Capítulo XXX — “Rafa, meu equilíbrio”...
Caio narrando...
Quando saí da delegacia naquela manhã cinzenta, alguns dias depois, senti como se o mundo tivesse ficado menor. O ar parecia pesado demais, as pessoas apressadas demais, o tempo lento demais. A cada passo, o som do portão se fechando atrás de mim ecoava dentro da cabeça, como um lembrete cruel de que ele ainda estava lá dentro, sozinho, confinado, com o olhar triste que me pedia paciência, fé e força. Mas o que ele não sabia é que a minha fé também estava presa com ele.
As ruas pareciam se mover devagar, e a vida ao redor continuava, indiferente à tragédia que nos engolira. O vento frio da manhã cortava o rosto e me fazia apertar os punhos dentro dos bolsos, tentando conter a vontade de chorar de novo. Eu caminhava sem destino, só com o som distante da cidade e o barulho dos meus passos como companhia. Tudo em mim parecia exausto.
Queria voltar no tempo. Queria que nada daquilo tivesse acontecido. Que Rafael ainda estivesse em casa, preparando o café com aquele sorriso bobo, com o cabelo bagunçado e a camiseta larga. Queria o cheiro dele, a voz, o toque, a tranquilidade. Mas, no lugar disso, eu tinha o vazio, um vazio que doía e queimava, e que nenhum abraço no mundo seria capaz de preencher.
Na mochila, o peso leve do caderno azul, que eu sempre carregava, parecia representar o mundo inteiro dentro. Me lembro como se fosse hoje, o dia no hospital quando Dona Sloisa me entregou o caderno e me disse:
— Ele começou a escrever nesse caderno ainda menino. Escrevia poesias, pensamentos… tudo o que não conseguia dizer em voz alta, ele colocava aí dentro. Isso é a mais pura essência do Rafael.
O caderno era antigo, as bordas gastas, o tecido azul desbotado pelo tempo. Abri devagar, e o cheiro de papel envelhecido me invadiu como uma lembrança viva. As letras dele, firmes, às vezes tremidas, pareciam pulsar, como se tivessem alma. Ali, em cada verso, em cada palavra rabiscada às pressas, eu via o Rafael que poucos conheciam. O Rafael sensível, intenso, que sentia o mundo com uma profundidade quase dolorida.
Havia poemas sobre o mar, sobre liberdade, sobre solidão. Versos sobre amor, sobre medo, sobre reencontros e despedidas. E entre as linhas, eu enxergava pedaços dele, a essência mais pura e completa de quem ele era. Aquele caderno era mais do que papel e tinta; era a alma de Rafael aberta diante de mim, nua e verdadeira, como se ele ainda estivesse ali, me falando através das palavras.
Fui até a praia. O vento soprava com força, fazendo o mar se agitar em ondas altas, e o céu parecia uma mistura de chumbo e melancolia. Sentei na areia fria e deixei o caderno descansar sobre o colo. O som das ondas era quase hipnótico, e por um momento, fechei os olhos e imaginei ele ao meu lado, com os pés descalços, rindo daquele jeito leve que sempre fazia o tempo parar.
Abri uma das páginas marcadas, e no topo havia um poema com o título em letras pequenas:
“Liberdade”
“Liberdade não é ausência de grades. É saber que o amor atravessa muros, oceanos e distâncias. Que o corpo pode ser preso, mas o coração é infinito. E que amar, apesar de tudo, é o maior ato de resistência. Me encontrei em ti e em quero me perder quantas vezes forem necessárias, até que eu seja realmente um prisioneiro [livre] do teu amor."
Li e reli aquelas linhas tantas vezes que o papel quase se rasgou com o toque das minhas mãos. E então chorei. Chorei sem vergonha, sem segurar. As lágrimas caíam e se misturavam à areia, e eu deixei que o mar levasse um pouco daquela dor. Porque o mar, de alguma forma, sempre soube como cuidar de nós.
Fechei o caderno com cuidado e olhei para o horizonte. E naquele instante, uma ideia nasceu dentro de mim, algo entre promessa e necessidade. Eu precisava transformar aquela dor em força. Precisava carregar Rafael comigo, não apenas na lembrança, mas na pele, no corpo, no sangue.
Na manhã seguinte, o sol mal havia nascido quando decidi. Fui até o espelho e encarei a própria imagem. Olheiras profundas, olhos vermelhos, mas um brilho novo, um resto de coragem. Peguei o caderno azul, coloquei dentro da mochila e segui até o estúdio de tatuagem que ele frequentava.
O som familiar da campainha ao entrar me deu um arrepio. O tatuador, um homem de barba grossa e olhar gentil, levantou a cabeça e me reconheceu.
— Você é o Caio, né? O namorado do Rafael… A voz dele saiu embargada, e eu apenas assenti. — Ele falava muito de você. As tatuagens que ele fez em sua homenagem são muito mais que tatuagens pra ele. Lembro do dia que ele veio aqui e disse que conheceu a pessoa mais importante de sua vida: você.
Meu peito apertou. Respirei fundo e contei o que queria. Duas tatuagens. Uma no braço direito, a frase “Onde o mar nos levou”, escrito com a caligrafia exata que encontrei no caderno. A outra, uma âncora pequena, logo abaixo do peito esquerdo, com a frase “Rafa, meu equilíbrio…”.
Enquanto a agulha perfurava a pele, o som contínuo do motor parecia o eco do meu coração batendo rápido. Cada ponto de dor era uma lembrança dele. A risada, o toque, as brigas bobas, os beijos demorados. Quando a tatuagem ficou pronta, eu me olhei no espelho e senti algo que há dias não sentia, um tipo de paz. Era como se ele estivesse ali de novo, me segurando pela cintura e dizendo: “agora você me tem pra sempre”.
Voltei à delegacia no mesmo dia. A visita íntima tinha sido autorizada depois de muita insistência e algumas lágrimas de Dona Eloísa diante dos advogados.
Quando entrei na sala de espera, o coração parecia querer sair pela boca. Minutos depois, ele entrou. E por um instante, tudo parou. Rafael estava diferente. Mais magro, os olhos fundos, a barba por fazer. Mas ainda assim… lindo. O olhar dele me encontrou como um farol encontra o navio perdido.
— Caio… — ele disse baixo, quase um sussurro.
— Amor… — foi tudo o que consegui responder antes de correr até ele.
O abraço foi como um reencontro de almas. Ele chorou, eu chorei. Ficamos assim, em silêncio, apenas sentindo o outro respirar. Depois de um tempo, ele afastou um pouco o rosto, limpou as lágrimas e olhou para o meu braço.
— O que é isso? — perguntou, com a voz rouca.
Sorri entre lágrimas e mostrei.
— Onde nos conhecemos a primeira vez. — Depois abri a camisa e revelei a âncora. — “Rafa, meu equilíbrio…”
Por um instante, ele ficou sem palavras. Passou a ponta dos dedos sobre as tatuagens, como se quisesse certificar-se de que era real.
— Você fez isso por mim?
— Por nós — corrigi, com firmeza. — Porque isso aqui — apontei para nós — é o que me ancora, o que me mantém de pé.
Ele sorriu, mas havia dor naquele sorriso.
— Eu não mereço tanto, Caio.
— Merece, sim. Você me salvou, Rafa, duas vezes. E agora é a minha vez de te salvar.
Ele segurou meu rosto e encostou a testa na minha.
— Eu sonho em sair daqui e voltar pra praia com você. Caminhar descalço, sentir o vento, rir de novo.
— E eu vou te esperar — respondi. — O tempo que for.
O beijo que veio depois foi um mergulho. Profundo, urgente, cheio de saudade. Ali, entre paredes frias e lençóis brancos, o amor floresceu de novo. Não havia culpa, nem medo. Só dois corpos se encontrando para lembrar um ao outro que ainda estavam vivos, que ainda pertenciam um ao outro.
Cada toque era um pedido de perdão. Cada suspiro, uma promessa. E quando tudo cessou, ficamos abraçados, ouvindo o som das nossas respirações misturados às batidas de nossos corações cúmplices.
O silêncio que veio depois daquele beijo parecia outro tipo de som, o som de tudo o que nunca precisou ser dito. Ficamos ali, com o rosto colado, sentindo o calor um do outro, as respirações se confundindo, os corações batendo num mesmo compasso. O mundo inteiro cabia naquele pequeno espaço entre nós.
Ele passou a mão devagar pelo meu rosto, como quem tem medo de acordar de um sonho.
— Eu ainda lembro da tua pele — disse baixo. — Lembro do teu cheiro, do teu toque, de tudo o que me fazia esquecer o resto do mundo.
Fechei os olhos e segurei a mão dele contra o meu peito.
— Eu também lembro… e juro, Rafa, que esperei por esse momento todos os dias.
A sala tinha uma luz fraca, amarelada. Lá fora, o som distante de passos e vozes se misturava com o eco de nossas respirações. Tudo ali parecia suspenso, como se o tempo tivesse se curvado pra nos dar uma segunda chance.
Ele me puxou devagar, e o abraço foi quase uma oração. Era como se cada parte de mim buscasse um lugar seguro no corpo dele, e cada parte dele encontrasse repouso em mim. O toque das mãos dele era leve, cuidadoso, mas cheio de urgência, uma urgência calma, que não pedia pressa, apenas presença.
— Caio… — ele murmurou, a voz embargada. — Eu pensei que nunca mais fosse te ver assim, tão perto.
— E eu pensei que nunca mais fosse te sentir — respondi. — Mas a vida ainda nos deve um pouco de paz, e hoje… ela tá pagando.
Ele sorriu, aquele sorriso cansado e bonito que eu sempre amei, e encostou a testa na minha. Ficamos assim por longos segundos, respirando o mesmo ar, até que ele sussurrou:
— Se o amor fosse uma prisão, eu cumpriria a sentença só pra te ter comigo.
— Então que seja — respondi. — Eu seria teu cúmplice com prazer.
O toque dos dedos dele descia pelas minhas costas, como se escrevesse versos invisíveis sobre a pele. Eu sentia o corpo dele quente, o coração acelerado, e cada gesto dizia mais que qualquer palavra. Não era desejo apenas, era um reencontro de almas, um grito de vida no meio do desespero.
Ele me olhou com os olhos marejados e disse:
— Eu não sei se mereço o amor que você me dá.
— Você merece o amor que te cura — respondi. — E é esse que eu quero te dar, todos os dias, até o fim.
O resto do mundo desapareceu. Ficamos ali, entregues um ao outro, não como quem busca refúgio, mas como quem encontra casa. Era amor em forma de respiro, em forma de toque, em forma de promessa. Era o tipo de amor que não precisa de explicação, só de silêncio, pele e verdade.
Quando finalmente nos deitamos lado a lado, ele segurou minha mão e beijou o lugar exato onde estava tatuado o nome dele.
— Agora eu entendo — sussurrou. — Eu sou teu equilíbrio, mas você é minha razão de existir.
— Então somos um do outro — respondi, sorrindo entre lágrimas. — E que o mundo aguente o que somos, porque nem a distância, nem o medo, nem o tempo conseguem mais separar isso aqui.
As visitas íntimas eram feitas em um outro espaço reservado e longe de olhares curiosos e incovenientes. Ali estávamos entregues um ao outro. Cada toque dele era uma palavra não dita, cada respiração compartilhada era um poema que não precisava ser escrito. Eu podia sentir o calor dele através de seu corpo, e ele sentia o meu, cada gesto, cada olhar, era uma confirmação de que estávamos vivos e juntos, pelo menos temporariamente.
Os nossos corpos se aproximaram ainda mais, a tensão que vinha da saudade se transformando em uma corrente elétrica silenciosa, vibrante, que nos unia. Ele tocava meu rosto com uma delicadeza quase reverente, e eu respondia deslizando meus dedos pelas costas dele, pelo ombro, pelos braços, como quem quer memorizar cada curva de sua presença. Cada toque era cheio de significado, de memória, de promessa.
O olhar dele me atravessava, intenso e profundo, e eu podia sentir a mistura de alívio, amor e necessidade que pulsava dentro dele.
— Caio… — murmurou, quase sem fôlego —, eu não consigo acreditar que você está aqui. Que nós estamos aqui.
— Eu também não… mas estamos — respondi, segurando sua mão e entrelaçando nossos dedos. — E agora não vamos mais nos perder. Nunca mais.
Ele sorriu, com os olhos marejados, e se inclinou para me abraçar novamente, pressionando o rosto contra o meu peito. Eu podia ouvir o coração dele batendo, acelerado, mas firme. E então, pela primeira vez em dias, senti o peso da tensão se dissolvendo, substituído por algo mais profundo: a certeza de que estávamos exatamente onde devíamos estar.
O calor do toque dele era reconfortante, mas também cheio de urgência, como se cada gesto fosse a forma dele de recuperar tudo o que o destino havia tentado roubar. E eu respondia com o mesmo fervor, segurando-o, tocando-o, sussurrando palavras suaves que se misturavam com o ritmo da respiração dele.
— Eu te amo… — ele sussurrou, e as palavras pareciam ecoar em cada canto da sala.
— Eu também te amo… — respondi, encostando a testa na dele. — E isso nunca vai mudar.
Ficamos assim por longos minutos, perdidos no tempo. Cada pequeno toque era um lembrete de que nosso amor era maior do que qualquer dor, maior do que qualquer distância, maior do que qualquer medo. Cada abraço era uma promessa silenciosa de proteção, entrega e cumplicidade.
Ele segurou meu rosto com ambas as mãos, os olhos dele brilhando com lágrimas contidas, e disse:
— Eu senti sua falta como nunca imaginei. Cada dia longe de você foi um dia sem ar. E eu vou repetir isso, pois me dói demais. Amor, eu não posso imaginar minha vida sem tua presença. Quando vai embora, parte de mim se vai também.
— E eu senti a sua falta como se fosse minha própria vida — respondi. — Mas agora estamos aqui. Isso é tudo o que importa.
Nossos corpos se ajustaram, ainda nus, mas em contato, cada toque carregado de intimidade, cada olhar cheio de significado. Eu sentia cada movimento dele, cada respiração, cada gesto silencioso. Ele me olhava como se estivesse tentando gravar cada detalhe, e eu fazia o mesmo, como se guardar o instante nos nossos olhos fosse suficiente para nunca mais esquecê-lo.
Ele inclinou o rosto, encostando o nariz no meu pescoço, e eu senti o arrepio percorrer minha coluna.
— Eu nunca mais quero te deixar ir — sussurrou, a voz baixa e firme.
— Então não vai — respondi, envolvendo-o ainda mais nos meus braços.
— Eu prometo que não vou te soltar.
O tempo parecia se dilatar. O mundo lá fora existia, mas não tocava aquele espaço que era só nosso. Cada gesto era carregado de emoção, de história, de lembrança. Nossos dedos se entrelaçavam com força, os olhares se encontravam e se prendiam, os corpos se ajustavam, buscando conforto e confirmação. Cada toque, cada respiração compartilhada, era uma oração silenciosa de gratidão por termos sobrevivido ao caos, por ainda termos um ao outro.
Ele fechou os olhos e apoiou a cabeça no meu peito. Eu senti as lágrimas dele, quentes, misturadas com o meu calor, e sussurrei contra o cabelo dele:
— Estamos juntos. E nada nunca mais vai nos separar.
E assim permanecemos, abraçados, respirando um só ar, sentindo a presença um do outro como âncora e porto seguro. Cada batida do coração dele contra o meu peito me dizia que ainda havia esperança, que ainda havia amor, e que juntos seríamos capazes de enfrentar qualquer coisa que viesse depois.
Naquele instante, entendi de forma clara: a intimidade verdadeira não precisa de palavras. Ela se manifesta nos toques, nos olhares, na entrega completa e silenciosa. E nós estávamos vivendo isso, um amor que não precisava de nada mais além de nós dois, respirando, se encontrando, se reencontrando, se amando.
Quando finalmente nos separamos um pouco, só para respirar, ele olhou nos meus olhos e sussurrou:
— Eu nunca vou esquecer isso.
— Nem eu — respondi, com lágrimas escorrendo pelo rosto. — Nem eu.
E naquele olhar, naquela entrega, naquela cumplicidade silenciosa, eu sabia: por mais que o mundo quisesse nos derrubar, por mais que o caos tentasse nos separar, nosso amor sempre encontraria um caminho. Sempre.
Quando a porta se fechou atrás de mim, senti minhas pernas vacilarem. O corredor da delegacia parecia infinitamente longo, iluminado por uma luz fria que deixava tudo ainda mais pesado. O cheiro de desinfetante, os passos apressados dos agentes, o eco das vozes — tudo parecia distante, como se eu estivesse atravessando um sonho ruim.
E então a vi.
Dona Eloísa estava sentada numa das cadeiras de plástico, as mãos apertadas no colo, os olhos fixos na porta por onde eu acabara de sair. Seu corpo inteiro parecia tenso, como se o mundo estivesse apoiado sobre os ombros dela.
Quando me viu, ela levantou bruscamente, quase tropeçando nos próprios pés.
— Caio… — a voz dela saiu trêmula, carregada de esperança e medo ao mesmo tempo. — Ele… ele tá bem?
Por um instante, a pergunta ficou suspensa entre nós. Eu senti a respiração prender no peito, como se fosse difícil traduzir em palavras tudo o que tinha acontecido ali dentro, a dor, o amor, a saudade, a urgência.
— Ele tá… melhor agora. — respondi, e só percebi que estava sorrindo quando senti a pele do meu rosto arder.
Os olhos dela se encheram de lágrimas rápidas, aquelas que chegam sem aviso.
— Graças a Deus… — ela murmurou, colocando as mãos no rosto por um instante, como quem tenta conter o próprio coração.
Aproximou-se de mim devagar, como se temesse que qualquer movimento brusco pudesse quebrar algo frágil dentro dela.
— Ele… ele chorou? — perguntou, com receio da resposta.
Assenti com um gesto curto.
— Eu chorei também — admiti. — A gente… se encontrou. Finalmente.
Ela soltou um suspiro profundo, carregado de alívio e dor ao mesmo tempo.
— Meu filho sempre foi forte… mas dessa vez… ele tá tão quebrado, Caio. — A voz falhou. — Eu nunca vi ele desse jeito.
Aproximou-se mais, tocando meu braço de leve, como se buscasse apoio.
— Eu não sei como agradecer por você estar com ele. Eu não sei como agradecer por você… não ter ido embora.
Engoli seco. As palavras dela bateram forte.
— Eu nunca iria embora. Nunca. O Rafael é… — pausei, procurando ar. — Ele é a minha casa.
Ela fechou os olhos por um instante, como se precisasse absorver aquilo.
— Sabe… — começou, ajeitando o cabelo com as mãos trêmulas. — Desde que ele era menino, eu rezava para que um dia ele encontrasse alguém que olhasse pra ele do jeito que ele precisava. Alguém que enxergasse além da força, além da teimosia, além da armadura que ele usava. — Ela sorriu, triste. — E quando ele me falou de você… eu soube.
Eu me surpreendi.
— Ele falou de mim assim?
Ela riu, um riso pequeno, carregado de saudade.
— Caio… ele falava de você como quem fala do sol. Mesmo nos piores dias. Nos dias em que ele mal conseguia olhar no espelho. Você era… você é… a luz dele.
Senti os olhos queimarem, mas não desviei. Não naquele momento.
— Ele também é a minha — respondi. — E eu prometo que vou continuar sendo o que ele precisa. O que ele merece.
Ela segurou minhas mãos, com uma força inesperada.
— Eu sei. — Os olhos dela fixaram nos meus. — E é isso que vai manter o meu filho de pé lá dentro. Não são os advogados, nem os remédios, nem as promessas. É você. É esse amor que vocês têm um pelo outro.
Silêncio. Um silêncio pesado, mas bonito. Um silêncio que dizia que ali, naquele corredor frio, nós formávamos uma espécie de família improvisada, unida pela dor, mas também pela força.
Ela respirou fundo e continuou:
— Caio, eu preciso que você seja forte. Porque quando ele te vê forte… ele acredita que também pode ser. — A mão dela apertou a minha mais uma vez. — Ele precisa muito de você agora. Mais do que jamais precisou de alguém.
Eu assenti, sentindo o peso — e a honra — do que ela dizia.
— Eu não vou fraquejar — prometi. — Nem por um segundo.
A expressão dela suavizou. Por um instante, ela me puxou num abraço inesperado — quente, frágil, desesperado. Um abraço de mãe.
— Obrigada, meu filho… — ela sussurrou contra meu ombro. — Obrigada por não soltarem a mão um do outro. É isso que vai salvar ele… e você também.
Eu fechei os olhos, respirando aquele momento.
Quando nos afastamos, ela enxugou as lágrimas e tentou sorrir.
— Vamos pra casa? — perguntou, cansada, mas com um brilho novo.
Olhei para a porta por onde Rafael tinha sido levado, e meu peito apertou.
— Vamos — respondi. — Ele vai sair de lá. E quando isso acontecer… a gente vai estar esperando.
E ao lado dela, caminhando pelo corredor estreito, pude sentir uma certeza surgir dentro de mim:
não era só o Rafael quem precisava ser salvo. Nós três estávamos sendo salvos juntos.
Dona Eloísa me deu uma carona embora ela insistisse para que eu ficasse em sua casa, eu não conseguia ficar longe do apartamento, do lugar onde Rafa e eu fomos tão felizes, onde muitas vezes nos amamos e nos entregamos um ao outro.
Quando cheguei, subi de elevador e quando a porta do apartamento estava diante de mim, o silêncio caiu pesado, como se o ar tivesse sido arrancado do lugar.
Por um instante, fiquei parado no corredor, entrei e minha mão ainda estava na maçaneta, tentando entender como um espaço tão familiar podia parecer tão estrangeiro depois de algumas horas.
A casa estava do jeito que deixei: quieta, arrumada demais, vazia demais, mas eu… eu estava diferente. Carregava na pele o toque dele. No peito, o calor do abraço. Na boca, o gosto do beijo que esperei dias para receber.
Deixei as chaves sobre a mesa e caminhei até a sala devagar, como se meus passos ainda estivessem presos no chão frio da delegacia. Meu corpo estava cansado, mas não era só isso, era uma mistura de alívio e saudade que doía como ferida aberta.
Sentei no sofá e apoiei os cotovelos nos joelhos.
Fechei os olhos.
E tudo voltou.
O cheiro dele. O jeito como ele me puxou pela cintura, quase como quem não acredita que pode tocar. O tremor leve nas mãos quando ele passou os dedos pelo meu rosto. A voz rouca sussurrando meu nome como se fosse a primeira oração depois de dias sem fé.
Eu ainda podia sentir a respiração dele contra a minha pele, quente, urgente, como se estivesse tentando recuperar o tempo roubado. E o abraço… Deus, o abraço. O jeito como ele se encaixou em mim, como se o corpo dele tivesse sido moldado para ocupar exatamente aquele espaço.
A sala parecia pequena para tudo o que eu lembrava.
Passei a mão pelo rosto, sentindo os dedos tremerem um pouco quando a memória do toque dele voltou, quando ele deslizou a mão pela minha nuca, como quem tem medo de que eu desapareça se soltar.
A forma como ele encostou a testa na minha, respirando rápido, como se estivesse vivo pela primeira vez em dias.
— Eu senti sua falta — ele disse.
A voz dele ecoou na minha cabeça como se estivesse aqui, agora, sentado ao meu lado.
Abri os olhos devagar.
O apartamento estava vazio. Mas a presença dele… não. Ela ainda dançava no ar, teimosa, quente, tão viva quanto minutos atrás.
Me recostei no sofá e deixei a cabeça cair para trás, respirando fundo. E a lembrança da pele dele contra a minha voltou com força, não de forma explícita, mas como um sentimento profundo, visceral, que transcende o corpo.
O carinho lento.
O toque cuidadoso.
A forma como ele segurou meu rosto enquanto dizia:
— Eu preciso de você.
Essas quatro palavras continuavam prensadas no meu peito, queimando.
Eu me lembrava do jeito como ele percorreu minhas costas com as mãos, quase com reverência, como se quisesse confirmar que eu era real, que eu estava ali, que ele não estava sonhando. Cada gesto dele carregava dor, saudade, amor — tudo de uma vez.
Eu suspirei, deixando o ar sair pesado.
O apartamento parecia cheio dele.
Cada canto.
Cada sombra.
Cada memória.
Fechei os olhos de novo.
Me lembrei do momento em que ele encostou o rosto no meu pescoço, tão perto, tão vulnerável, que senti o coração dele bater rápido contra o meu peito. Me lembrei das palavras dele, baixas, trêmulas:
— Não solta de mim.
— Nunca.
E a forma como eu respondi, quase sem voz:
— Nunca.
O silêncio da casa parecia ecoar essas palavras. O sofá ainda guardava o formato de quando ele deitava com a cabeça no meu colo nos dias tranquilos. A cozinha ainda lembrava o riso dele, a bagunça, os cafés derramados.
Tudo nele me chamava.
Senti a garganta apertar, uma saudade impossível de conter.
Coloquei a mão sobre o peito, bem onde estava a tatuagem nova.
A pele estava sensível, mas… não era dor.Era como se o nome dele gravado ali pulsasse junto com meu coração.
— Rafa… — murmurei, quase sem perceber.
E naquele instante, mesmo sozinho no apartamento, eu não me senti só.
Eu senti ele... Nas lembranças. Nos toques que ainda queimavam na pele. Nas palavras que não paravam de ecoar.
E entendi algo que doeu e trouxe paz ao mesmo tempo: eu tinha deixado Rafael na delegacia,
mas ele tinha vindo comigo.
Dentro de mim. Na pele. No peito. E na alma. Para sempre!
