Paraíso

Um conto erótico de Piet
Categoria: Homossexual
Contém 1055 palavras
Data: 12/05/2015 18:45:58

“[...]no perigo e na horrível desesperança de tudo aquilo, eu ainda residia no paraíso de minha escolha, um paraíso cujo céu tinha a cor das labaredas do inferno, mas ainda assim um paraíso.”

Eu sei que minhas escolhas de vida são calcadas numa distorção imaginética, assim, transformo o que me cerca ao bel-prazer do meu bem estar; penso, não como uma forma de mentira, mas uma forma de viver a cruel liberdade sem rumo, como se esta, fosse menos desamparadora e talvez... poética. Tudo pode deformado, uma vez que a forma permite, e é nessa possibilidade artística que me entrego como um naufrago, em desespero pela superfície de um mar profundo de solidão e caos.

Estou cansado de ver os dias passarem como se fossem um só; viajando de carro por aí, trocando favores sexuais, usando de tudo para legitimar que estou bem, vivendo na fantasia que se dissolve na realidade inexorável de que nada pode de fato, me estruturar e me fazer são plenamente.

Meu cara não consegue me atender, talvez eu seja só um comparsa, mas para mim, ele é o ar que me enche, que ao sair da minha vida, deixaria um enorme vazio, mas ele não entende, ele não entende.

Somos almas distintas, eu posso ouvi-lo partir, é inevitável, eu sinto o prelúdio de lágrimas que irão cair como anjos ao inferno. EU SINTO. No entanto, não quero deixá-lo ir. Ele é o meu centro, pelo menos no momento. Vá embora! Eu vou fingir que não ligo, vou ser de novo de outro alguém, e sofrer de novo pois é essa a minha sina; dizem-me que não preciso disso, enfatizam minhas qualidades, mas nada disso me importa, tenho que tê-lo todos os dias, chego ao ponto de acordar de madrugada – nas poucas noites em que durmo – só para me certificar que ele esta aqui. Mas tudo bem, vá embora! Eu repetirei nossa história.

Não penso em largar o tráfico, ele é a interligação de nossa relação efêmera, pois sobre qual base eu construiria os nossos sonhos de permanecermos juntos até a morte, num belo dia seríamos exterminados e imortalizados, na nossa juventude e no nosso “amor”.

Eu não nunca fui uma pessoa comum, diziam que eu tinha essência, por conta disso eu posso modificar a mim e ao modo que ajo perante o mundo, mas se a labilidade não for uma essência, por que então ela perdura? Cigarros em nossas bocas, cocaína escorrendo do nariz, a nossa certeza era de que não tínhamos certezas, nossa música e nossa cultura peculiar nos levavam a tempos em que viver intensamente era viver de forma plena. A única dúvida que me atormentava era pensar em perdê-lo, quem mais me aguentaria? De onde eu tiraria o meu oxigênio? Mas tudo é efêmero, principalmente as coisas boas.

Eu sinto a frieza do primeiro sol, passando pelo meio termo entre seu estágio tórrido, por fim a frieza da noite, cada segundo, cada minuto, que juntos formam as horas, os dias, os meses... estávamos numa turnê cujo fim não estava delimitado. A turnê da cocaína e dos alucinógenos, nosso jatinho era um carro gasto e eficiente, nosso show era distribuir adictivos; depois de uma longa jornada perigosa, fitávamos um ao outro, com um sentimento complacente, na verdade era mais de minha parte, eu o tinha como quem tem a algo, algo que se é caro, não um mero objeto ou um mero cúmplice. Apesar de tudo, ele quis ir embora. Dizia querer mais, correr atrás de mais grana, se tornar um grau abaixo de um magnata; eu pedi, expliquei que poderíamos fazer juntos, mas ele tinha de ir.

Não posso narrar transas memoráveis, pois me traria a mais profunda nostalgia. Não houve apenas transas, houve conexões de alma, coisa que não é prosaica e, a própria narração não dá conta da riqueza transcendental de tal ato. Não foi um “comer de bunda”, ou boquetes sem sentido, foi uma conjuntura de experiências metafísicas. Ele se foi, levou consigo o sol, levou consigo o inferno revestido em paraíso, em outras palavras, ele me lançou no inferno sem a possibilidade de ilusão. Senti raiva, vontade de matá-lo, de destruir sua vida já destruída, mas não se pode destruir um drogado, é impossível fazê-lo descer da escala subterrânea que ele esta inserido; insensibilidade é consequência de tal vida.

Ele se foi com o carro, as drogas, e a minha esperança. Restando a mim, a prostituição e a miséria, sem contar os furtos e as perseguições decorrentes disso – e com apenas dezoito anos de idade. Aprendi muito nas ruas, aprendi que a maldade vem de fora, que a malandragem é proteção, sem a qual não há subsistência para quem vive como um nômade. Criei pra mim um estatuto, nele eu me baseava e na medida do possível me reestabelecia, pude alugar um quarto com outro garoto de programa/ladrão, às vezes trabalhávamos juntos, em festinhas imundas promovidas por velhos ricos. Eu estava viciado na cena, vivia atrás de cocaína, vivia atrás de depressores do SNC, de tudo que me fizesse flutuar sobre o lixo em que me encontrava. Quando dei por mim, estava numa cama de hospital, depois de uma overdose em que misturei álcool e cocaína, mas não me preocupei, senti no fundo um grande desgosto por não ter morrido.

A rotina no hospital era meio lenta, fiquei internado para um leve desintoxicação, ao ler o jornal certo dia pude ler uma nota quase escondida, sobre a morte dele, meu dealer. D-E-A-L-E-R, D-E-A-R. Meu dear. Voltando à nota, ela rasamente dizia, de maneira sensacionalista, a morte de um jovem por policiais, num tiroteio na fronteira da Bolívia, ele tinha ido justamente tentar a sorte numa terra de gigantes da coca, ele subestimou demais, pensou de menos, todos sabem que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco, ele era apenas um fornecedor, não tinha nenhum aparato. Eu não me deliciei com sua morte, ela não me serviu como redenção, eu tive muita pena, foi como se ele tivesse me deixado por duas vezes, porém, desta vez era pra sempre. Não ouso buscar forças nas nossas lembranças, acaba sendo pior, ao mesmo tempo eu não o esqueço, seguir em frente é difícil, pois o seu fantasma me assombra, invade meus sonhos e sequer posso ter a esperança de voltar ao que era antes.

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Comentários

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Pietro é um ser complexo. Sua realidade se iguala a realidade de tantos outros, a dureza de sua vida deriva justamente da tentativa do alívio, da tentativa da "solução" que na estrada, ele tenta encontrar. Por ser algo tão duro, as medidas de alívio são extremas, numa leitura bem superficial, talvez seja senso comum afirmar que ele cova seu próprio túmulo e se degrada porque quer, mas numa análise social, é perceptível que tudo que ele busca é ajuda, mas num mundo cada vez mais individualista isso se torna impossível. Não devemos nos prender ao senso comum!

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Há algum limite para o fundo do poço no qual se encontra o Pietro? Dificil sequer imaginar. Dessa vida excessivamente dura, funesta, tresloucada em que ele mergulhou creio que nao há soluçao. Mas pensando bem: acho que ele nao quer uma soluçao.

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