Capítulo XXIX – Ecos do Silêncio
Rafa narrando...
Eu ainda ouvia o som dos tiros. Mesmo depois que tudo ficou em silêncio, mesmo depois que o corpo dele caiu… aquele som continuava ecoando dentro de mim, como se tivesse se alojado no fundo da minha cabeça.
Por um instante, o mundo parou. Não havia mais ruído, nem respiração. Só o sangue escorrendo pelo piso branco e o cheiro de pólvora queimando o ar.
Minhas mãos tremiam tanto que eu mal conseguia sustentar o próprio corpo. A arma escorregou dos meus dedos e caiu, fazendo um som seco, metálico, que ecoou como um trovão dentro do quarto. Eu olhei pro chão e vi o rosto dele — o homem que me criou, o mesmo que passou a vida tentando me destruir.
O sangue se espalhava devagar, desenhando linhas irregulares no piso. Por um segundo, achei que eu fosse desmaiar.
Caio se aproximou, os olhos arregalados, a respiração trêmula. Ele ajoelhou na minha frente e me puxou pelos ombros, me abraçando forte, como se quisesse me manter em pé.
— Rafa… olha pra mim… respira, amor… respira comigo, tá?
Mas eu não conseguia. Eu tentava, mas o ar parecia preso.
— Eu não queria, Caio… eu não queria fazer isso… — minha voz saiu quase num sussurro, um som que doía.
— Mas ele ia te matar… ele ia…
— Eu sei, eu sei… — ele repetia, segurando meu rosto, com lágrimas escorrendo.
— Você me protegeu. Tá tudo bem. Já acabou.
Mas não tinha acabado. Nem de longe.
Um grito de enfermeira quebrou o silêncio. Ela entrou correndo no quarto e, ao ver o corpo caído, soltou um som que não parecia humano. Logo depois vieram os passos, os alarmes, o barulho das rodas de uma maca
sendo empurrada apressada.
A porta se abriu com força. Médicos, seguranças, técnicos, todos tentando entender o que estava acontecendo. E, no meio daquele caos, eu continuei ali, ajoelhado, sem conseguir mover um músculo, com o rosto molhado de lágrimas e o gosto amargo da culpa na boca.
— Meu Deus, o que aconteceu aqui?! — gritou alguém.
Eu tentei falar, mas a voz falhou.
Caio respondeu por mim, o peito arfando:
— Ele tentou medicar o Rafael, mas não era médico! Era o pai dele! Ele ia matar o Rafa! Ele só me defendeu!
O segurança olhou pra nós, depois pro corpo, e o olhar dele mudou, de confusão pra choque, depois pra urgência. Ele pegou o rádio e começou a pedir reforços.
O barulho das sirenes veio logo em seguida, cortando o ar lá fora. Em poucos segundos, o hospital virou um campo de guerra.
Quando os policiais entraram no quarto, a tensão explodiu.
Um deles veio direto até mim, outro segurou o Caio pelo braço, afastando ele devagar. Eu tentei explicar, mas as palavras tropeçavam uma nas outras.
— Foi legítima defesa… ele ia… ele ia matar ele… — eu dizia, apontando pra Caio, a voz embargada.
— Senhor, abaixe as mãos. Fique onde está. — o policial ordenou, firme.
Eu levantei os braços, mesmo sem entender direito o que estava acontecendo. As luzes do quarto pareciam me cegar. O corpo do meu pai ainda estava ali, imóvel, o sangue se acumulando em volta.
E então eu ouvi.
— Rafael!
A voz da minha mãe.
Quando ela entrou no quarto, o tempo pareceu colapsar. Mamãe parou na porta, empalideceu, levou as mãos à boca e gritou.
Miguel veio logo atrás dela, tentando segurar seus ombros, mas ela escapou e correu até mim.
— Meu Deus… Rafael… o que foi que você fez? — ela sussurrava, a voz embargada.
Eu tentei responder, mas nada saía.
Caio se aproximou, tentando explicar, tentando fazer alguém ouvir.
— Dona Eloísa, ele não teve escolha! Augusto tentou matar ele! Tentou me trancar no banheiro! Ele só reagiu, foi pra me proteger!
A confusão aumentava. Policiais conversando, enfermeiros tentando conter a multidão, câmeras de segurança sendo solicitadas. O corpo de Augusto foi coberto por um lençol branco. Eu não conseguia olhar.
Minhas pernas finalmente cederam, e eu caí sentado no chão. A mão de Caio veio até a minha, firme, quente, tentando me manter presente.
— Eu tô aqui, Rafa… eu tô aqui…
E eu só conseguia pensar que, por mais que ele dissesse aquilo, o mundo já não era mais o mesmo.
As horas seguintes foram um borrão.
Eu me lembro de flashes, mãos me levantando, enfermeiros limpando meu rosto, policiais fazendo perguntas que eu não sabia responder. O quarto foi isolado, a arma apreendida. E entre todas as vozes, o choro da minha mãe era o mais alto.
Depois veio a maca, o corredor lotado, os flashes de câmeras, jornalistas que já sabiam mais do que nós.
Eu sentia o corpo pesar. Ainda estava fraco da internação, mas agora era outra dor — uma dor que queimava diferente. A dor de saber que, por mais que eu tivesse feito pra proteger quem amo, o mundo nunca ia ver desse jeito.
Os dias passaram devagar. Três, talvez quatro. Fui interrogado, medicado, observado. Caio não saía do hospital, dormia em cadeiras, ao meu lado, de mãos dadas comigo. Ele tentava sorrir, tentava esconder o medo, mas eu via. Via cada sombra que passava no olhar dele.
No quarto dia, o médico entrou com um semblante pesado.
— Rafael… você está estável. Hoje receberá alta.
Eu senti o coração acelerar. Por um segundo, achei que aquilo era um alívio, até ver os dois policiais parados na porta.
Eles não disseram nada, apenas esperaram.
Quando o médico saiu, um deles se aproximou e falou com calma:
— Senhor Rafael Santos Montenegro, o senhor está sob voz de prisão pelo homicídio de Augusto Santos Montenegro.
Aquelas palavras me atravessaram como uma lâmina.
Caio, que estava ao meu lado, levantou num pulo.
— O quê? Isso é um absurdo! Ele se defendeu! Ele salvou a minha vida! — gritou, chorando. — Foi legítima defesa!
Um dos policiais olhou pra ele com expressão contida.
— Senhor, eu entendo, mas há protocolos. Ele vai prestar depoimento. Depois a justiça vai avaliar.
Caio começou a chorar de verdade, segurando minha mão com força.
— Não, por favor… vocês não estão entendendo… ele não pode ir preso…
Eu olhei pra ele e senti as lágrimas caírem.
— Caio… amor, tá tudo bem. — menti. — Deixa eles fazerem o que têm que fazer. A verdade vai aparecer.
Minha mãe apareceu no corredor nesse instante, acompanhada de Miguel. Os olhos dela estavam inchados, mas firmes. Ela segurou meu rosto, me olhando fundo.
— Rafael, nós vamos resolver isso, meu filho. Eu juro pra você.
— Mãe…
— Me escuta. Eu vou colocar os melhores advogados, os mais experientes. Eles vão provar o que realmente aconteceu. Você não vai pagar por proteger quem você ama.
Os policiais pediram pra eu levantar.
Eu senti o peso das algemas frias nos meus pulsos, um som seco, definitivo.
Caio se desesperou, tentando impedir.
— Não faz isso! Ele não é um criminoso! — gritava, empurrando os braços dos policiais.
— Caio… por favor… — pedi, com a voz trêmula. — Me deixa ir. Eu prometo que volto. Eu te amo, tá?
Ele me olhou com o rosto desfigurado pelo choro, os olhos vermelhos, a voz falhando.
— Eu também te amo, Rafa… e eu vou lutar por você. Até o fim.
Fui levado pelo corredor, com as luzes brancas piscando acima da minha cabeça. Cada passo ecoava como um adeus.
As pessoas olhavam, cochichavam. Câmeras. Flashes.
Mas nada disso importava.
O que importava era a última imagem que ficou gravada na minha mente: Caio de pé no corredor, chorando, com as mãos trêmulas estendidas no ar, enquanto minha mãe o segurava pelos ombros, dizendo que a verdade ainda seria provada.
E eu sabia, no fundo, que aquela não seria a nossa última luta. Mas seria, sem dúvida, a mais difícil de todas.
Os dias passaram devagar, como se o tempo tivesse esquecido de andar. Aqui dentro, as horas não têm pressa. O sol nasce e morre por trás das mesmas janelas pequenas, e o som das chaves se tornou o meu relógio, o único que ainda marca alguma coisa. Cada vez que a tranca gira, lembro que não estou livre, e talvez nunca volte a ser o mesmo.
Desde que cheguei, tudo pareceu um borrão. As vozes dos policiais, o som metálico da porta da cela, o frio cortante do chão. As primeiras noites foram as piores, o silêncio era pesado demais, e eu me pegava ouvindo o próprio coração bater, tentando entender como as coisas tinham chegado até ali.
Eu revivia o momento dos tiros toda vez que fechava os olhos. O som ecoava, o corpo caía, e o sangue se espalhava de novo. Era como se o passado me puxasse pelos tornozelos todas as madrugadas, me afogando em culpa, mesmo sabendo que foi por amor, por instinto, por defesa.
Mas o amor dói, às vezes, mesmo quando salva. Na segunda manhã, o advogado apareceu. Um homem calmo, de voz firme, escolhido pela minha mãe. Ele me explicou tudo com paciência, os trâmites, as audiências, as provas, os depoimentos. Disse que a perícia já havia confirmado que o tiro partiu de um ângulo de defesa, que havia indícios de luta corporal, e que Caio seria ouvido como principal testemunha. Mas o processo seria longo. E até lá, eu teria que esperar. Esperar e acreditar.
Minha mãe, Dona Eloísa, estava firme. Ela tomou a frente dos negócios da família com uma força que eu nunca tinha visto antes. Os jornais diziam que ela estava “reerguendo o império Santos Montenegro”, mas eu sabia que ela só estava tentando proteger o que restava de nós. Nas ligações que ela conseguia fazer, a voz dela sempre vinha calma, mesmo quando as lágrimas traíam o controle.
— Meu filho, eu não vou descansar enquanto não provar sua inocência. Já estou com três advogados, dois peritos e um investigador particular. A verdade vai aparecer.
— Eu confio na senhora, mãe.
— E confie no Caio também. Ele não sairá do seu lado nem por um minuto.
Só de ouvir o nome dele, o peito apertava. Caio tinha tentado me visitar desde o primeiro dia, mas os trâmites demoraram. A primeira vez que autorizaram a visita foi duas semanas depois. Dias semanas longas, lentas e pesadas. Quando o carcereiro me avisou que eu teria visita, senti o coração disparar de um jeito que eu não sentia desde antes de tudo acontecer. Minhas mãos suavam. Eu olhava o reflexo borrado do espelho rachado da cela e via alguém que eu mal reconhecia, barba por fazer, olheiras fundas, olhar cansado. Mas quando ele entrou, tudo dentro de mim se calou.
A sala de visitas era pequena, fria, de paredes pálidas e cheiro de desinfetante. Uma mesa de metal separava os visitantes dos presos, mas, naquela manhã, o delegado havia permitido uma conversa reservada, graças à intervenção dos advogados. Quando Caio entrou, eu esqueci do resto do mundo.
Ele usava uma camisa azul simples, o rosto abatido, os olhos vermelhos como se não dormisse há dias. Mas mesmo assim, ele era o mesmo, o mesmo olhar terno, o mesmo jeito de andar, a mesma calma que sempre foi meu abrigo.
Quando nossos olhos se encontraram, ele parou no meio da sala, respirou fundo e deixou as lágrimas caírem. Eu fiquei em pé, imóvel, sem saber o que fazer, até que ele correu até mim e me abraçou. O impacto foi tão forte que eu quase perdi o equilíbrio. Aquele abraço era tudo o que eu precisava, e tudo o que eu temia. As mãos dele tremiam nas minhas costas, o rosto escondido no meu pescoço. Eu senti as lágrimas dele molharem minha pele. Ficamos assim por longos minutos, sem falar nada, só existindo um no outro, tentando lembrar como era respirar.
— Rafa… — ele sussurrou, a voz embargada. — Eu não aguentava mais esperar. Eu tentei vir antes, mas não deixavam…
— Tá tudo bem, amor. — respondi, apertando ele contra mim. — Agora você tá aqui. É só isso que me importa.
— Eu sonhava com esse momento… em te ver, te tocar… — ele soluçava. — Mas doía tanto ver as notícias, ouvir o que falavam… dizerem que você é um assassino… eles não sabem o que você fez por mim.
Eu segurei o rosto dele, obrigando-o a me olhar nos olhos.
— Ei… olha pra mim. Você tá ouvindo? Eu não me arrependo. Eu faria tudo de novo. Eu não podia deixar ele te machucar.
— Mas você tá pagando por isso, Rafa… preso… sozinho… enquanto eu tô lá fora.
— Sozinho? — dei um meio sorriso. — Eu nunca tô sozinho enquanto você me ama.
Caio chorou ainda mais. As palavras saíam aos tropeços, entre soluços e pausas.
— Eu sinto tanto a sua falta… a casa tá vazia… eu acordo e parece que o ar tá frio demais. Eu olho pra cama e espero você estar lá, do meu lado… mas é só o travesseiro. Eu fico imaginando o que você tá sentindo, se tá comendo direito, se dorme… se ainda pensa em mim antes de fechar os olhos.
— Eu penso em você a cada segundo, Caio. — falei, encostando minha testa na dele. — Aqui dentro, você é a única coisa que me mantém de pé. É o único pedaço de liberdade que ainda tenho.
Ele passou a mão no meu rosto, devagar, como quem memoriza cada traço pra não esquecer.
— Você tá magro… — disse baixinho. — E mesmo assim, ainda tenta sorrir. — Eu sorrio por você. — respondi, com um riso triste. — Porque se eu parar, tudo aqui dentro me engole.
Caio respirou fundo, tentando se recompor, mas a voz dele ainda tremia.
— Sua mãe tá movendo o mundo pra te tirar daqui. Ela assumiu as empresas, Rafa. Tá enfrentando o conselho, os investidores, a imprensa… ninguém acredita na força dela. Ela tá fazendo o que devia ter sido feito há muito tempo.
— Eu sei. — falei, olhando pro chão. — Ela tá pagando o preço junto comigo. Eu odeio isso.
— Ela não vê assim. Ela disse que agora tá lutando por justiça — pela tua e pela dela.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. O som distante das chaves e dos passos ecoava pelo corredor. Eu segurei as mãos dele, entrelaçando nossos dedos.
— Promete uma coisa pra mim, Caio.
— Qualquer coisa.
— Não desiste de viver lá fora. Não deixa essa cela me prender em você também. Continua o teu trabalho, os teus sonhos, tua vida. Eu quero que você viva, entendeu?
Ele balançou a cabeça, chorando.
— Não me pede isso. Eu não sei viver sem você.
— Sabe, sim. — eu insisti, com a voz embargada. — E eu preciso acreditar que vou te ver de novo, mas quando esse dia chegar, quero encontrar o mesmo Caio de sempre — forte, teimoso, cheio de amor.
Ele respirou fundo, encostando a testa na minha outra vez.
— Eu vou lutar, Rafa. Todos os dias. Até te ver livre.
— E eu vou estar aqui, orando por isso. Pensando em você em cada nascer do sol que eu só posso imaginar.
O tempo acabou rápido demais. O carcereiro abriu a porta, avisando que a visita estava terminando. Caio me olhou com desespero, os olhos marejados, como se quisesse se agarrar a mim pra nunca mais soltar. Eu o abracei uma última vez, forte, intenso, como quem tenta gravar o outro na pele.
— Eu te amo, Caio.
— Eu também te amo, Rafa… e eu vou te provar que o amor vence até isso.
Ele saiu, e o som da porta se fechando atrás dele foi como uma sentença. Mas, pela primeira vez desde o dia do disparo, o silêncio não me pareceu tão vazio. Porque agora ele deixava um rastro de esperança.
O amor ainda estava vivo, mesmo entre as grades.
