AMOR DE PESO - 01X01 - GORDINHO CONFUSO

Um conto erótico de Escrevo Amor
Categoria: Gay
Contém 4903 palavras
Data: 01/08/2016 03:32:12
Última revisão: 10/07/2021 02:48:49

Queridos Pai e Mãe,

Quando tempo passou, hein? Tanta coisa mudou. Os meninos estão crescidos. Acho que isso significa que de alguma forma estamos sabendo contornar a situação. Entretanto, não está sendo fácil, principalmente, para mim. Ah, tenho uma grande novidade: vamos nos mudar para o Amazonas. Provavelmente, usaremos a casa que o papai alugava, então, um ponto positivo. Só espero que a gente consiga sobreviver.

***

Eu conseguia ver o sorriso nos rostos das pessoas, a alegria em seus olhos, sentia os abraços apertados dos meus parentes, mas para mim aquilo era parecido como uma execução. Mais uma vez, a minha tia resolveu se mudar. E eu não podia fazer nada. A não ser acompanhá-la nessa roubada. Tudo bem, entendo, eu era um pobre órfão vivendo às custas dela, então, lógico que para sustentar a mim e meus irmãos, uma mudança de cenário era necessária.

Estávamos familiarizados com os aeroportos,. O papai era militar, ou seja, viajar fazia parte da nossa rotina. Chegamos a morar dois anos em Manaus, entretanto, pouco me lembro, tinha apenas quatro anos. Na cidade, meu pai decidiu comprar uma casa para investir em aluguéis, além de ganhar dinheiro do Exército.

Você sabia que o Amazonas é longe? São quase 10 horas de viagem. Quem viaja 10 horas? Fiquei impaciente no aeroporto do Rio de Janeiro. O voo estava marcado para às 3h. Fiquei tão cansado por empacotar minhas coisas que o sono bateu. Pela reclamação, deve ter percebido que sou adolescente, né? Mas, sou um dos bonzinhos, aqueles que não dão trabalho, juro.

Tenho 16 anos. Sou gordinho, se considerar alguém com 100 quilos, gordinho. Sou branco e sem qualquer tipo de habilidade aparente. Tenho dois irmãos: a Giovanna (12 anos) e o Richard (9 anos). Eles são lindos e lembravam muito meus pais. Prometi que cuidaria deles, então, essa se tornou minha missão nos últimos cinco anos.

Já a responsabilidade da nossa guarda ficou com a irmã da minha mãe, Tia Olívia. Começamos com o pé esquerdo, pois não aceitei muito bem a morte dos meus pais e tive alguns surtos como, por exemplo, destruir todo o meu antigo quarto. Depois de acompanhamento psicológico e alguns remédios, pude começar a deixar o sentimento de perda de lado e viver a vida com mais normalidade.

A profissão da tia Olívia exigia muito dela, então, sou um jovem que faz coisas que outros da minha idade não sabem, como: lavar roupa, cozinhar, medicar crianças, limpar chão de vinílico e lidar com pré-adolescentes. Apesar de ganhar bem, toda a economia da titia vai para nossas escolas e contas da casa.

Bem, voltando ao aeroporto. Andamos até a sala de embarque, Richard tentou correr na minha frente e tropeçou. Gente, como ele não consegue ficar com sono? São 3h20 da manhã. A Giovanna estava com cara de poucos amigos, mas não é por causa do sono. Na escola, ela era um projeto de abelha rainha e precisou abandonar todo o glamour para uma cidade nova. Acho que não tem nenhum traço deles em mim e vice-versa, quer dizer, tirando o fato de sermos loiros.

— Vai ficar com essa cara de desânimo? — questionou minha tia, me assustando.

— O quê? - questionei, fingindo demência, mesmo sabendo a resposta: sim, estou desanimado.

— Qual o motivo para tanto desânimo? — titia insistiu, andando do meu lado e olhando para cima, pois sou mais alto que ela.

— Não estou desanimado, tia. É o sono. Fora que estou cansado de mudar. Queria criar raízes, sabe.

— Eu sei querido, mas em Manaus, eles vão pagar o triplo do valor que ganho aqui. Fora que o teu pai tem aquela propriedade em Manaus. Não vamos pagar aluguel. — titia se armou de pontos que eu não poderia contra argumentar, então, apenas aceitei a derrota.

Tia Olívia pegou nos meus cabelos e bagunçou. Odeio quando ela faz isso. É tão infantil. Na verdade, odeio o contato humano como um todo. Isso é culpa da Jéssica Tavares que estudou comigo no maternal. Aquela vacazinha sem coração me beijou no meio da classe toda. Eu lembro disso, um mico total. Vai dizer que não lembra das coisas que fez quando tinha 4 anos? Eu lembro.

Finalmente anunciam o voo, e seguimos para a área de embarque em um daqueles ônibus sem acento. Tenho vontade de rir, pois parecemos aqueles animais que são transportados para outros lugares. O termômetro marcava 15 graus, até aquela característica fumaça saia de nossas bocas. Giovanna pareceu uma maluca tirando selfie na frente do avião.

— Yuri. Tira uma foto minha aqui na frente do avião. — ela me pediu, entregando o telefone e fazendo uma pose estranha.

— Quantas fotos você já tirou hoje? — questionei acionando a câmera.

— 394, mas quem tá contando? — ela disse de forma irônica.

— Credo.

Não sou fã de aviões. Na última vez, paguei o maior mico da história da aviação brasileira. Não vou entrar em detalhes, mas, basicamente, minha bexiga não aguentou e urinei no acento em que estava. O médico receitou alguns calmantes, a tia Olívia queria ter certeza que nenhum "acidente" aconteceria.

— Tome agora. Antes de subirmos. — ela pediu novamente, mas, dessa vez, me entregando os remédios e uma garrafa de água.

— Tia, não é necessário. — tentei argumentar, sem sucesso.

— Da última vez você mijou nas calças. — lembrou minha irmã pegando o celular da minha mão.

— Você vai fazer xixi de novo. Posso filmar? — questionou meu irmão, mais animado do que deveria.

— Ninguém vai fazer nada. — titia repreendeu meus irmãos e passou o remédio. — Vamos amor, tome logo.

— Aff. — peguei o medicamente e tomei na frente deles.

— Vamos, crianças. Entreguem os bilhetes para os atendentes, por favor. — titia nos orientou antes de subir.

Aviões. Cruzes. Como essas coisas podem voar? Sempre tenho ataque de ansiedade quando viajo em aviões. Da última vez, quando minha bexiga me traiu tive que viajar o resto do percurso dentro do banheiro e permaneci lá por quatro horas. Fora que para as pessoas com os bumbuns mais avantajados, como eu, aquelas cadeiras são horríveis, ficamos apertados e o espaço entre um acento e outro é mínimo. Malditas empresas capitalistas.

Sentei ao lado da janela e uma forte chuva começou a cair. Olhei para a minha tia em pânico,. Ela se debruçou entre as poltronas e baixou a cortina. 10 horas. 10 horas. Era quase o tempo que eu gastaria para ir aos Estados Unidos. Conhecia muito pouco o Amazonas, claro que não ao ponto de achar que na cidade só haviam índios. Sou muito bom em História e Geografia, por sinal. Só queria que a tortura acabasse logo.

Havia atualizado minha playlist. Coloquei todas as bandas que eu gostava: Oasis, Coldplay, The Keane, Rediohead, ABBA, entre outros. Meu gosto musical era a única coisa que salvava em mim, pelo menos, eu achava. A primeira música que tocou foi "The Scientist", do Coldplay. Felizmente, o remédio fez efeito mais rápido do que o esperado e acabei adormecendo.

Por causa dos medicamentos, sonhei com o dia do acidente dos meus pais. Minha mãe me acordou de madrugada e pediu para que tomasse de conta dos meus irmãos, porque o papai estava passando mal. Eles seguiram para o hospital, porém, nunca chegaram lá. Era um dia chuvoso e um barranco caiu em cima do carro deles. Eu demorei muito para digerir tudo. E a minha tia, mesmo com 24 anos, assumiu a responsabilidade de nos criar. Ela era muito ligada com mamãe.

— Yuri, querido. Acorde. Chegamos. — titia disse me chacoalhando.

— Chegamos, como assim? É impossível. Eu dormi por 10 horas? — perguntei confuso.

— Dormiu. E babou toda a poltrona. Pelo menos, não fez xixi. Tirei umas selfies, depois olha meu face. Hashtag sem noção. — disse Giovanna rindo e balançando o celular em sua mão.

— Pessoal. Vamos. Quero ver os macacos, as araras. O meu amigo Thomas falou que vou morar em cima das árvores. — soltou Richard correndo de um lado para o outro.

— Querido, calma. Não vamos morar em cima das árvores. — garantiu tia Olívia para tristeza de Richard.

A aeromoça permitiu que fossemos para a área de desembarque. Estávamos cheios de malas, então tivemos que esperar alguns minutos. Ao todo, eram 10 malas enormes, toda a nossa vida no Rio de Janeiro foi condensada nelas. Até que o aeroporto estava bem refrigerado. "Ahhh... o pessoal exagera com o calor do Norte", pensei comigo mesmo.

Pegamos carrinhos para carregar todas as malas e nos dirigimos para o estacionamento do Aeroporto. Quando as portas se abriram senti apenas um leve vento quente que deixou meu rosto vermelho. "Puta merda", pensei em seguida.

Calor. A única coisa que eu pensava era em mergulhar em uma piscina cheia de gelo. A minha tia alugou um carro no aeroporto e instalou o GPS. Ao entrarmos, a primeira coisa que fizemos foi ligar o ar-condicionado. Ainda bem que fui no banco da frente. Sempre foi assim, titia dirigindo, eu sendo o co-piloto e os pestinhas atrás.

Fiquei impressionado com Manaus. Nunca vi tanto verde na minha vida. O caminho parecia uma floresta. Será que os comentários que via na internet estavam certos? Até que vi o Rio Negro pela primeira vez. As águas escuras balançavam de um lado para o outro, ao longe pude ver uma ponte enorme.

O nome da praia era Ponta Negra. A minha tia parou um pouco, mas logo fomos embora, o sol estava forte e não tinha sinal de vento. No caminho, observava tudo o que passava como um shopping, a sede da marinha e uma igreja enorme, ou melhor, várias igrejas enormes.

A nossa casa ficava afastada do aeroporto, então, demoramos um pouco para achar. Para passar o tempo, colocamos uma seleção de músicas chamada "Nossa Bagunça", onde cada integrante da família colocou as canções que mais gostava. Tinha de tudo ali, continuei fiel ao meu gosto musical, ou seja, quando tocava um Oasis, Coldplay ou Radiohead, podia ter certeza que a opção era minha.

Giovanna deu um gritinho bem afetado quando os primeiros acordes de "Atura ou Surta" começaram a tocar. Realmente, a canção tem uma batida bem animada e viciante. E para a minha surpresa todos sabiam a letra, afinal, a Giovanna vivia metendo essa canção goela a baixo.

Na verdade, adoro esses momentos com a minha família. Uma adulta e três crianças contra o mundo. Não somos perfeitos, longe disso. Brigamos bastante, porém, nos amamos além da conta. Ver o sorriso no rosto dos meus irmãos é algo que não tem preço. Por isso, mesmo contra vontade, entrava na brincadeira deles. Cantamos o refrão gritando, alguns motoristas que passavam do lado nos olhavam de forma estranha.

***

Faço o que eu quiser

Não vou me explicar

Você sabe bem

E vai ter que me aguentar

Eu te avisei atura ou surta

Ou surta

Eu te avisei atura ou surta

Ou surta

E você sabe

Eu não quero compromisso

Não sou louca de mexer com isso

Nã ã ã ã ã ã ão"

(Francinne)

***

Passamos na frente de um grande shopping (o terceiro ou quarto, perdi as contas). Letras garrafais na fachada formavam a palavra: Manauara. Então, deveria ser o nome do shopping. Uma outra música familiar começa a tocar, uma das minhas favoritas na real, "The Blower's Daughter", do Damien Rice. Cara, esse homem é demais.

Quando passamos próximos a uma quadra de areia vi o garoto mais bonito do universo. O mundo parou naquele momento, e claro, eu agradeci. Ele era alto, cabelo baixo, moreno e estava praticando slackline. Haviam outras pessoas com ele, entretanto, meus olhos só o enxergavam. Nunca senti o coração tão acelerado.

— Uma delicia. — soltei, inconscientemente.

— Uma delicia?! O que é delicioso? — questionou minha tia me tirando do estado de transe.

— Oi? Como assim? — perguntei confuso em um dos meus habituais "gay panic".

— Você disse delicia. — repetiu titia.

— Disse não. — falei ficando vermelho.

— Disse sim. Eu ouvi. — soltou Giovanna, com uma voz afetada e chutando o banco que eu estava sentado.

— Eu também escutei. Se for comida eu quero. — ressaltou Richard rindo.

— Estava falando do clima. O clima é delicioso. — usei a única desculpa que veio à cabeça.

Giovanna ficou revoltada. Ela mostrou um vídeo de um homem fritando ovo na rua de Manaus. Detalhe, ele fritou o ovo no asfalto no dia que os termômetros da cidade marcavam 43 graus. Então, minha irmãzinha começou um monólogo sobre saudades de suas amigas do Rio de Janeiro.

— Vou me emancipar. Volto para o Rio de Janeiro de qualquer jeito. — Giovanna quando queria era chata demais, então, usei a arma infalível para deixá-la distraída.

— Olha. Alguém deu um deslike na tua foto. — falei.

— Como assim? Onde? — pegando o celular e olhando as redes sociais.

— Perdi de vista. — menti olhando para a titia e piscando.

— Valeu. — murmurou a tia Olívia.

Nos perdemos. As ruas do Parque 10, o bairro que moraríamos, são estreitas e vazias. Não havia ninguém para pedir informação. Depois de quase 30 minutos, consegui falar com o corretor e ele nos mandou a localização do imóvel.

Finalmente, após um bom tempo dentro do carro, chegamos na nossa casa. Era para ser o lugar dos nossos sonhos, entretanto, havia algo errado. Ficamos parados na entrada durante dois minutos.

— Tia. A senhora tem certeza? — questionei olhando em volta.

— Ela. Eu. Bem... — titia estava sem palavras, algo difícil de acontecer.

— Não. - soltou a 'drama queen' da família entrando no carro. — Eu só saio desse carro se for para ir ao Aeroporto. Que humilhação.

Olhei para a foto da casa e para a casa. A expressão "expectativa x realidade" nunca fez tanto sentido. Acho que o papai confiou demais nas pessoas que alugavam o imóvel. A entrada parecia uma floresta, cheia de mato, paredes velhas e descascadas, janelas enferrujadas e cocô de cachorro na entrada. O lugar estava uma bagunça.

— Qual é, gente. Não tá tão ruim assim... — soltou titia, fingindo um otimismo.

Amava a minha tia, eu realmente a amava, mas a positividade dela me dava nos nervos. Ela sempre conseguiu achar algo de positivo em tudo e em todos. Para uma advogada, Tia Olívia deveria ser mais esperta. Só que essa não foi a pior parte. Do nada, eu disse "do nada", caiu um temporal. Ficamos presos no carro por duas horas.

Nesse meio tempo, a tia Olívia conseguiu uma diária em um hotel no Centro da cidade. Quando a chuva passou, a gente teve coragem de entrar na casa. Caramba, se do lado de fora parecia ruim, nem te digo como estava dentro.

As paredes descascadas, entulho para todos os lados e um forte odor de urina. Com certeza, demoraríamos meses para organizar tudo. Investigamos cada área da casa, uma pior do que a outra. O quintal não era grande, mas estava em um estado lastimável.

— Olha, tia. Balões. — Richard entrou na casa todo feliz e segurando um preservativo sujo.

— Larga isso. — titia deu um grito e bateu na mão do Richard.

— Isso é uma camisinha? — perguntei olhando para o chão.

— Tem várias no quintal. — respondeu meu irmão.

— Ok. Podemos ir para o hotel. — implorou minha irmã saindo da casa.

Estava triste pela situação da casa. A tia ligou para a imobiliária para verificar a situação dos outros imóveis da família. Perdido nos pensamentos, quase não vi o meu Deus grego. Ele passou na frente de casa com alguns amigos. Eles pareciam felizes juntos, mas como um zero à esquerda chegaria perto deles? Não viaja, Yuri. Você nunca terá amigos.

Dormimos em um hotel perto do Teatro Amazonas. Achei aquele lugar lindo. No outro dia, a minha tia levantou cedo e foi às compras. Eu fiquei no hotel e levei meus irmãos para tomarem café.

O Amazonas é um lugar com uma gastronomia impressionante. Comi um sanduíche com queijo, banana frita e outras coisas. No quesito alimentação, eu estava em casa. Claro que não poderia exagerar, afinal, já estava fora do meu peso ideal, porém, aquilo realmente chamou a atenção. Comi quatro.

— Estou satisfeita. — anunciou minha irmã colocando um prato vazio sob a mesa.

— Já?! - falamos, Richard e eu, ao mesmo tempo.

— Ah. Espera. Me empresta teu sanduíche? — pediu Giovanna roubando o meu prato.

— Você vai comer? — quis saber.

— Claro que não. Só que meus seguidores do Insta não precisam saber. — tirando uma foto do prato. — Como é o nome disso mesmo?

— X-caboquinho. — disse meu irmão rindo — Nome engraçado.

Titia me ligou e avisou que os entregadores já estavam indo para casa. Tivemos apenas 10 minutos para preparar nossas coisas. Lá fomos nós, uma adulta, um adolescente e duas crianças. A missão? Reformar uma casa gigante. Já que o pessoal do seguro demoraria a nos atender.

Tintas, pincéis e material de limpeza. Confesso que foi engraçado no início, a Giovanna e o Richard, até que ajudaram, mas o sol de Manaus, meu Deus. Você precisa vir aqui para saber como ele é forte. Graças a Deus, que assim como a temperatura é quente, ao mesmo tempo, é instável.

Do nada começou a chover, nem preciso dizer que acabou com parte do nosso trabalho, entretanto, aproveitamos a chuva para brincar. Na caixa de som tocava a música "Don't Look Back In Anger", do Oasis. Essa canção é uma espécie de mantra.

Apesar das nossas diferenças, que eram gritantes, a gente funcionava bem como uma família. Eu sabia que podia contar com eles para qualquer coisa. Até Giovanna que é toda fresca brincou conosco na chuva. Depois de um tempo, alguns móveis chegaram. Era uma TV, colchões e quatro splitters, ou seja, nossa mobília até o momento.

***

Resolvi explorar o bairro. Mentira, a minha tia me obrigou a comprar lanche para nós. Andar em um lugar desconhecido é desesperador, uma rua errada e eu nunca mais poderia voltar para casa. Dramático? Um pouco.

De repente, recebi uma pancada no rosto e minha vista ficou embaçada. Me estabanei no chão como uma mortadela gigante. O que será que me atingiu? Pensei comigo mesmo, porém, continuava deitado no asfalto quente.

A visão turva dificultou a captação de informação. Consegui ver uma mão estendida na minha direção e pego nela. Fechei os olhos por um tempo, quando os abri, por um segundo, fiquei sem fala. É o gatinho que vi anteriormente. Caramba, de perto ele conseguia ser ainda mais gato. Ele começou a falar comigo, porém, preferi prestar atenção em outros detalhes.

— Você está bem? — ele perguntou, ainda segurando minha mão.

— Sim. — respondi depois de um tempo e olhando para a minha mão que ele segurava.

— Que bom. — ele disse soltando minha mão, o que me deixou triste.

— Moço, desculpa. — pediu uma garota de cabelos longos, quase uma rapunzel amazônica.

O pedido de desculpas se transformou em uma confusão. Ainda estava sob o efeito anestesiador da bola no meu rosto. Agradeci pela preocupação e eles começaram a discutir entre si. Pelo pouco que entendi, a culpa foi da moça de cabelos longos que se chamava, Letícia.

— Eu disse para você não chutar forte, Letícia. — disse um rapaz fortinho, um típico boy de academia.

— Já pedi desculpa, Brutus.

— Gente. Tá tudo bem. — tentei acabar com a discussão, pois minha cabeça estava doendo.

— Tem certeza? Posso te acompanhar. — falou o meu crush, que ainda não sabia o nome, mas estava louco para descobrir.

Se fosse em outro universo e eu tivesse coragem para fazer qualquer coisa, pularia em cima dele e o lamberia como se fosse um picolé. Além de gato, ele era gentil, porque se preocupou comigo, um completo estranho. Com certeza, já tinha uma namorada. Que horror. Para de olhar para ele. Yuri. Para. Fala alguma coisa. Fala que está bem.

— Estou ótimo! — quase gritei e me afastei dele.

Do nada, um deles fez uma piada gordofóbica. "Eita, que uma bola bateu na outra", disparou o rapaz. Ele riu da própria piada ruim e foi repreendido pelos outros. Eu conhecia esse tipo de gente, sempre faz uma brincadeira para atingir a aparência física dos outros.

— Cala boca, Vando. Que cara sem noção. — rebateu Letícia.

— Babaca. — disse o meu príncipe encantado.

— Falei brincando. Eu hein. Desculpa aí, irmão. — Vando bateu no meu ombro e se distanciou do grupo.

— Relaxa. — falei.

Que dia, cara. Além de tudo, ainda teve o comentário do tal de Vando. Tá, não foi nada comparado a outras coisas que já ouvi. "Rolha de poço", "baleia", "Bolha Assassina", "Gordão", "Majimboo", são apelidos comuns para mim.

Graças a Deus, que eu podia contar com uma coisa: comida. Nossa, a comida me fazia esquecer de todos os problemas.

Continuei o meu caminho e achei uma pequena padaria chamada de "Doce Horizonte". Tão fofinha. Acho que o tema do estabelecimento era Mundo Encantado, porque tudo remetia aos contos de fadas. Entrei e vi uma infinidade de delícias. Todas esperando por mim.

A dona do local logo se apresentou. Se chamava Helena, uma mulher gordinha e toda delicada. Parecia escolher cada palavra com todo cuidado. Falei que era novo no bairro e ainda estava conhecendo os empreendimentos.

— E o que você vai querer? — ela perguntou.

— Sete pães, três salgados de queijo, três sonhos e quatro fatias de pizza. — pedi, enquanto olhava as opções da vitrine.

— Nossa. Família grande, né?

— Sim. Demais. — dei um riso amarelo.

Cheguei em casa, entreguei os pães para a minha tia e comi o resto. Sim. Podem julgar, não ligo, porém, a comida me fazia esquecer os problemas. É como se fosse uma droga, uma droga deliciosa. Espero não encontrar a turma da rua por um bom tempo. Acho que eu virei motivo de chacota para todos.

A semana seguinte foi de adaptação, entretanto, era impossível enfrentar aquele calor todo. A minha tia começou a trabalhar, então, a responsabilidade de cuidar de tudo ficou nas minhas costas. Os móveis novos chegaram também, a parte de montar foi a mais difícil, aqueles manuais de instrução são horríveis.

— A gente não deveria montar isso lá dentro? Estou derretendo. — perguntou Giovanna fingindo passar mal.

— A furadeira deixa tudo sujo. E para de chorar que estamos acabando. — a repreendi ao perceber o teatrinho.

— Giovanna. Posso colocar fogo no teu cabelo? - questionou Richard segurando um maçarico.

— Mete esse negócio no teu ...

— Ei! - falei alto para não deixar minha irmã terminar a frase e peguei o maçarico — Já conversamos sobre você segurar esse tipo de material. — olhei para Giovanna de forma séria. — Cuidado com essa boca.

Meus irmãos tinham personalidades distintas, eu era o mais velho e precisava dar o exemplo para eles. Nem sempre foi fácil, na verdade, nunca foi fácil. A tia Olívia tentava, entretanto, não era uma boa dona de casa, sem julgamentos. Ela não dizia nada, mas, muitas vezes, sabia como era estressante para ela. Cuidar de três crianças e ainda ter que trabalhar. Por isso, eu mesmo resolvia os problemas deles.

Não conseguia montar a última parte do móvel. A Giovanna já estava estressada, e claro, me estressando. Ouvi uma voz familiar, virei e encontrei o meu crush parado na mureta de casa. Ele tem um sorriso espetacular e não pude parar de olhar.

— Oi. — Giovanna cumprimentou o rapaz toda animada. — Quem é você?

— Sou José Eduardo, mas pode me chamar de Zedu. — ele respondeu com um sorriso que poderia iluminar o mundo.

Zedu. Então, esse era o nome do meu príncipe encantado manauara? Bom saber. Ele pulou a mureta com uma facilidade de impressionar. Expliquei o que estava fazendo e o Zedu se ofereceu para ajudar. Quem adorou foi a Giovanna que, em movimento rápido, entregou todas as ferramentas na mão dele.

— Por favor, monte a prateleira, ela vai ficar na sala, mas não faz muito barulho. — pediu Giovanna entrando em casa.

— Não liga para ela. Meio biruta a coitadinha. — falei tentando diminuir os estragos do furacão Giovanna. — E você. — falei olhando para o Richard. — Você entra e vai tomar um banho.

— Posso levar o maçarico para o banheiro? — ele perguntou como se fosse a coisa mais normal do mundo.

— Só sobre o meu cadáver. Vai... agora! — ordenei.

Fiquei sozinho com o Zedu. Tentava buscar na minha mente opções de conversas casuais para se ter com o crush, mas não havia nada. Por sorte, ele era um cara bem descontraído e não demorou para falarmos sobre todos os assuntos possíveis.

Infelizmente, como toda felicidade na minha vida dura pouco, a Giovanna saiu desesperada e avisou que o banheiro estava pegando fogo. Zedu e eu, entramos na casa e vimos uma fumaça saindo pelas frestas da porta. Em um ato rápido, Zedu chutou e derrubou a porta. No meio da fumaça encontrei Richard desmaiado. O peguei no colo, enquanto Zedu usava a ducha higiênica para extinguir o fogo.

O meu irmão teve a brilhante ideia de colocar fogo na cortina do banheiro com o maçarico. Precisei ligar para os bombeiros e solicitar uma ambulância. Graças a Deus nada demais aconteceu, o Richard apenas inalou muita fumaça e o banheiro não ficou tão queimado.

Minha tia chegou e ficou uma fera. O Zedu até tentou me ajudar, mas ouviu um belo sermão junto com a gente. O Zedu, Giovanna, Richard e eu, sentados no sofá escutando tudo o que a minha tia tinha para falar. Segundo mico próximo ao Zedu. Alguém tá contando?

— Deixo vocês sozinhos por cinco horas. E vocês me colocam fogo na casa?! — percebo o nervosismo na voz da titia, mas aquilo me deixou chateado.

— Tia, foi muito rápido e...

— Você era o responsável, Yuri. E se tivesse acontecido algo? — ela questiona me cortando.

— Não aconteceu tá! - gritei me levantando. — Eu não deixei nada acontecer! Se a gente estivesse no Rio de Janeiro, nada disso teria acontecido. — encarnei o lado dramático da Giovanna e sai da sala.

— Chocada. — cochichou Giovanna para Zedu.

— Ele tá bravo. — meu irmão confirmou o óbvio.

— Bem. — titia disse se recompondo e indo até Zedu. — Meu jovem, obrigado pela sua ajuda, mas você pode ir.

— A senhora pode falar para o Yuri que mandei um abraço? — ele pediu, levantando do sofá e saindo de casa.

— Claro.

Levei uma bronca desnecessária. Sorte que o Richard ficou duas semanas de castigo. No meu quarto, descontei toda a frustração em cima da comida. A tia Olívia não tinha o direito de brigar comigo na frente dos outros, principalmente, do Zedu. Naquela casa, eu sempre fui tão responsável quanto ela. Queria gritar, chorar e ir embora. A comida era a única amiga.

Em casa, a gente tinha uma regra clara: não podíamos ficar muito tempo com raiva uns dos outros. Naquela noite, a Tia Olívia bateu à porta do meu quarto. Tive que esconder os pacotes dos doces que estava comendo. Após o susto, me recompus e deixei ela entrar.

— Desculpa amor. Mas imagina que você está no trabalho e recebe uma ligação dos bombeiros falando sobre um incêndio na sua casa. — ela disse me abraçando.

— Tudo bem, tia. — falei, mesmo sabendo que nada estava bem.

— Não, não está. Eu sei como você é cuidadoso com seus irmão, principalmente, com o Richard. — ela disse fazendo carinho na minha cabeça.

— Eu sei, tia. Eu cuido. Foi um minuto e... — por algum motivo, o Yuri sentimental tomou conta de mim e lágrimas escorreram pelo meu rosto.

— Ei. Nada demais aconteceu. — titia tentou amenizar a situação com um abraço carinhoso.

Não muito longe dali, Zedu se encontrou com seus amigos. Eles se reuniam em um lanche, onde conversavam e matavam o tempo. Quatro pessoas faziam parte do grupo:

Zedu: Ele era a cabeça do grupo. Sempre bolava ideias para a diversão dos amigos. Ele gostava de música, futebol e judô;

Bruno: Melhor amigo de Zedu, conhecido também como Brutos, devido ao seu porte físico. Não era muito inteligente, mas uma pessoa de bom coração.

Letícia: A bela do grupo, porém, nem ouse dizer isso para ela. Ela é bonita, ótima em esportes e uma verdadeira moleca;

Ramona: A zen do grupo. Sempre acompanhava seus amigos, mas não se arriscava em praticar esportes radicais.

***

Parece que o incêndio na minha casa se tornou notícia no bairro. Os amigos de Zedu sabiam de todos os detalhes. Ele ficou reflexivo por tudo o que aconteceu e se perdeu nos pensamentos.

— Zedu! — falou Brutos estralando os dedos na direção de Zedu. — O cara tá no mundo da lua hoje. Geralmente, esse é o papel da Ramona.

— Cala a boca. Idiota. — respondeu Ramona, que mostrou o dedo do meio para o amigo.

— Oi. O que foi? — perguntou Zedu.

— Estamos comentando da casa que pegou fogo. — informou Letícia, roubando uma batata frita de Ramona.

— Foi um incêndio pequeno no banheiro. Nada demais. — explicou Zedu de forma casual, surpreendendo os amigos.

— Você estava lá? — perguntaram os três em coro.

Zedu explicou tudo o que aconteceu na casa número 23 da Rua das Andorinhas. Os amigos ouviram tudo com atenção. No meio da conversa, apareceu Vando, o cara que praticou bullying comigo. Ele era mais velho e conhecido no bairro por aplicar pequenos golpes nas pessoas.

— Olha se não é o quarteto fantástico. — ele disse sentando ao lado de Ramona que se afasta.

— Se não é o sem noção. — alfineta Letícia. — Gente, preciso ir. Amanhã vamos ao médico. — ela disse, antes de sair.

— Brutus. Lembra que precisamos ir na casa da tua tia? Vamos. — Ramona, praticamente, arrasta Brutus com ela.

— Espera, Ramona. — indo embora com a amiga.

— Beleza, moleque. — Zedu cumprimentou Vando. — Vou vazar também.

— Até depois, carinha. — soltou Vando esperando Zedu se afastar e prometendo vingança. — Vocês vão pagar caro!

Infelizmente, nem só de pessoas boas é feito o mundo. A minha ida para Manaus seria uma aventura sem precedentes. Descobria amores, amizades e desafetos. Se eu estaria preparado para tudo isso? Bem, só o tempo vai dizer.

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Comentários

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Olha q legal falando da minha cidade que é quente pra caralho msm!! Vc descreveu yao bonitinhos os lugares e fiquei com impressão de ser ali pelo csu. Adorei

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MAO é a minha cidade do 💙💜

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Ganhou um leitor e fã. Acompanhando e ansioso por mais!

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Muito interessante, adorei o personagem não ser mais um clichê e o fato de gostar de rock inglêsdeixa mais interessante ainda,aguardando novo capítulo.

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Legal, pq não come os desafios também

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