Confiar

Um conto erótico de Piet
Categoria: Homossexual
Contém 900 palavras
Data: 25/05/2015 19:01:52
Última revisão: 25/05/2015 21:57:47

O céu soberbo derrama sobre os mortais de maneira vaidosa a sua luz, prerrogativa sua; mesmo assim, de que importa esse reflexo morto e todos os tons que pintam os dias; seja ele cinza ou alaranjado, ele é um mero pano de fundo para os maus acontecimentos. Sob o céu ocorre estupros, assassinatos e tudo que for hediondo, ele apenas envolve os acontecimentos com a sua ocasional tonalidade in loco. Deus não mora no céu por mera coincidência.

Voltei a sair na rua, consequentemente a ser envolvido pela luz, a indiferente luz. Eu encontrava meu colega de quarto sempre no seu ponto habitual, ele passou a trabalhar por nós dois, eu me sentia mal por isso, pelo quanto ele se sacrificava; sempre o esperava em casa com todo o conforto que ele merecia, preparava seu comida, arrumava suas roupas e estava sempre pronto a ouvi-lo, a dar-lhe apoio. No decorrer do tempo pensei em ajudá-lo para o vestibular, ele desejava passar em algo, ter uma vida menos dura; lembro o quanto estudei para poder ensiná-lo em seguinte, eu tinha nele a motivação para a aquisição de conhecimento, ele merecia passar numa boa universidade e num curso rentável.

Eu não era como o céu, indiferente e impassível. Eu tinha mais do que consciência do que acontecia a minha volta, dos sofrimentos que ele se impunha em condolência a minha reclusão da prostituição. Não era mais do que minha obrigação apaziguar seu dia e fazê-lo chegar onde quisesse. Tudo isso me fez ver que, pela primeira vez eu estava em simbiose com alguém. Às vezes me sentia um explorador por ficar em casa, era um sentimento inevitável, mas se ambos trabalhassem, não haveria como ajudá-lo moralmente, pois eu estaria em situação idêntica e, de mãos dadas, nós caminharíamos para o mesmo lado de sempre: drogas, clientes e uma correria que não nos levaria a lugar algum.

Ele prestou vestibular e passou numa universidade federal em Engenharia Civil; parece inverossímil, mas sempre fui bom em exatas e ensiná-lo não foi difícil. Agora eu tinha de trocar de lugar com ele, pois não daria pra que ele conciliasse o trabalho e a faculdade; vi isso tudo como um tiro no próprio pé, no fim das contas seu sacrifício foi bem pródigo. Abandoná-lo nesse momento? Não. Eu deveria ser um mártir, encarei esse papel, agora só encerraria quando ele andasse com suas próprias pernas, coisa que era impossível em início de curso.

Novamente eu encarava as ruas, depois de um hiato de meses; a rotina era insuportável, mas nada que o amor pelo meu amigo não pudesse superar, esse amor que não exige sexo, esse amor desinteressado que nunca recebi e no entanto eu sentia. Ele dizia que quando se formasse nós viveríamos numa casa legal, com um grande cachorro, uma piscina, num lugar bucólico onde houvesse um lago, para que nós passássemos a noite bêbados conversando sobre o píer. Nunca mais transaríamos com alguém que não quiséssemos, não tocaríamos em cocaína nunca mais, eu seria ajudado por ele financeiramente enquanto estivesse fazendo a minha faculdade, assim como fui ajudado quando não me dispus a me prostituir por um tempo.

Eu estava tranquilo, me sentia bem! Não me importava em atender dois ou mais clientes de uma vez, em ser o ponto central de uma orgia, onde se despeja certas coisas. Eu não vivia para o então presente, mas sim na esperança do futuro, uma experiência que posso até dizer que era nova. Tentava não usar cocaína, pois não queria uma reabilitação depois, queria estar limpo para o novo mundo.

Quando chegava em casa, não tinha quem me ouvisse, ele estava estudando ou num encontro com alguma turma da universidade, ligar era inútil, pois ele não atendia. Mas tudo bem, deveria fazer parte de seu progresso e de sua nova vida na academia. Eu juntava então minhas forças e preparava algo pra comer, como eu estava exausto, não era raro que eu dormisse logo. De vez em quando ele aparecia, como se nunca houvesse ausência, com um sorriso de orelha a orelha e repito: Como se nunca houvesse ausência. Eu ficava feliz, pois na ausência eu ficava a sua espera.

Não consegui resistir a coca, eu estava plenamente só. Depois ele me reabilitaria, como ele era generoso! Eu me sentia um egoísta ao pensar que estava sendo postergado, afinal, eu não poderia roubar sua vida. Ele nunca se queixou de ter ido ao sacrifício por mim, então por que eu o faria? E cada vez mais, eu precisava fazer mais clientes para dar conta das despesas; não era tarefa fácil, visto a facilidade de se obter sexo gratuito hoje em dia, então eu nadava contra a maré. Enquanto isso, era cada vez mais perceptível sua felicidade.

Anos se passaram, ele se formou. Sua vida ganhou um novo rumo, do qual ele soube aproveitar. Ele apenas sumiu no mundo, deixando todas as promessas feitas como se tivessem sido palavras ao vento; seu celular foi programado para ignorar minhas ligações, quando pude ligar de outro número, ao ouvir minha voz ele desligou, depois deve ter bloqueado seu chip. Ele se foi sem dizer ao menos “adeus”, tudo que eu fiz foi desconsiderado por ele, se é que algum dia ele considerou. Sob o sol, o impassível sol, em desespero, pulei do quinto andar do apartamento onde ficava nosso quarto.

* Essas foram algumas memórias póstumas de Pietro.

FIM

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Comentários

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Bom, como.suspeitei, nao haveria mesmo saida para ele dada sempre a situaçao extrema, a cada capitulo. Mesmo quando ele pareceu feliz, as coisas nao estavam bem, nao eram equilibradas. :/ Sempre se doando muito para nada, para as piores pessoas. Muito triste...

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Nossa! Que triste! Injustiça e ingratidão são o que há de pior nessa vida!

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gostaria.que.ele.sobrevivesse.e.tivesse.uma.nova.chance.de.ser.feliz.desse.a.volta.por.cima...faça.isso.por.favor.boa.semana.querido!

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