensibilidade, porque na hora do pior, quando todos viram as costas, uma mão estendida é a coisa mais gratificante que existe. A Ieda foi dessas fadas que aparecem nessa hora. Na vida do Zé Mario. Agradeço a explicação das dores no ventre. Chamou-me a atenção de como ocultar a menstruação, urinar em pé e outros detalhes que acompanham quem vive nessa situação. O melhor de tudo, o ponto alto, foi a aceitação pela dona Gilda, que teve a chance de rever seus conceitos. De se render àquilo que observou e seu coração sentiu. Mereceria mais que a nota dez para este. Ganhou um fã. Beijos.

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Mas gente... Não dou conta, viu? Moço, que leitura profunda foi essa? Você leu meu conto ou minha alma? É isso, Alec W., você vai fundo, super amei sua análise e receber o carinho da sua família. Beijos e pense no que eu falei: volte a escrever.

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Que final mais doce tem este capítulo, Alison! Duas reflexões despertaram a minha atenção. Primeira: 'como é que a mãe que o teve nove meses no útero não viu que você era homem?' Através do primeiro capítulo, sabemos que a mãe de José Mário tinha uma ideia bem precisa de sua identidade de gênero e de sua sexualidade, não obstante calasse a informação para evitar contendas com o marido. Digno de nota, também, é o fato de os pais do protagonista não terem nome, como se despersonalizados pelo conservadorismo, que também cega e emudece. Pelo mundo afora está cheio de mães que, por conveniência, não veem que seus filhos não cabem na 'caixinha'. Segunda reflexão a que desejo me reportar: 'não era meu casamento, era o meu enterro.' Até quando? Até quando, em nome da 'família tradicional', a sociedade seguirá produzindo donas Gildas? Enterrando noivas vivas? O momento é de despertamento para uma vida que ninguém jamais poderá viver por nós. Mais uma vez, aplausos para você. Tenho orgulho de ser seu leitor.Abraços meus, beijos da Sofia e carinhos do Abner.

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