O agridoce sabor das impurezas

Um conto erótico de Dödòi
Categoria: Heterossexual
Contém 2197 palavras
Data: 10/05/2008 12:36:50
Assuntos: Heterossexual

Uma das tantas ruas do Centro antigo.

Sobrados mal conservados, depósitos, lojas, poucos prédios altos, pensões de comida barata, estacionamentos, casebres abandonados, e, ainda, alguns cortiços, onde vidas quase sem esperança, passam e escorrem em direção

ao desperdício.

A menos de cem metros, sobre a antiga queijaria, há uma destas cabeças-de-porco, onde passei a minha infância e adolescência, num quartinho miserável e sem janela, na companhia insuportável da minha avó. As emoções que me tomam são intensas. Quando saí deste pedaço do inferno, jurei que nunca mais voltaria.

Não sabia ainda que o mundo dava voltas, e que somos presas eternas dos nossos piores e mais cruéis demônios. E, muito menos, o inferno nem sempre é o que aparenta.

Com exceção do asfalto, pouca coisa mudou. Conheci cada paralelepípedo agora sepultados. E eles a mim.

O cheiro forte do depósito de papel me invadiu. Um frêmito de prazer, irreprimível, percorreu meu corpo. Ali, em meio aquele labirinto de resmas, conheci dedos mágicos. Ali, sentindo aquele cheiro forte, quase sufocante, e sem querer demonstrar o meu prazer, um prazer que eu não desejava, que me dava vergonha, era transportada aos céus por um pervertido. Ali, eu vendia doces para ele, que só comprava às sextas, depois das seis horas, quando os empregados saíam. Era a minha salvação, porque, se não vendesse tudo, minha avó me batia. E ele arrematava o que eu tivesse e ainda me dava um dinheirinho a mais. Pouquinho, dava para um refresco. Só acariciava meus seios e me bolinava. Nunca quis ou pediu mais que isso. Por mais perversa a situação, eu gostava. Acho, que ele se sentia mal, envergonhado, com o que fazia.Ficava tão nervoso e nunca olhava nos meus olhos. Talvez tivesse filhas mais ou manos da minha idade. Talvez levasse os doces para elas.

Me deu vontade de entrar e pedir, não que comprasse doces, mas que me transportar-se aos céus com seus dedos suaves, como ele fazia. Me dei conta que talvez nem estivesse mais vivo. Não entrei, claro.

Ao aproximar-me da primeira esquina, uma emoção que eu não queria ter. Julinho, sentado entre caixas de papelão, jornais velhos e outros bagulhos que juntava para vender no ferro-velho. Mais encanecido, mais sujo, mais bêbado, mais destruído. Um dos homens mais dignos que conheci. Um poeta da miséria. Meu anjo da guarda, meu melhor amigo. Jamais poderia tê-lo esquecido. Senti vontade de chorar. Remorsos. Pensaria nele depois.

Minhas urgências eram outras, sórdidas e egoístas. Mórbidas.

A antiga queijaria estava lá, o gerente também. Mais gordo, envelhecido, e ainda bonito. Outro pervertido, que tinha um membro enorme e grosso. Quase não comprava meus doces, mas me dava pedaços de queijo. Minas, o mais saboroso que já comi na vida. De parmesão também. Mas tinha um preço. Nada naquele mundo era gratuito. Tudo tinha um preço. Para ele eu pagava, mas não gostava muito. Mas adorava queijo. Era indelicado, meio bruto e sempre tentava me comer. Nunca dei. Para ele, não. Acho que por birra, antipatia, sei lá. Não me viu nem me reconheceria, acho.

Lembrei de outros. Se percorresse a rua inteira, as transversais, os becos, teria uma maldita história de ultraje para contar. Nenhuma em que eu não tivesse concordado ou desejado.

Minha avó era uma megera. Vingava em mim a morte prematura no filho. Da minha mãe, nenhuma lembrança, uma foto, um documento. Só um nome, o primeiro, proibido, sob pena de levar um sonoro tapa na cara. Me botou nas ruas aos oito, nove anos. Tinha que ajudar a pagar o aluguel e a comida. Era cruel. Só uma coisa de bom. Exigia que eu estudasse com a mesma severidade com que eu tinha que prestar contas da venda dos doces. Um centavo errado, uma surra. Aprendi cálculo matemático mais rápido que com as professoras. E a ser honesta. Esta mulher ressentida, má, destruída por uma obsessão, que quase me destruiu, ainda me desperta amor e ódio. Mas, aqui, por enquanto, ela não tem espaço. Acho, apenas que, no céu ou no inferno, onde estiver, não deverá estar muito satisfeita de me ver de volta, na porta da cabeça-de-porco onde moramos, pronta para subir.

E foder.

Minhas pernas fraquejaram ao começar a subir a velha escada de madeira, rangendo como antes. Meu Deus, tudo tão igual, tão sombrio... Segurei no corrimão gasto e ensebado, meio bambo como um enorme pênis que acabou de ejacular. Uma pontada de tesão e nojo revolveu minhas entranhas. O calor, um calor insuportável, e a mistura de cheiros aumentavam a sensação de abafamento. Alguém cozinhava feijão com louro. Outro fritava peixe, talvez sardinha. Ao fundo, a morrinha eterna da mistura de mofo, de sujidades acumuladas e de urina velha, vinda do único banheiro coletivo, como qualquer outro cortiço.

No corredor imenso, uma lâmpada fraca, impotente e solitária, cumpria o ingrato papel, não de iluminar, mas o de ocultar a sujeira, a tristeza, a miséria. Na porta de um dos

quartos, uma mulher de idade e semblante indefiníveis tomava conta de uma criança imunda, que brincava com uma boneca imunda, naquele chão imundo. Era minha vida se repetindo. Não queria ter visto aquilo, nem a porta do quarto onde morei.

Ou talvez quisesse.

Já no segundo andar, turvada pelas emoções daquelas lembranças e pelo tesão que me corroía as entranhas, vi duas mulheres conversando, cada uma à porta do seu quarto. Passei por elas com um boa-tarde quase simpático. Eram travestis. E a imagem de Luana, quase apagada na minha memória, surgiu viva. Quando minha avó sumia por uns dois ou três dias, era ela que tratava de mim,. Como uma boneca. Durante anos, até as ruas arrancarem minha inocência, pensei que ela fosse mulher. Foi a única fonte de ternura e carinho, parecida com a idéia de mãe que tive.

Assassinada pelo amante. Ciúmes.Tinha vinte e oito anos, como eu agora.

Percebi, não sem tristeza, que estava acorrentada àquele mundo miserável e decadente, que jamais conseguiria me livrar do que realmente eu era, uma porca imunda. Porque eu gostava de ser uma porca imunda. Porque se não fosse, jamais estaria ali e, muito menos batendo naquela porta.

Estava de cuecas, melado de suor. Me abraçou por trás. Fechei os olhos e me entreguei aos efeitos dos seus beijos e lambidas, e das suas mãos poderosas no meu corpo. Nunca desejei tanto ser comida, violada, rasgada, machucada, ultrajada, aviltada.

Como uma vagabunda dominada pelo cio, levantei a saia, afastei a calcinha, abri as pernas e pedi que ele metesse em mim daquele jeito mesmo, vestida, em pé, por trás, e com força, com muita força.

E ele meteu. E meu choro irrompeu incontrolável. Não por causa da penetração violenta, abrupta. Estava bem molhada, muito. A dor vinha da alma, por me submeter àquela degradação, àquela imundice, àquele homem, por quem eu não sentia nada, senão tesão, e que se enterrava em mim como se fosse me matar, àquela volta absurda ao passado que eu abominava.

Um choro de tristeza, é verdade, mas também de um prazer absurdamente libertador.

Cadela, tu adora uma pica, né, vagabunda?

Desagüei de vez.

É, desgraçado, adoro, como uma cadela, uma égua vagabunda, uma porca, ai meu Deus, uma porca, uma porca suja e imunda, uma porca nojenta, uma puta de zona, uma dessas mulheres nojentas de cortiços, e meus pensamentos mergulharam nos dedos do dono do depósito, no membro descomunal do chefe da queijaria, nos cantos e becos imundos onde me foderam, no carteiro que me mostrava o pau fininho, curto mas cabeçudo, que mais parecia um aleijão, nos bêbados que tentavam me tocar, nos não-bêbados, e quanto mais eu pensava mais amargas ficavam minhas lágrimas e mais insuportável o tesão. Mas havia uma lembrança que eu não queria ter naquele momento, a minha mais dolorosa saudade, e lembrei da piranha que me beijou à força, no escândalo que fiz, porque se ela fosse mais esperta tinha me seduzido, porque outras meninas já tinham me beijado, e eu tinha gostado, no rapaz da padaria que nunca me cantou, mas me olhava com o desespero dos cães diante do cio, e olhei para o colchão podre à minha frente, o lençol encardido, o travesseiro sebento, e aqueles eram os cheiros da minha vida, porque era num igual onde eu dormia, que cheirava ainda a mijo velho, à baba noturna acumulada durante anos, e ao admitir que amava aquele mundo miserável, aqueles cheiros repugnantes, aquela decadência, meus pensamentos foram abruptamente decepados pelo gozo mais dilacerante e doloroso da minha existência.

Com o resto de forças que me sobravam, me livrei dele e mergulhei de bruços na cama imunda, num transe lúcido. Ele veio, se meteu entre as minhas penas e me cobriu, como um porco à uma porca, e continuou me fodendo, mas eu parecia não estar no meu corpo e não sentia nada além do incômodo do peso dele. Gozou com violência e se largou na cama estreita, que mal dava para uma pessoa. Comecei a voltar quando ele passou o braço por cima de mim para pegar um cigarro. Depois, a garrafa de cachaça, que bebeu pelo gargalo, me oferecendo em seguida.

A bebida desceu como um ácido e me fez tossir. Isso é coisa pra homem, mulher. E tomei outro trago maior que o primeiro, em desafio, e acendi um cigarro dos dele, vagabundos, porque os meus estavam na minha bolsa, que eu não queria pegar e nem sabia onde estava, e ele quis tirar a minha roupa e eu ajudei, já sentindo os primeiros efeitos da bebida. E nua, de frente para ele, me rocei no corpo quente, melado, salgado, azedo, porque era isso que incendiava minha libido. Beijos despudorados, com gosto de cachaça e de nicotina, de degradação, de decadência. E ele meteu a mão na minha buceta, que ainda vazava os restos de gozo, e peguei no pau melento. e as imagens do meu passado brotando da minha memória sem controle, ele me puxou pelos cabelos, queria minha boca no seu pênis. E eu chupei até que a dureza dele quase arrebentasse minhas bochechas, e ele me deu mais cachaça, e veio por cima, e me fodeu como um animal, e eu gozei escandalosamente, porque era assim que se fodia nos cortiços, com o mais descarado despudor.

Acordar foi terrível.

Com o rosto quase encostado na parede, abafada, e espremida pelo corpo dele, que não queria acordar.

Consegui me desvencilhar do braço e da perna que me envolviam e me ergui. Ele balbuciou qualquer coisa e se espalhou na cama. O calor sufocante acentuava os cheiros que empestavam o cubículo. Mortalmente arrependida, envergonhada, quase entrei em desespero. Coisa que nunca me permiti. Me controlei. Por mais nojenta e inconcebível que fosse aquela situação, tinha que admitir: há anos que eu não sentia um tesão tão violento e nem gozos com tanta intensidade. Ele não era nenhum bandido, trabalhava num posto de gasolina, onde nos conhecemos e eu dei bola mesmo, porque já estava atormentada por desejos absurdos, e aceitei o convite para tomar uma cerveja. Meu Deus, “uma” cerveja, num botequim vagabundo. E nada teria acontecido entre nós, talvez, se a mais atroz das coincidências não tivesse acontecido.

Moro no Centro. Em que rua?, perguntei, morta de curiosidade. Que número? Por quê, você conhece? Esforçando-me para não me denunciar, respondi: Lá tem ou tinha uma queijaria muito boa. Meu pai comprava queijo lá. O melhor queijo do mundo, menti. Não sei, nunca comi, é muito caro. Moro em cima da queijaria. Quase desfaleci.

A decisão de foder com ele veio na hora, carimbada pelo inelutável. Fomos para um motel. Gostei. Fomos outras vezes. Até que a idéia de conhecer o quarto dele, de foder com ele lá, serviu de desculpa para voltar ao passado que eu tanto queria esquecer mas, no fundo, desejava atormentadamente reencontrar.

E agora eu estava ali, no epicentro do meu passado, refém de lembranças que me emocionavam e me excitavam, extenuada e meio perdida. Peguei a garrafa de cachaça e bebi um gole. Nunca precisei tanto. Decidi ir embora. Se ele acordasse talvez quisesse me comer de novo, e eu já não estava mais a fim. Comecei a me vestir, olhando distraída para a pobreza dele. Nem armário tinha. Umas poucas roupas pendiam em cabides pendurados num arame estendido de uma parede à outra. A mesa era feita de tábuas certamente catadas em alguma obra. No chão, uma mala entreaberta, com outras roupas em cima, as botinas de trabalho, um chinelos gastos, um par de tênis velho, duas garrafas de cachaça ainda cheias, dois baldes, um com roupa de molho e outro vazio, uma saboneteira de plástico, pasta de dentes e uma escova num copo. Na parede, um pequeno espelho. Não tive coragem de me olhar.

Saí. O corredor me pareceu um oásis. Tinha mais ar, fedia menos ou eu já me acostumara aos cheiros. E vazio. Desci os dois lances de escada apressadamente, sem olhar para nada. Começava a escurecer. Louca de sede, parei no bar da esquina, bebi uma garrafa de água mineral e, ao pedir outra para beber no táxi, alguém tocou no meu ombro.

É você, não é? Diz que é, pelo amor de Deus...

(Continua...)

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Comentários

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Sabe que gostei de dois contos seus e estava virando seu fã, mas vc continua com um problema, é meio enrolado; tem q dar mais dinâmica para seus contos. Outro detalhes, esse mais grave que descobri agora, sua personagem é repetitiva, parece a bailarina, mas em outra situação. São todas mulheres angustiadas que tentam a todo custo expurgar uma culpa desconhecida, mas não sabe como. O conto é bom, mas vc tem que diversificar mais seus personagens.

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E então, já postou a continuação?

Em caso positivo me envie o link tá?

treinadorsex@yahoo.com.br

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Maravilhosamente pesado, como um trecho numa versão feminina de uma obra de Jean Genet... amei!!! Continua, tá? bjks

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A todos, agradeço também a força e fico feliz por terem gostado do texto.

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Não, Allie, não deixei. Na verdade, tenho vários textos para publicar. A maioria semi-acabados. Tá faltando é tempo. Obrigada pela força.

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Aguardando pela continuação...10!

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Real, pesado, excitante e de qualidade. Meus parabéns!!!!

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Nussa!!!

demais amei, me senti no cortiço mesmo, só de ler...

parabens conto deliciosamente insano, pois foi ao extremo do nojo para chegar ao extremo do prazer!

foi ótimo ler isto aqui!

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Excelente!! Pesado, denso, e sempre excitante.

Que bom ler mais coisas suas Dödòi! Conheci seus textos no site há pouco tempo e estava até apreensivo com o tempo desde o seu último conto, imaginei que você tivesse parado de escrever. Felizmente não parou e está cada vez melhor! Beijão!

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Beleza de texto. dei nota dez.

Espero que não demore a postar a continuação

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