Contramão

Um conto erótico de Clara Nin
Categoria: Heterossexual
Contém 808 palavras
Data: 14/09/2014 08:55:31
Assuntos: Heterossexual

CONTRAMÃO

Chamava-se Alice, e tinha acabado de chegar de uma longa viagem pela Inglaterra. Alice, de volta ao país das não-maravilhas: meninos amarrados e expostos sem ninguém querer levá-los pra casa; milhares de sem-terra reunidos e apanhados na capital federal; mentirosas interlocuções entre parlamentares de esquerda e supostos terroristas assassinos propagadas pela mídia, sendo que #ElatinhaligaçõescomMarceloFreixo. Tempos agitados para uma mudança de fuso-horário. Vinha dirigindo, incrédula com a ordem das coisas, perturbada com a desordem do país, e, quando se deu conta, entrou numa contra-mão. Custou a acreditar, achava que não podia mesmo virar à esquerda - emblemático! -, mas até podia; sendo que não como se estivesse na mão inglesa. Deu um tilte, como dizem por aqui, uma pane total e completa que desgovernou a sua razão. Desconsertou-se.

Resolveu parar o carro e tomar uma cerveja, buscando um pouco de repouso numa comedida embriaguez. Mas não achava o lugar ideal: uns com cara de sujo, outros com cara de lanchonete, outros muito cheio de amigos, quando queria a solidão, sem perguntas sobre o estrangeiro... Se estivesse em Londres, qualquer pub serviria, pensou, desdenhando do seu dilema pequeno-burguês.

Parou num boteco não tão sujo nem tão perto de casa, em que tocava um estilo musical não exatamente da sua preferência, mas a fazia sentir que estava em sua terra - diferentemente dos já insuportáveis technos dos pubs de Londres. Povo sem ritmo! - pensou, talvez para amenizar o desgosto que lhe provocava o forró de plástico que estava ouvindo naquele bar. Lembrou de quando era ainda menina e gostava de músicas ruins, e combinou consigo mesma que iria escutar novamente aquelas bandas de pagode romântico qualquer dia desses, para uma avaliação mais amadurecida do estado da arte da música brasileira.

Foi quando olhou para cima, na diagonal da sua solitária mesa, e encontrou um par de olhos castanhos brilhantes, de cílios particularmente escuros e marcantes em um rosto com uma barba por fazer. Sentiu-se enebriada, entorpecida como no carnaval. Da janela de um edifício, o sujeito olhava para ela como se ouvisse o último frevo da quarta feira de cinzas nas ladeiras de Olinda: melancólico em estado de carpe diem. Após um certo tempo-sem-tempo dos olhares de prenúncio, eis que o sujeito desaparece e reaparece na mesa até então solitária da moça repatriada que tinha entrado na contra-mão.

Thomas, era esse o nome dele, significava gêmeos em inglês - uma das conversas da mesa do bar, resultado de uma mãe fã da terra dos Beatles, cujo signo astrológico era o mesmo de Alice - volúvel, oscilante entre as várias possibilidades de vida que poderia ter, querendo todas elas ao mesmo tempo: a Inglaterra e o Brasil; a timidez e o rebolado; a segurança da lei e o anúncio da contravenção; o "de tudo ao meu amor serei atento" e a "metamorfose ambulante" que todos preferimos ser.

Papo vai, papo vem; esclarecidas as ligações de ambos com Freixo e com o MST; entorpecidos de um mesmo carnaval; vem-comigo-vai-ser-divertido-há-dias-que-eu-planejo-beijos-ao-luar-em-dias-de-fantasia... Alice foi, sem entender bem se podia ir, deixando-se levar por aquele impulso da carne, sendo ela, até ali, tão vegetariana. Quando se deu conta, que nem quando entrou na contramão, estava no quarto dele. A janela, que dava para o boteco, de onde os olhos castanhos de Thomas fitaram os dela pela primeira enebriante vez, com seus cílios marcantes, foi fechada.

O calor que então passou a fazer no quarto era o calor de seus corpos, acesos pelo desejo. Começou com um beijo meio óbvio, meio de surpreendente; um beijo inusitado entre línguas ofegantes e carnavalescas de pessoas que já se conheciam, mas nem tanto. Fervia, que nem nas ladeiras. Todos os milímetros de pele em ebulição, fervorosos. Maracatu de baque solto. Vertigem de frevo-canção. Pisada de caboclo de lança. Vai-e-vem de cirandeiro.

A essa altura, com os mamilos ouriçados, Alice se desfazia. Entregava-se à saliva de Thomas, que chupava firmemente a sua vulva enquanto movimentava seus dedos frenéticos no interior das entranhas dela ate levá-la ao mais completo gozo. Refrescando-se do calor no chuveiro, viveram momentos de intimidade esquecidos de seu desconhecimento um do outro. Mais um pouco e se encontravam novamente na cama de Thomas, em cima de quem Alice se remexia, frenética, requebrando para cima e para baixo, e depois, de quatro, para frente e para trás. Mordidas e gritos sufocados. Outro gozo. Outro despertencimento da realidade.

Sexo de deixar marcas, arroxeados de tesão em meio ao ritmo nordestino brasileiro. Muito distante do que Alice havia experimentado na Inglaterra, entre os pudores nórdicos, de um povo que não conhece o pulsar de fevereiro. Estava feliz por voltar pra casa, antecipando o Carnaval.

Alice ainda queria mais, e o reclamou, mas Thomas precisava ausentar-se daquela aventura. Perto de casa, perto do carnaval, ela voltou, enfim, para a sua realidade. A Inglaterra que ficasse para trás; afinal, a contramão até que lhe caía bem.

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Comentários

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Pessoal, que comentários generosos!!! Vou ler e opinar nos contos de vcs também, pois esse retorno é muito bacana, de verdade :) Obrigada, de coração!

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Grande conto! A forma contextualizada com que coloca as situações ao leitor é um facilitador para uma maior identificação. Ao fazer esta relação de proximidade, o leitor também aproxima o conto da realidade, passando, não apenas a lê-lo, mas a vivê-lo. Teus contos são um delicioso convite a mergulharmos na história. Mais uma vez, parabéns! Beijos mil. Nídia.

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