Dezembro sempre foi meu mês favorito. O calor ficava mais intenso, as ruas mais cheias, e parecia que todo mundo andava um pouco mais devagar. Eu tinha dezoito anos e ainda acordava todos os dias no mesmo quarto em que cresci, ouvindo os sons familiares da cidade começando a se mexer. Nada parecia diferente, mas eu sabia que estava tudo prestes a mudar.
Cresci em uma cidade pequena no sul da Bahia, perto de Porto Seguro. Aqui, todo mundo se conhece. Eu gosto disso. Gosto de andar pela rua e encontrar pessoas que me viram crescer, de sentir que pertenço a esse lugar. Meus pais, a Flor e o Theo, são artistas e sempre viveram bem aqui. Nossa casa sempre foi cheia de gente, de conversas longas, de música e de histórias. Desde pequeno, convivi com pessoas diferentes, e a diferença nunca foi algo que me assustou.
Hoje já é 10 de dezembro, uma segunda-feira, o que significa que o tempo está passando mais rápido do que o comum — ou talvez a minha cabeça esteja em muitos lugares ao mesmo tempo. Acordei cedo, como sempre um pouco antes do despertador tocar, para ir à escola pela última semana da minha vida. Ainda deitado, fiquei alguns segundos olhando para o teto, tentando entender em que momento tudo começou a acelerar. Logo senti o cheiro do café que meu pai sempre prepara, forte e doce ao mesmo tempo, se espalhando pela casa.
Levantei devagar, fui ao banheiro, joguei uma água no rosto, tirei o short e a cueca que uso como pijama e me olhei no espelho por mais tempo do que o normal. Meu nome é Leonardo, mas quase ninguém me chama assim. Sempre fui o Leo. Tenho um metro e sessenta e cinco — nunca gostei muito da minha altura, mas também nunca deixei que isso fosse um problema maior do que realmente é. Meu corpo é comum, sem nada que chamasse muita atenção, a não ser pelas pintas espalhadas pelo peito e pelas costas. Sou branco, mas o sol do litoral me deixa com a pele sempre queimada. Meu cabelo é castanho claro, quase mel quando a luz bate, e meus olhos são castanhos escuros.
Entrei no chuveiro e deixei a água cair fria de propósito. O calor daquela manhã estava pesado demais, grudado na pele, e eu precisava afastar a sensação de que tudo estava passando rápido demais. A água gelada descia pelas costas, pelos ombros, e eu fechei os olhos, respirando fundo, tentando organizar a cabeça. Não funcionou.
A imagem do sábado voltou inteira. A fogueira acesa na areia, a música baixa misturada com o som do mar. Ele surgindo no meio da roda como se sempre tivesse estado ali. O cabelo loiro, curto, encaracolado, a altura que me fazia levantar o queixo pra olhar. Disse que tinha vinte e três anos, que estava ali comemorando a formatura. Turista. A palavra ainda parecia ecoar junto com o sorriso fácil que ele tinha.
Depois do luau, ficamos mais um pouco na praia. Sentados perto da água, os corpos próximos demais pra ser só conversa. O beijo veio sem aviso, quente, firme, a boca dele se movendo com segurança contra a minha. Lembrei das mãos grandes, do jeito como ele me puxou mais pra perto, da diferença de tamanho entre a gente. Meu corpo respondeu antes da minha cabeça.
No banho, senti o sangue descer rápido demais. A água fria já não ajudava. A respiração ficou curta, irregular. Levei a mão até meu pau, sentindo ele já duro sob os dedos. Apertei, deslizei a mão devagar no começo, depois com mais pressa, imaginando o peso do corpo dele contra o meu, o jeito como ele me segurava pela cintura. Um gemido baixo escapou sem que eu percebesse.
O movimento ficou mais rápido, a água batendo no azulejo, o coração acelerado. Minha outra mão se apoiou na parede, o corpo todo tenso. Pensei na boca dele, no gosto, no calor. O prazer foi crescendo, subindo, até ficar impossível segurar. Gozei com força, a porra escorrendo pela mão e sendo levado pela água quase imediatamente. Fiquei alguns segundos parado, ofegante, sentindo o corpo amolecer aos poucos.
Desliguei o chuveiro ainda tentando recuperar o fôlego. O espelho estava todo embaçado. Me sequei em silêncio, rindo sobre a situação e respirei fundo, como se aquilo fosse suficiente pra colocar tudo de volta no lugar antes de sair do banheiro.
Escovei os dentes ainda meio sonolento, pensando em coisas aleatórias, como se isso pudesse atrasar o dia. Voltei pro quarto, me vesti sem muita pressa e peguei a mochila, mesmo sabendo que quase não teria aula de verdade.
Quando desci as escadas, encontrei minha mãe e meu pai na cozinha, terminando de colocar a mesa. A luz da manhã entrava pela janela, iluminando tudo de um jeito simples e confortável.
— Bom dia, Theo e Flor — falei, em tom de brincadeira.
Meu pai riu.
— Bom dia, Leonardo.
— Última semana, hein? — minha mãe comentou.
— Última semana — confirmei. — Acho que tô ficando maluco.
Eles se arrumavam para sair, falando de coisas pequenas, do calor, do fim de semana. Nada parecia diferente, e talvez fosse isso que deixava tudo mais estranho.
A campainha tocou.
— Chegaram — falei, já sorrindo.
Dois rostos conhecidos me esperavam do outro lado da porta. Marta era morena, bronzeada de sol, com os cabelos castanhos e enrolados sempre meio indomáveis. Fernanda era o oposto: pálida, como se o sol nunca alcançasse direito, e naquela semana estava com o cabelo azul — mais uma cor depois de algum filme que tinha assistido. Elas eram minhas melhores amigas. Crescemos juntos, quase como irmãos. Marta sempre intensa, decidida. Fernanda mais quieta, sempre observando tudo como se estivesse montando uma cena.
Fomos andando até a escola, que ficava a poucos quarteirões dali.
— Então — Fernanda disse, com aquele sorriso debochado — o turista do luau…
— Não começa — respondi.
— Eu achei ótimo — Marta comentou. — Finalmente.
— Vocês também podiam ter arranjado alguém — falei, rindo.
Chegamos à escola ainda rindo, como se nada estivesse prestes a acabar.
Na escola, eu sempre fui tímido. Nunca o mais falante, nem o mais popular, mas nunca sozinho. As pessoas ficavam. Talvez porque eu ouvisse mais do que falasse. No intervalo, estávamos sentados quando uma garota com quem eu tinha ficado nas férias de julho passou. Fernanda me cutucou na hora, rindo. Aquilo serviu de gancho para uma conversa silenciosa que eu já tinha comigo mesmo há anos.
Eu me descobri bissexual aos dezesseis anos, de forma meio simples. Nunca foi um choque, nem algo que precisasse de grandes explicações. Eu sempre senti desejo de forma natural, sem medo, sem culpa. Talvez por timidez, nunca cheguei a ficar com ninguém até aquela idade. Mas isso nunca me incomodou de verdade. Eu sabia que tudo tinha seu tempo.
O sinal tocou. Tivemos uma daquelas palestras sobre futuro, escolhas, vida adulta, como se todo mundo ali estivesse pronto para decidir alguma coisa definitiva. Eu ouvi com atenção, mas tudo parecia meio distante, como se falassem de uma vida que ainda não tinha começado de verdade.
Quando a aula acabou, alguns amigos chamaram para ir à praia. Era segunda-feira, o dia estava quente, e normalmente eu teria ido sem pensar duas vezes. Mas inventei uma desculpa qualquer, disse que precisava ajudar meu pai no ensaio mais tarde. Não era verdade. Eu só não estava com vontade de dividir aquele fim de tarde com ninguém.
Voltei pra casa sozinho, caminhando devagar pelas ruas que eu conhecia de cor. O almoço estava na geladeira, como quase sempre. Meu pai tinha cozinhado no domingo para a semana toda. Esquentei a comida no micro-ondas e comi sem pressa, sentado à mesa, ouvindo o silêncio da casa vazia. Aquilo tinha um conforto estranho.
Depois, subi para o quarto. Fechei a porta e liguei o ar-condicionado — o calor daquele dia estava impossível — e me deitei no tapete do chão, com o notebook apoiado na barriga. Passei boa parte da tarde navegando sem muito foco. Tentei, sem sucesso, encontrar alguma coisa sobre o turista do sábado. Nada. Nenhuma pista. Em algum momento, acabei abrindo abas sobre faculdades, notas de corte, possibilidades. Arquitetura sempre tinha me chamado atenção, desde as viagens que fazia com meus pais, observando prédios, cidades, espaços. Era uma ideia antiga, silenciosa, mas constante.
Quando fechei o notebook, percebi que já eram quase cinco da tarde. Ouvi vozes na casa, meus pais tinham chegado. Tomei um banho rápido — só então percebi que ainda não tinha tomado desde que voltei da escola — e desci para o café. Depois de comer, sentamos no sofá, conversamos sobre o dia deles. Meu pai contou uma situação engraçada que tinha acontecido no ensaio, minha mãe ria enquanto comentava. Eu escutava, participava, sentindo aquela normalidade confortável que sempre existiu entre nós.
Mais tarde, fui para o quarto. Deitei na cama ainda com o corpo quente do dia e fiquei olhando para o teto. Pensei no último ano do colégio, em como tudo tinha passado rápido demais. Dezembro sempre trazia essa sensação estranha de fim e começo ao mesmo tempo. Todo mundo já tinha feito o ENEM, os vestibulares. As aulas estavam acabando, e a escola já não parecia um lugar fixo, só uma passagem.
Adormeci com essa sensação de estar entre dois tempos.
As semanas seguintes passaram rápidas. Natal, ano-novo, encontros repetidos, despedidas que ainda não pareciam despedidas de verdade. Até que janeiro chegou trazendo respostas.
A Marta passou em Direito em Madri. Sempre foi o sonho dela estudar fora do país, e quando descobriu, os olhos brilhavam de um jeito diferente. Ela ia se mudar uma semana antes de mim. A Fernanda decidiu cursar cinema em Salvador, perto da família, mais perto de casa. Quando chegou a minha vez, li o resultado duas vezes para ter certeza. Arquitetura. São Paulo.
No dia 15 de janeiro, nós três passamos o dia inteiro juntos na minha casa, esperando os resultados saírem oficialmente. O nervosismo deixava o tempo lento, como se o relógio tivesse esquecido de andar. Quando tudo se confirmou, teve choro, risadas, abraços demorados demais para quem fingia estar preparado. Era felicidade misturada com medo, empolgação misturada com despedida.
Naquela noite, depois que elas foram embora, fiquei sozinho no quarto, olhando para a mala ainda vazia encostada na parede. Pela janela, dava pra ouvir a cidade do jeito de sempre. Os mesmos sons, o mesmo ritmo, a mesma vida. Eu amava aquele lugar, aquela rotina, aquelas pessoas.
Eu não estava indo embora porque não cabia ali.
Eu estava indo porque queria crescer e meus pais sempre incentivaram muito isso.
E, pela primeira vez, isso me pareceu suficiente.