⚠️ Aviso violência contra LGBTQ+, um desabafo, porque algumas histórias, DEVEM ser contadas.
A vida seguia no farol, mas nunca imaginei que estaria falando de crimes cometidos contra outra… Enfim, as pessoas são crueis e eram ainda mais naquela época, uma época que muitos querem de voltar, os melhores, sabem que isso seria horrível, mas acredito, que muitos querem exatamente esse horror de volta, a volta do medo de se mostrar na rua.
Estávamos na praça conversando, estava eu, Fábio e César, sentados conversando, dividindo uma tubaína, “Já sabe qual faculdade vai fazer?”, o César perguntava para mim, todos apostaram muito em mim, até meu namorado, melhores notas da escola, não impressionava meus pais, mas impressionava o restante.
Fábio estava me olhando com olhos curiosos, ele também queria saber, sempre falávamos disso, aguentar meus pais até depois da faculdade, me formar e aí seríamos livres… “Estudo de biologia marinha”, os dois reagiram imediatamente, felizes e demonstrando o quanto achavam que eu ia ganhar dinheiro com a exploração da Petrobrás.
Estávamos felizes e conversando, quando colou outro grupo de meninos, desses eu conhecia Vicente e Edson, bullies, os únicos que eu nunca consegui me livrar, sempre me perseguindo quando conseguiam, meu pai, dizia, “Reage”, “Bate de volta”, a verdade é que apesar do porte físico, eu nunca consegui ser o homem que ele queria...
“E aí Fabíola e Daniela Perez…”. Era o jeito deles chamarem a gente de gays, sempre tiveram essa piada, sempre buscando uma resposta, eu preferia ignorar, mesmo porquê fisicamente não viriam para cima, olho para os meninos e comento que é hora de irmos… “Danizinha viu o que fizeram com a Van?”, eu olho para ele, Van era uma travesti local minha cabeleireira.
Ele percebe que estou olhando para ele, meus lábios tremendo de leve, geralmente, quando começa assim a notícia é, mais uma amiga que caiu, mais uma trans, travesti, gay, que foi morta por idiotas, imbecis e preconceituosos, que nunca vão nos aceitar completamente.
Eu percebo que ele e Edson, pararam para reparar na minha reação antes de falar, “O que aconteceu com ela Vicente fala logo.”, eu falei de uma vez, “Ela está bem menina, mas falaram que uns policiais pararam para revistar ela e enfiaram o cacetete no rabo só para ver ela gritar.”, eu coloquei a mão na boca chocada, sentindo o medo crescendo dentro de mim quando escuto o vidro se quebrando.
Era Fábio, quem quebrou a garrafa de tubaína batendo com ela na calçada. “Que tal se eu enfiar isso aqui para ver você gritar também?”, os dois olham sérios para ele, eu estou chocada, mal consigo se mover, mas o Edson é meio burro ele não entendeu o perigo que se encontra até ali. “Mano, relaxa a vagabunda, deve até ter gostado de ter o cu estourado.”
Fábio parte para cima dele, mas quando Edson se esquiva, não viu a outra mão vindo na sua cara com força, o soco pegou em cheio e jogou ele para trás, caindo no chão, o Vicente corre até ele olhando para nós… “Vai ter troco, Fabíola, vai ter troco, Daniela, vocês vão ver só…”, saíram de perto…
Meus dois amigos seguram minha mão eu estou tremendo, eu olho para o Fábio, ele é quem percebe que algo quebrou sério por dentro, “César me ajuda a levar Dani para sua casa.”, César para por alguns segundos, ainda chocado com a ação do Fábio de ameaçar os dois, mas ao me ver ele entende que é sério e prioridades vem a mente, me levando com eles.
Na casa do césar eu já estava na minha segunda água com açúcar, o César falava de pegar o Edson uma hora que eles tivessem sozinhos e ensinar porque não podia me deixar nesse estado, como eu disse, eu e meus amigos, não falávamos de sexualidade, mas no fundo todo mundo sabia, intuía e etc.
Eu segurei a mão do Fábio por reflexo, Fábio sorrio olhando para mim, “Tudo bem Dan estamos aqui…”, eu olhei para ele com uma cara de medo, histórias assim, sempre serviram para uma coisa acima de tudo, desincentivar outra Van no nosso meio, desincentivar que você diga que gosta de homem em voz alta, que você ouse beijar seu namorado em público.
Era para isso que isso servia e Fábio sabia, quando segurou minhas mãos geladas de medo, ele tinha esse pleno conhecimento, de que eu estava com medo e pior de tudo, eu tinha TODOS OS MOTIVOS PARA ESTAR… “Eu preciso vê-la Fábio, eu preciso ir vê-la.”, ele olha para mim e respira fundo.
“Vamos eu te levo.”...
Saímos de lá, Van era minha cabeleireira, em primeiro lugar tinha isso, sem dúvida, definitivamente, mas era uma das poucas pessoas que me entendiam desde criança, ela era gentil comigo e me dava suporte, nós éramos cúmplices… Lembro que uma vez, o sobrinho dela de minha idade veio falar comigo.
“Não fica dando confiança para a Van.”, “Porquê?”, “Foi minha mãe que mandou te avisar, porque ela começou assim, começou a andar com um travesti lá de Sto Amaro e aí também virou, só estou avisando.”, o preconceito toma formas, incríveis… A verdade é que quem melhor para entender o que passa uma criança gay, do que alguém que sabe os sofrimentos que eu estava passando.
Chegamos na casa dela e toquei a campainha, tive que esperar alguns minutos antes dela atender… “Oi Dani, Fábio… O que.. Entrem.”, ela estava abalada, visivelmente machucada, o que só fez meu coração doer mais ainda. Uma vez dentro de casa nos serviu de café, bolachas, ouvindo o que tínhamos a dizer.
“Vocês dois não deveriam ter se metido nisso, já pensou se eles vêm atrás de você em bando Fábio?”, ela olha para mim e segura minha mão, continuando falando com o Fábio que tenta argumentar, “Fábio, sabe quantos amigos eu já perdi assim, quantas amigas eu já vi passarem por coisas horríveis por quererem fazer o justo?”, ele finalmente entende e fica quieto.
“Vocês dois são duas jóias e precisam lembrar disso, vocẽs não precisam baixar no nível deles, porque o lugar de vocẽs não é nem aqui, vocês são de uma capital brilhante, Rio de Janeiro, ou São Paulo, onde vocẽs serão poderosos e respeitados e foda-se esse bando de caipira, inclusivo os caipiras fardados que se acham homem porque estão armados.
Ficamos lá cuidando dela, depois Fábio disse que tinha um compromisso e saiu, foi quando eu fiquei sozinho com Van, aquele assunto de querer ser uma garota, ainda estava na minha cabeça, como algo que eu sentia no fundo da mente, algo escondido, mas que já estava também no meu peito, comecei a olhar em volta.
Van morava em uma casa com três cômodos, a sala foi transformada no seu salão, sobrando quarto e cozinha, eu olho para o salão e sinto a pergunta sair antes mesmo de entendê-la, “Van, você me ensinaria a me maquiar?”, ela olha para mim muito triste, “Dani você não pode…”, eu olho confuso.
“Porque não Van? É só maquiagem.”, ela faz que não com a cabeça, “Não é só maquiagem moleque, você que não vê o que eu vejo.”, eu fico olhando para ela, imaginando se têm algo haver com as coisas que ando ouvindo, pensando, sentindo, concluo que não, mas dou risada, me levantando. “Van por favor… Eu prometo que vai ser só uma vez.”
Van me olhava com um medo genuíno quando falou, “Dani eles vão te machucar, se vocẽ fizer essa escolha, eles vão te machucar e eu e o Fábio não vamos poder estar lá o tempo todo.”, “Mas você…”, eu tento argumentar sobre ela mesma 24/7 montada, quando ela argumenta o que realmente a deixa aterrorizada comigo fazer o mesmo.
“Dani eu sei me defender, eu já esmurrei muita cara de bullie, eu já quebrei cabo de vassoura nas costelas de homem folgado, mas você…”, ela se aproxima e segura meu queixo me fazendo olhar para ela, os olhos negros marejados enquanto fixam nos meus, “Você é uma pérola, uma jóia, como eu falei um achado, eles vão te machucar minha menina e eu não quero isso para você.”
Ela me desarma inteira, é a primeira vez que sou chamada de minha menina por ela, isso realmente encheu meu coração de calor e fogo, nem eu imaginava por quê, ou sei lá, porquê, eu… Queria ser uma garota, essa era a conclusão que eu chegava, mas ela estava certa, eu estava pronta, porque eu teria que encarar muita violência para isso.
Eu insisti mais um pouco com ela, mas já sem convicção, ela sorriu e bagunçou meus cabelos, “Quando eu descobrir que você está com um diploma indo morar em um lugar melhor eu te passo um vídeo tutorial, que tal?”, eu olho para ela, por um segundo e sorri, “Promessa?”, ela sorri e responde, “Promessa.”...
… … … …
Depois disso Van desapareceu… A família dela, só respondia que ela se mudou, jamais diziam mais nada, ninguém sabia nada, foi como se Van tivesse desaparecido do universo, sem deixar traço, rapidamente a casa dela foi desocupada e no lugar da minha cabeleireira, tínhamos um bar cheio de homens nojentos, falando coisas nojentas… Como se não tivessem bares suficientes nessa cidade.
Eu fiquei bem triste, mas… O pior, foi um dia ouvindo as conversas da minha mãe com a irmã de Van e quatro letras foram citadas… Ali eu sabia que nunca mais veria minha amiga, ela lutou contra bullies, sobreviveu a violências que eu mesma só podia imaginar, mas… Mas o vírus, era uma sentença de morte, ele jamais perdoava.
Só eu e Fábio parecemos realmente ficar de luto pela nossa amiga…
Um tempo depois chegou no meu correio, para mim, Van me mandou uma caixa, de entrega direta, para garantir que ninguém receberia exceto eu, isso poderia ter me causado alguns problemas, mas ela sabia que eu ia dar conta… Vídeos, VHS de filmes… E ali no meio… Meu tutorial de maquiagem…
Descanse em Paz, Van… Você e todos os que perdemos para o vírus e para a maldade e crueldade das pessoas…
======== ……FIM…… ========
É isso gente, um capítulo bem triste, me desculpem, estava bem emocional quando escrevi, foi bem difícil não chorar a cada linha, mas têm histórias que precisam ser contadas, sinto muito para todos que isso possa ter servido de gatilho, mas que sirva de lembrete para todes, vamos continuar lutando, não aceitar nem um regresso.
