Era uma tarde tranquila, daquelas em que o tempo parece andar mais devagar, enquanto eu conduzia minha carreta por uma estrada de terra vazia. A poeira se levantava atrás de mim a cada metro, formando um rastro espesso que o vento tratava de espalhar. O chão irregular fazia o volante vibrar nas mãos, e o som grave do motor se misturava ao rangido da carroceria, como se a própria estrada reclamasse da passagem. Ao redor, só o mato seco, cercas tortas e um silêncio quebrado de vez em quando pelo canto distante de algum inseto. Não havia pressa, nem companhia, apenas eu, a carreta e aquele caminho interminável.
Nunca me considerei um homem tão culto quanto muitos comentam. Pelo contrário, sempre me vi como alguém de sorte, por ter ao menos o mínimo: algum discernimento, algumas experiências e a consciência de que saber pouco já é, por si só, um começo, essa historia se baseia numa experiencia de Bestiária.
Na caçamba da carreta eu levava todo o material necessário para o serviço: dois rolos grandes de arame farpado galvanizado, uns trinta postes de eucalipto tratados, uma marreta de oito quilos, enxada de corte, alicate de tensão, grampos, esticadores, luvas de raspa já bem gastas e uma caixa com pregos e abraçadeiras de reposição tudo bem amarrado com corda de sisal para não balançar na estrada de terra.
Parei na entrada da propriedade para consertar uma boa extensão de cerca que estava completamente comprometida: fios rompidos, postes inclinados, trechos inteiros caídos, o mato avançando como se ninguém tivesse passado ali há tempos. O combinado era que, ao terminar o serviço, eu receberia uma compensação justa falaram em um valor em dinheiro, mas ficou meio vago, sem especificar exatamente quanto, só que seria “bem pago pelo esforço” e que valeria a pena. O que ficou mais claro foi o convite: assim que eu terminasse, ou mesmo antes se precisasse de uma pausa, era para entrar na casa principal e tomar um café reforçado, daqueles com pão de queijo quente, bolo caseiro e prosa boa, “na hora que o senhor quiser, quanto antes melhor”.
Comecei o trabalho sozinho, como sempre, descarregando os postes um a um, cravando-os no solo seco com golpes firmes da marreta, esticando metro a metro o arame farpado novo, tensionando com cuidado para que ficasse reto e firme, cortando as sobras e fixando tudo muito bem. O suor escorria abundante, as mãos foram se marcando com o esforço, mas o serviço avançava bem: cerca nova, sólida, capaz de segurar o gado por anos. Quando terminei os duzentos e poucos metros, parei um instante, respirei fundo, limpei o suor da testa com as costas do braço e olhei para a casa ao longe, pensando que agora era hora de aceitar aquele café prometido.
Foi quando eu ouvi um galopar de longe, um trote pesado e ritmado que vinha levantando poeira pela estrada de terra batida. Era um vaqueiro da propriedade, montado num cavalo baio forte, arreio bem ajustado, chapéu de palha aba larga. Ele refreou o animal perto de mim, tirou o chapéu num cumprimento respeitoso e falou:
" Boa tarde, seu moço. A patroa mandô eu vim ver como tá indo o serviço da cerca. O café já tá na mesa, coado na hora, com pão de queijo quentinho saindo do forno e bolo de fubá ainda morno. Se o senhor quiser largar a ferramenta agora, é só ir pra casa sede que ela tá esperando. "
Eu endireitei o corpo, respirei fundo, dei uma olhada rápida pros duzentos e poucos metros de cerca já esticada, farpa brilhando no sol, e respondi com calma:
" Boa tarde, senhor. Agradeço penhorado o recado e o gentil convite. O serviço está correndo dentro do esperado, falta apenas o último lance de arame farpado para tensionar, grampear e deixar tudo no ponto. Em no máximo meia hora eu concluo o trecho final, fecho a ponta com esticador e dou o acabamento devido. Assim que terminar, dirijo-me imediatamente à casa sede para aceitar o café e tratar do acerto combinado, que, pelo visto, será justo e direito, como homem de roça combina com outro.
O vaqueiro sorriu de canto, ajeitou o chapéu de volta na cabeça e disse:
" Beleza então, seu dotô. Meia hora é batata. Vou avisar pra ela que o senhor já tá vindo. Pode deixar que o pagamento sai certo, na hora certa."
Acenou com a cabeça, virou o cavalo e partiu no mesmo trote firme, sumindo na curva da estrada enquanto eu voltava pro alicate, pro rolo de arame farpado e pro último pedaço de cerca que ainda esperava o meu braço.
Não demorou meia hora talvez menos. Terminei o tensionamento, grampeei as pontas, testei a firmeza com a mão enluvada e dei uma olhada geral: tudo reto, tudo sólido. Satisfeito, comecei a guardar as ferramentas com calma, sem pressa. Recolhi o alicate, a marreta, a enxada, os grampos sobrados e o resto do material espalhado pelo chão. Enrolei o que sobrou do arame farpado, amarrei tudo de novo com a corda de sisal e carreguei peça por peça de volta pra caçamba da carreta. O sol já baixava no horizonte, pintando o céu de laranja, e o ar ficava mais fresco, era minha primeira vez servindo aquele povo da casa da fazenda.
Guardei a última ferramenta, fechei a caçamba, limpei as mãos na calça e olhei mais uma vez pra cerca nova brilhando ali, pronta pro que viesse. Respirei fundo, sentei no banco do motorista e liguei o motor. A carreta roncou de volta à vida, e eu segui pela estrada de terra, deixando pra trás a poeira e a propriedade, com a sensação de um serviço bem feito e um dia que valera a pena, a casa deles era linda com uma grande varanda , curral e estábulos.
Dirigi a carreta bem devagar pela estradinha até a casa sede, parei perto da escada da varanda ampla, desci com as botas ainda cheias de poeira e subi os degraus. A dona da fazenda já me esperava ali, sorrindo, uma mulher de uns quarenta anos linda de morrer, corpo escultural, curvas generosas apertadas na calça jeans justa e na blusa fina que marcava os seios fartos, cabelos castanhos presos num rabo de cavalo, pele morena de sol e olhos verdes cheios de malícia. Apertou minha mão com força, se apresentou e me convidou pra entrar na cozinha grande onde a mesa já estava posta com café fumegante coado na hora, pão de queijo quentinho, bolo de fubá morno e manteiga caseira. Sentamos um de frente pro outro, conversamos sobre a cerca que ficou perfeita, sobre o tempo seco e o gado, e ela não parava de elogiar o serviço bem feito. Quando terminei o segundo copo de café, ela se levantou, contornou a mesa, chegou bem perto e disse baixinho com voz rouca que o pagamento seria algo especial, direto da fazenda, algo que dinheiro não compra. Apontou pela janela pro curral e mostrou uma égua alazã linda, nova, pelagem brilhante, porte elegante, já domada e pronta pra trabalho ou passeio. “Quero que o senhor fique com ela, é presente meu pelo capricho na cerca”, falou, mão no meu braço, corpo roçando de leve. Eu ri, agradeci de coração, mas expliquei que não cuido de animal, sou homem de estrada e carreta, não tenho onde criar cavalo. Ela sorriu safada, chegou ainda mais perto e respondeu que não tinha problema, a égua ficava ali na fazenda mesmo, mas no meu nome, e sempre que eu voltasse pra consertar mais cerca ou só pra tomar café, a égua estaria me esperando, e ela também, com os olhos prometendo muito mais que prosa. Combinamos assim, apertei a mão dela com cumplicidade, ela me deu um beijo leve no rosto que deixou perfume de mulher do campo, me acompanhou até a varanda, acenou enquanto eu ligava o motor e saía levantando poeira, agora dono de uma égua alazã bonita e com a certeza de que ia voltar muitas vezes pra ver como o bicho estava e, principalmente, como a dona estava.