Amor de Carnaval não Vinga (27-Parte 1)

Um conto erótico de Peu_Lu
Categoria: Homossexual
Contém 4910 palavras
Data: 14/08/2016 22:38:53

“Foi tão bonito, tão intenso, tão maravilhoso cada segundo; E a vida nos revela cada dia uma nova cena de um outro mundo...” (Não vou chorar, Chiclete com Banana).

...

A segunda-feira de ouro rendeu longas conversas madrugada adentro. No fim das contas, o irmão da minha sócia dormiu na casa do namorado, o que também facilitou uma maior abertura da minha parte. Ficamos divagando sobre frustrações e derrotas, fazendo planos para o futuro e opinando sobre os passos de cada um. A nossa amizade era uma instituição sólida, dificilmente uma discussão seria capaz de abalar os seus pilares.

Mas (e sempre tem um ‘mas’), estamos falando de assuntos do coração e, quando se trata desse tema na minha vida, para um dia perfeito existem outros tantos tenebrosos. Eu já deveria saber dissomomentos preocupantes de um aparente voo tranquilo.

Terça-feira (ou “Quando o sinal de ‘manter os cintos apertados’ acende repentinamente”):

Acordei no sofá, antes do sol nascer. Peguei o celular e percebi que o relógio tinha acabado de marcar quatro horas. Levantei para ir ao banheiro e lavar o rosto. Retornando para a sala, passei no quarto do casal vinte e notei que ambos dormiam serenamente. Escrevi um recado agradecendo o encontro, deixei em cima da mesa e voltei para casa, tentando não fazer barulho.

Assistindo os primeiros raios de luz invadindo o céu, comecei a planejar o meu dia. A ausência do trabalho na data anterior provavelmente me cobraria uma jornada com maior participação nas tarefas. Chegando ao apartamento, tomei um banho demorado e segui para um desjejum reforçado. O corpo pedia um pouco mais de repouso, é verdade, mas descartei qualquer possibilidade de uma breve soneca naquele momento.

No caminho para a empresa, percebi que a minha sequência de longos bocejos tinha toda razão de ser: ainda era muito cedo. O edifício estava vazio e ninguém tinha chegado. Acendi algumas poucas luzes e caminhei preguiçoso para o meu escritório. Sentei-me e, tomado pelo silêncio do ambiente, senti os olhos pesarem. “Tudo bem, cinco minutos não matam ninguém...”, me dei por vencido, curvando-me para cochilar sobre os braços cruzados na beira da mesa.

De repente, lá de longe, comecei a escutar um som diferente, algo distorcido e incompreensível, seguido de uma batida cadenciada. Mais um pouco e identifiquei que não eram batidas, eram estalos de dedos, repetidos quase em sequência perfeita:

- Augusto! – o tom acima dos outros, quase um berro, me fez levantar a cabeça, assustado.

Coloquei a mão na frente do rosto, incomodado com a luminosidade e espreitei os olhos para entender melhor o que era aquela imagem turva à minha frente.

- Meu deus do céu, o que você tá fazendo? – Juliana me encarava preocupada, segurando um copo grande.

Olhei para o lado e, através da parede de vidro, vi que o nosso estabelecimento já estava em pleno funcionamento, com o seu típico cotidiano de fórmulas e algoritmos em telas de computador, gente caminhando de um lado para o outro e conversas comedidas. Alguns funcionários, inclusive, claramente se divertiam com a minha situação.

- O que aconteceu? – questionei ainda sonolento.

- Eu é que te pergunto. Caiu da cama para trabalhar ou resolveu dormir aqui?

- Não... Cheguei mais cedo, mas acho que acabei apagando.

- Percebi... – ela riu – Rebeca me ligou para dizer que tinha te encontrado, mas não sabia se deveria acorda-lo. Tudo isso era só pra jogar na minha cara que o ovo mexido que faço pela manhã é uma porcaria?

- Nada disso – sorri, esfregando os olhos para acordar de vez – Não queria incomodar os pombinhos.

- Não seja ridículo. O Marquinhos acordou antes para ir à padaria e viu que você não estava mais lá...

- Imaginei que teria muita coisa a fazer aqui – levantei para alongar o corpo.

- Parece até que estava adivinhando.

- Do que está falando? – mexia o pescoço de um lado para o outro.

- Seu dia será longo mesmo. Vai jogar uma água na cara, bebe esse café extraforte que eu trouxe – colocou o copo em cima da mesa – e me encontra lá na sala de conferências.

- Espera um pouco!

- Ande logo! – saiu apressada.

Bocejei uma última vez, bebi um gole da bebida fazendo cara feia para os engraçadinhos próximos à minha sala e caminhei para o banheiro. Minha expressão no espelho denunciava que eu realmente precisava de um descanso. A proximidade de um feriado junto com o fim de semana, porém, me tranquilizava. Enxaguei o rosto duas vezes, ajeitei a minha camisa e corri para alcançar a minha parceira.

Assim que fechei a porta, ela retomou o assunto:

- Pronto? Desperto? – ela estava com uma pasta aberta, com uma sequência de datas organizadas meticulosamente.

- Cem por cento.

- Ótimo. Lembra a reunião que teríamos na sexta para apresentar o aplicativo funcionando?

- Sim, o que tem? Vamos matar tudo até lá.

- Adoro o seu otimismo. Ela foi remarcada para amanhã.

- Hein? – arregalei os olhos.

- O dono da fábrica vai precisar fazer uma viagem, e só retorna depois do feriado, semana que vem. Ele quer avaliar o andamento do processo.

- Filho da puta... – suspirei.

Fui pego desprevenido e tinha que ser objetivo. Todo o preciosismo que costumávamos aplicar em nosso modus operandi parecia estar indo ladeira abaixo. Não havia outra solução:

- Ok, espera.

Girei a maçaneta rapidamente, tentando caçar visualmente os responsáveis pelo projeto, mas decidi ser mais prático:

- Atenção todo mundo – gritei, fazendo os meus funcionários direcionarem o olhar a mim, de uma só vez – Todas as pessoas, mesmo que indiretamente, envolvidas no projeto da Wear4, parem tudo o que estão fazendo e venham para cá agora!

Saí para pegar um grande quadro que ficava na sala dos analistas e, quando voltei, os últimos profissionais já se aglomeravam no recinto:

- Vamos lá – comecei a escrever no painel – Hoje precisaremos da colaboração de todos. Não teremos mais três dias para finalizar esse esboço e sim vinte e quatro horas.

Um burburinho começou a se formar, e precisava mantê-los de bom humor:

- Temos duas possibilidades: Ou seguimos o cronograma e viramos a noite para terminar, ou vamos nos dividir para acelerar e entregar tudo até o fim do dia. Caso topem um confinamento, compro uma refeição, focamos no que está faltando e, na sexta, libero todos um pouco mais cedo para aproveitar o feriadão.

A proposta parecia mais justa. Obviamente optando pela segunda sugestão, começamos a nos organizar:

- Vamos manter a fase final de testes para hoje à tarde. Quem estiver com dificuldades nos códigos ou achar que pode dar algum problema, não pense duas vezes antes de me chamar – escrevia initerruptamente, sem olhar para trás – Flávio vai providenciar os servidores para hospedarmos o programa. Não se atenham tanto à estética, pelo menos por enquanto. A ideia precisa funcionar. Se aprovarem, seguimos com a produção completa, ok?

Finalizei o meu raciocínio e todos continuavam em pé, fazendo anotações:

- Mãos a obra, galera! – gesticulei pedindo agilidade.

Parecia que tinha dado início a uma maratona. Todos saíram agoniados para os seus postos e a sala começou a se esvaziar. Quando ficamos a sós novamente, voltamos a acertar os últimos detalhes:

- Por favor, me diga que você marcou para o fim do dia... – supliquei.

- Dez horas da manhã, foi um pedido deles – Juliana parecia estar com pena.

- E porque não me avisou? – lamentei.

- Soube ontem à noite, não ia adiantar muita coisa. Também não seria justo quebrar o seu climinha romântico... – sorriu – Pense pelo lado positivo: você voltou cheio de gás depois da folga, gostei de ver.

- Não tem clima nenhum – disfarcei – Reze pra gente conseguir acabar tudo.

- Sempre conseguimos. É por isso que te amo – me deu um beijo na bochecha e voltou aos seus afazeres.

Respirei fundo e deixei a adrenalina dar as ordens. As horas seguintes beiravam à loucura. Mexa com tudo, mas não brinque com o expediente dos empregados de uma firma. Todos pareciam estar com sangue nos olhos para manter o prazo estipulado. A cada etapa finalizada, alguém corria para mudar a logística do quadro, ou avisar a equipe do passo seguinte.

Juliana ficou responsável por trazer um almoço decente e alguns modelos de camisa do cliente, para testarmos a eficácia do software. Eu e Flávio ficamos responsáveis pelas últimas avaliações no chip desenvolvido e por ativar as suas conexões. Vez ou outra, parávamos para acudir quando alguém detectava qualquer tipo de falha que precisava ser corrigida.

A certa altura, já não raciocinava mais o que fazia, parecia um robô atendendo pedidos no automático e só enxergando números à minha frente. Dividia o pessoal em turnos curtos, para que as suas mentes também pudessem descansar. Pouco depois das sete da noite, todos estavam ansiosos pelo teste final. Encaixei o dispositivo na etiqueta da roupa, e pedi que Marta vestisse.

Éramos dezesseis indivíduos em volta de uma mulher acanhada com tantos olhares ao seu redor. Estava tudo a postos. Configurei o aparelho e, calmamente, comecei a aproxima-lo da vestimenta, com a tela voltada para todos. Com menos de um metro de distância, surgiu a inicialização do aplicativo:

- “Wear4: Conecte-se às últimas tendências e compartilhe o seu estilo com amigos mais próximos. Deseja começar?”.

Escutei urros e aplausos atrás de mim e suspirei aliviado. Funcionava perfeitamente. Contra qualquer conceito de tempo e logística, atingimos o nosso desígnio. Agradeci a disponibilidade de todos e ressaltei o orgulho que sentia da minha equipe. Em seguida, liberei os funcionários para irem para casa e comecei a alinhar os últimos pontos para a apresentação.

- Pode deixar que eu termino de estruturar tudo – meu braço direito se adiantou.

- Relaxa Flavinho, falta pouco.

- O Guga me disse que vocês tinham natação hoje. Vai perder a hora.

“Terça, natação... Droga!”, apertei os olhos:

- Esqueci completamente, nem consegui olhar o celular hoje.

- Aproveita e se distrai. Finalizo tudo em meia hora no máximo.

- Jura que não tem problema?

- Para com isso, a Ju também está aqui. Repasso tudo com ela e mando pro seu e-mail.

- Beleza então. Olho assim que chegar.

- Se tiver outro compromisso, me avisa que pego ele lá.

- Não precisa, eu posso dar uma carona.

Arrumei minhas coisas rapidamente, me despedi de todos e avisei a Juliana que poderia retornar à empresa em caso de contratempos, bastava me comunicar. Ela se recusou a responder a devolveu a indagação com um revirar de olhos. A brincadeira me deixou mais despreocupado.

Passei em casa rapidamente para preparar uma bagagem com o material da aula e me apressei para não me atrasar ainda mais. Quando cheguei, as pessoas já nadavam concentradas. Enquanto colocava a touca e os óculos, alertei ao técnico que abriria mão do alongamento. Em seguida, pulei na minha raia. Só depois de algumas voltas com braçadas frenéticas para aliviar o estresse, me permiti respirar um pouco. Gustavo estava ao meu lado tentando recobrar o fôlego:

- Achei que não viria mais – puxou assunto.

- Dia longo e difícil, mas deu tudo certo...

- Imaginei, já que não respondia às minhas mensagens.

- Foi mal. Ninguém parou quieto hoje. Ainda bem que o seu namorado me lembrou da aula – ri.

O técnico se aproximou da raia, de braços cruzados:

- Menos conversinha e mais voltas. Nada de moleza hoje.

Rapidamente, Gustavo ajeitou os óculos de mergulho e voltou a nadar. Tinha algo de estranho na sua interação, mas não sabia explicar o que exatamente. Segui atento com as modalidades dos exercícios e pedi um tempo extra na água para compensar o atraso. O professor acatou a solicitação e Gustavo avisou que adiantaria o banho, mas que aguardaria a carona.

Pouco mais de dez minutos depois, encerrei a atividade e saí da piscina, em direção ao vestiário. Quando entrei, meu amigo terminava de calçar o tênis, e começou a dobrar sua toalha.

- Vou tomar uma ducha. Rapidinho, tá?

Ele concordou com a cabeça. Parei no meio do caminho, e voltei reticente:

- Tá tudo bem? – me livrei da touca e do protetor auricular.

- Claro. Por quê? – fechou o zíper da mochila, completando uma rápida operação.

Fitei a sua expressão e comecei a duvidar:

- Tem certeza?

- Absoluta – respondeu de forma seca.

- Hum... – peguei um sabonete e xampu dentro do nécessaire – Volto já – e segui para a área dos chuveiros.

- Te espero lá fora – escutei sua voz se distanciar.

- Beleza! – bradei antes de abrir a torneira.

...

Antes de sair, escutei uma bronca do professor por estar me ausentando demais. Prometi marcar presença na próxima aula e me despedi. Seguimos em silêncio até o estacionamento. Gustavo, taciturno sem explicação; eu, pensativo pelos motivos que estariam deixando-o assim. Ainda teria todo o caminho para tentar descobrir as suas razões:

- Faz tanto tempo que a gente mal conversa né? – comecei – E a faculdade?

- Entrando na reta final do semestre. Acho que consigo passar bem.

- Que coisa boa! Sua irmã deve estar feliz que o namoro não esteja atrapalhando os estudos.

- Pois é...

- E o Flávio? Estão se dando bem? Sempre que ele aparece lá na sala, me conta que costumam sair direto e...

- Tá tudo ótimo – me interrompeu impaciente.

Fiquei inerte por um instante. Aproveitei a proximidade de uma rua com pouco movimento, e parei no acostamento, próximo a uma sorveteria:

- Não sei o que está acontecendo. Você está sendo ríspido e grosseiro de uma forma bastante gratuita. Sempre tivemos abertura para falar qualquer coisa...

- Isso parece não se aplicar a nós dois... – resmungou baixo.

- Do que está falando? Dá pra ser mais claro?

- Sobre você estar com alguém, e esconder isso de mim.

- Como assim? – fiquei pensando de onde ele colhera a informação.

- Hoje de manhã, antes de sair de casa, a Juliana me disse que você conheceu uma pessoa. Que até já tinha visto, e parecia ser um cara mais jovem.

“Era só o que me faltava...”, suspirei:

- Existe um motivo para não ter lhe contado ainda. Aliás, só a sua irmã e o seu cunhado sabem efetivamente dessa história, e confidenciei em um momento de desabafo.

Omiti a parte do que Flávio já sabia, não queria causar uma crise no relacionamento dos outros:

- A razão é bem simples – continuei – Ainda estou conhecendo-o. Pode ser que vire uma coisa séria sim, mas não tenho nenhuma bola de cristal. Até lá, prefiro manter a cautela. É claro que iria te contar, no momento certo.

- Eu te contei sobre o que rolava com o Flávio, e mal completamos um mês de namoro.

- Não tente contar vantagem pra cima de mim, Gustavo – ralhei – Descobri o Flávio pelado na sua cama, logo depois de criar coragem para te falar que começava a sentir algo. Só então você decidiu comunicar as coisas para mim.

- É diferente, ele é seu funcionário e não estávamos preparados – desdenhou – Tenho a impressão de que não quis me contar para não causar nenhum tipo de mal estar.

- Eu também não estou preparado. É algo que ainda estou me trabalhando, procurando entender o que está acontecendo e você simplesmente não está respeitando o meu momento. Não tem porque querer causar nada, somos amigos.

Ele ficou quieto, sem saber o que dizer:

- No dia em que me sentir à vontade, que tiver a certeza de que estou namorando efetivamente, prometo que será o primeiro a saber. Você conhece o meu histórico, as minhas dificuldades nesse campo e de certa forma presenciou isso... De todos, é de quem eu esperaria mais compreensão.

Aquela conversa não tinha sido planejada, mas sentia um peso a menos por estar acontecendo naquele instante. Era como se estivesse vencendo uma última barreira. Ainda teria que preparar melhor o terreno, afinal ele o conhecia, mesmo que – em teoria – eu nunca soubesse disso. Até então, achava que esse era um papel que cabia a Adriano, mas entendia que se a coisa evoluísse como esperava, seria um assunto a ser tratado por nós dois, juntos.

- É que depois de tudo o que você falou, e dos acontecimentos, não esperava que fosse acontecer tão... Rápido – complementou.

- Isso deveria ser motivo de comemoração, não?

- Eu sei... Só é um pouco estranho para mim. Seus fundamentos sempre me pareceram muito convictos.

- Você está falando isso por ele ser mais jovem? – tentava elucidar o seu incômodo – Sei que sempre alardeei isso sobre a gente, mas nunca foi o principal impeditivo para mim. Te considero quase um familiar próximo. A Ju é uma irmã pra mim, sabemos tudo sobre o outro. Já discutimos sobre isso.

- Eu sei... – balbuciou.

- A pessoa, o momento... A gente não escolhe isso, poxa. Demorar tanto tempo para dizer o que sentia, ter a certeza disso e saber que você foi uma oportunidade perdida... Tudo isso me abriu os olhos, de alguma forma. Só tô tentando fazer do jeito certo, entende?

- Eu estou sendo um idiota, desculpa. Você não me deve explicações e não tenho o direito de te cobrar nada.

- Pode me perguntar o que quiser, isso eu jamais posso recusar. Só peço que absorva algum silêncio inevitável ou uma resposta que não lhe agrade. Amizade também é reverenciar os motivos do outro.

Ele assentiu timidamente, e o puxei para um abraço sincero:

- Nossa irmandade é mais importante do que qualquer flerte, não esquece isso.

Bastante sem jeito, agradeceu e se desculpou novamente. Voltei a ligar o carro e seguimos o trajeto, agora mais animados.

...

Quarta-feira (ou “Quando o piloto avisa a todos que passaremos por uma área de forte turbulência”):

- Isso é... Incrível!

O senhor Vicente, sócio majoritário da Wear4, estava bastante entusiasmado, e aplaudia incansavelmente. Com o celular apontado para a camisa que eu vestia, e que pertencia à nova coleção da companhia, Juliana chamava os outros acionistas para entenderem melhor o funcionamento do sistema operacional. Nosso êxito foi maior do que o esperado e todos os presentes já discutiam antecipar o lançamento, colocando os representantes da agência de publicidade em polvorosa.

Na mesma hora, Raquel – a nossa ponte com a corporação – me chamou para demonstrar as particularidades para a equipe de criação e entender a linha conceitual que eles estavam seguindo. Juliana permaneceu na sala de reuniões tirando as dúvidas do grupo que dava a palavra final. Minutos depois, recebemos a qualificação que tanto almejamos. Sim, passamos pelo crivo do alto escalão, e com louvor.

Agora, os prazos seriam coordenados para a reta final. O aplicativo entraria numa fase mais minuciosa de produção, dando mais tempo para a agência desenvolver e planejar a campanha. No fim, todos saíram satisfeitos. À espera do elevador, porém, minha sócia não demonstrava a mesma animação.

- Happy hour de comemoração? – dei uma cotovelada discreta no seu braço.

- Outro dia, pode ser? Prometi sair com o meu boy magia hoje e dar uma espairecida depois de toda a agonia.

- Tudo bem, essa é uma boa alegação.

A porta se abriu, e seguimos para o cubículo metalizado:

- Você não achou nada estranho hoje? – ela parecia divagar.

- Estranho como?

- Sei lá, o jeito que aquele cara olhava pra gente.

- Quem?

- Vicente. Às vezes tinha a impressão de que ele queria me comer com os olhos. Fiquei um pouco incomodada.

- Sério Ju? Não percebi isso. Ele te falou alguma coisa?

- Não, talvez seja o jeito dele, ou era impressão minha... Deixa pra lá – desconversou – Na sexta a gente acerta alguma comemoração, tá?

- Fechado – não insisti no assunto – Vai almoçar aonde?

- Tenho que voltar para o escritório. Marta está me esperando para discutir alguns projetos.

- Te deixo e compro alguma coisa pra gente comer então.

- O que seria de minha vida sem você, Augusto...

- Tirando o seu bocão, também te amo incondicionalmente! – gargalhei.

- O que eu fiz? – ela parecia pasma.

- Seu irmão decidiu me interrogar ontem sobre um certo alguém que conheci.

- Era segredo? – ela colocou a mão na boca, em choque – Guto, me desculpe, eu não sabia! Nem foi nada em tom de revelação. A gente estava batendo um papo no café da manhã sobre a história da gravidez e como você apareceu para conversar com a gente. Foi tudo tão natural...

Ela falava sem parar, querendo procurar uma justificativa aceitável.

- Relaxa, não estou escondendo nada. Só não estou anunciando aos quatro ventos. O Guga pareceu meio incomodado por ficar de fora, mas já esclarecemos tudo.

- Nossa... Não sei onde enfiar a cara...

- Até parece que você não gosta de uma fofoca.

Recebi um tabefe forte no ombro, antes da voz automática do ascensor indicar a nossa chegada. Sorrimos, caminhando abraçados até o carro. Cumprir o combinado, afinal, foi mais rápido que o esperado e, pouco depois do meio dia, já estava de volta à empresa, carregando algumas embalagens com yakissoba e rolinhos primavera. Assim que atravessei a entrada de vidro, Rebeca parecia aliviada ao me avistar:

- Senhor Augusto, boa tarde. Tem uma pessoa esperando pelo senhor.

Olhei rapidamente ao redor da recepção e vi as cadeiras vazias:

- Quem?

- O jovem que esteve aqui outro dia, Adriano. Disse que preferia aguarda-lo, mas o Flávio chegou e avisou que poderia entrar. Não sabia se estava autorizada a fazer isso e...

- Não tem problema, Rebeca. Muito obrigado.

Dirigi-me até a mesa de Flávio, mas o encontrei sozinho:

- Cadê ele?

- Guto! –organizava alguns papeis e se surpreendeu com a minha presença – Parece que alguém importante resolveu lhe visitar e eu decidi fazer as honras.

-Engraçadinho... Considerando que ele não está aqui do seu lado, percebe-se que você é um péssimo anfitrião.

- Eu até tentei, mas alguém resolveu raptá-lo...

Franzi a testa estranhando a afirmação, e o meu cúmplice apontou para a sala da minha amiga, onde parecia ter alguma conversa com Adriano. “Ai minha nossa senhora dos problemas...”, senti um arrepio com a possibilidade de uma nova discussão sobre maternidade:

-É melhor eu resgatá-lo...

Caminhei ligeiramente antes que as coisas piorassem e entrei sem pedir licença, vislumbrando-os em um rápido abraço:

- Interrompo alguma coisa?

- Calminha, é só um abraço – ela tentou descontrair – Não estou tirando uma casquinha de ninguém, fique tranquilo!

“Pelo amor de deus, não fala mais nada, por favor...”, exibi um falso sorriso, julgando a sua troça. Adriano parecia bastante deslocado:

- Desculpe vir assim, estava aguardando na recepção e disseram...

- Pode aparecer quando quiser. Aqui a gente não tem essas besteiras – ela estava entusiasmada por interagir com um “candidato real” depois de tantos anos – Disse a Adriano que foi comprar o nosso almoço e o chamei para conversar.

- Bom, você deve estar com fome – repousei as embalagens na sua mesa – Vamos deixa-la para se reunir com...

- Aliás, aproveitando a sua presença – me cortou abruptamente – Reitero o que disse a ele. Estava um pouco à flor da pele naquele dia e agi de uma maneira imatura. Peço desculpas por qualquer transtorno ou agressão verbal. Acho que nem eu me reconheci – ela ficou mais séria.

- Não se preocupe Ju, também já conversei com ele sobre isso. Eu sei que você não é assim.

- É... Acontece – o visitante surpresa tentava parecer simpático.

- Espero ter a chance de mostrar que não sou a amiga surtada – sorriu – Que não faltem oportunidades, né?

- Juliana, você está me deixando envergonhado – tive que dizer com todas as letras.

- Tá bom, tá bom... – tirou a sua parte da sacola e me devolveu o restante – Não vou ficar perturbando. Adriano, é um prazer revê-lo – apertou a sua mão amigavelmente.

- Igualmente – tentou corresponder com naturalidade.

Atendendo ao meu chamado, caminhamos em silêncio para a minha sala. Flávio não escondeu o sorriso no canto da boca quando passamos por ele, gesto que me deixou desconcertado. Assim que entramos, pensei em descer as persianas, mas imaginei que estaria alimentando o imaginário dos meus colegas.

- Você estava certo... – sentou-se na poltrona, enquanto eu fechava a porta.

- Sobre o que? – indaguei.

- Ela parece ser ótima.

- Não ligue para as brincadeiras dela...

- Ah, era brincadeira? – sorriu sem jeito.

Não esperava a indireta, e tentei mudar o foco:

- Te disse... Ela só precisa de tempo para assimilar o que está vivendo – o cheiro da comida oriental invadiu o ambiente, assim que retirei o invólucro – Você poderia pensar numa forma de apresenta-la ao universo das adoções.

- Eu? – parecia espantado com o pedido.

- Ué, já virou amiguinho íntimo dela...

As suas bochechas levemente rosadas pareciam ressaltar a sua vulnerabilidade, e isso era um verdadeiro deleite para mim.

- Vou pensar no seu caso – ele mantinha o humor – Espero que não seja um problema vir aqui. Mandei algumas mensagens e ontem você não deu sinal de vida...

- O dia foi uma correria sem fim, uma verdadeira loucura. Tudo por causa dessa reunião de hoje. Meu celular passou a manhã desligado por causa disso, foi mal. Mas fique tranquilo, não pretendo largar do seu pé tão cedo –notei que estava extrapolando com a brincadeira – E não é um problema vir aqui – resolvi pegar leve.

- É que hoje conversei com o meu colega para me passar o contato d’O Repetente.

- Sério? E ele?

- Inventei que tenho curiosidade de experimentar e perguntei o que ele vendia.

- É uma pessoa confiável? Precisa tomar cuidado com o seu nível de envolvimento – aconselhei.

- Não me aprofundei muito. Ele disse que seria melhor telefonar. Senti que não queria se comprometer.

- O que conseguiu?

- Só o número que já tenho, por enquanto. Falou que poucos sabem onde ele mora, e que geralmente entrega as “encomendas” na faculdade. É tudo muito discreto.

Escutei uma batida, e Flávio entrou rapidamente:

- Desculpa interromper. Só preciso que dê uma olhada nessa sequência de códigos para um utilitário, tá? – deixou um envelope em cima da mesa e caminhou de volta para a saída.

- Flavinho, senta aí um pouco. Estamos falando sobre o novo alvo.

Jamais teria qualquer outra intenção com Adriano dentro do escritório. Já que o assunto tinha uma importância maior, era melhor que ele participasse. Após se ajeitar no outro assento, retomei a conversa.

- Descobri onde César morava seguindo-o até a sua casa. Acha que dá pra fazer o mesmo? – voltei-me ao novato.

- Já percebi que às vezes ele aparece no campus com uma moto. Nas outras vezes, se dirige à linha do metrô. Não faço ideia de onde ele mora.

- Seguir uma moto não é uma tarefa tão fácil – Flávio pontuou.

- Descobrir onde reside pode ser essencial para entender como ele age – pensei em voz alta – Será uma chance única de desvendar a veracidade das nossas hipóteses.

Os dois ficaram absortos, e me peguei também pensativo batendo os dedos na mesa. Talvez a fome não estivesse permitindo que raciocinasse tanto:

- Como está a vida de vocês agora pela tarde?

- Eu não posso demorar – Adriano olhou o relógio e se assustou – Aliás, já preciso ir embora. Tenho duas aulas nesse período.

Confirmei o horário e a pausa do lanche passara voando. Minha comida seguia intacta.

- Espera... Podemos nos reunir novamente hoje?

- Por mim tudo bem – Adriano não fez objeção.

- Também não vejo problemas – meu funcionário opinou – Onde?

- Sei lá... Que a Ju não escute isso, mas a gente podia fugir um pouquinho antes e ficar lá no terraço conversando.

- Acho que não tem problema. Os projetos estão bem encaminhados.

- A partir das quatro já estou livre também – o garoto atraente ratificou.

- Então fica bom pra todo mundo?

Ambos concordaram.

- Beleza, peço uma pizza logo mais.

- Fechado, me avisa na hora que eu subo, certo?

Assenti, e ele partiu com uma breve saudação. Quando enfim se retirou, avaliei a expressão do convidado:

- É tranquilo mesmo para você retornar?

- Sim, não é tão distante assim – assegurou.

- E como vai agora?

- Vou pedir um táxi para chegar a tempo.

- Deixe comigo, faço questão – liguei para Rebeca e efetivei a solicitação.

- Não precisa...

- Eles costumam ser rápidos quando atendem pessoas jurídicas. Devem imaginar homens de negócios engravatados que gastam fortunas com transporte – sorri.

- Que pena desapontar esse pobre motorista. Aviso quando estiver chegando, certo?

- Combinado!

Segui para me despedir e acabei causando uma breve confusão. Adriano parecia aguardar um novo selinho, quando eu intencionava um simples abraço. A trapalhada resultou em cabeças sem saber qual direção seguir e braços chocando-se em desordem. O clima de gafe o deixou constrangido. Não pude esconder uma gargalhada:

- Isso foi péssimo, vamos recomeçar.

Aproximei-me com mais certeza e completei o beijo, um pouquinho mais demorado que o último, mas ainda assim comportado.

- Agora assim, até mais... – concluí.

Ele devolveu o sorriso e sem dizer mais nada, saiu do meu gabinete.

Recostei-me à mesa, suspirando. Notei uma movimentação estranha e olhei para a parede de vidro. Do outro lado da área dos programadores, a alguns metros da minha localização, Juliana e Marta se abraçavam comemorando, segurando plaquinhas de papel ofício escritas à mão, com os dizeres “#fogosdeartifício” e “#agoravai” apontados para mim. Desci a persiana em represália, sem antes notar que alguns funcionários também olhavam a cena com curiosidade.

Sentei-me novamente, achando graça da torcida. Visitas inesperadas desse tipo era uma novidade para mim, e aquela parecia me dizer que a tal cautela estava abrindo espaço para um “algo mais” na minha aproximação com Adriano. A atitude em comparecer em um ambiente mais neutro e a as frases permeadas de descontração, me transmitiu uma segurança maior. Sua timidez estava mais acessível.

Não queria que ele enxergasse a minha moradia como um espaço exclusivo para reuniões sobre vingança, ainda que nos últimos meses ela tenha servido exatamente para esse fim. Mudar o ambiente poderia criar uma nova perspectiva para que se sentisse ainda mais à vontade. Usar o edifício comercial talvez não fosse a melhor opção, mas era uma boa alternativa.

“Ok universo, você está fazendo bem a sua parte... Esse garoto está realmente me tirando do sério...”, encarei o teto com as mãos na nuca, percebendo o quão aéreo estava. A maneira como me preocupava em fazê-lo se sentir bem e procurava inseri-lo no meu mundo, causavam-me certa inquietação. Entre uma mordida e outra nos pedaços de camarão já frios da comida, pensava em como estava me afeiçoando rápido demais a ele.

(continua)

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Comentários

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Seu conto é incrível. Mesmo testando nosso ânimo, ficando meses sem postar, considero sua estória a mais bem desenhada daqui! Parabéns e segue firme rs

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