A chuva caía grossa e constante sobre a base, transformando o pátio em poças irregulares que espelhavam a luz cinzenta da manhã. Era fim de semana, e, por algum descuido administrativo ou coincidência conveniente do destino, apenas duas pessoas tinham sido escaladas para aquele plantão diurno: Edina e Rafael.
Rafael era um dos condutores mais reservados da base. Casado, pai de dois filhos, conhecido pela disciplina exemplar. Um homem que todos consideravam “blindado” às distrações. E talvez por isso mesmo Edina tivesse tanto interesse nele.
Ela gostava dos que resistiam.
A chuva batendo no telhado criava um ritmo quase hipnótico, preenchendo os silêncios que, em dias normais, seriam compartilhados com mais cinco ou seis colegas. Mas ali, apenas os dois, a base parecia maior, mais vazia, mais íntima — e mais perigosa.
Edina chegou à sala de descanso com uma xícara de café nas mãos.
— Parece que o mundo inteiro resolveu desabar hoje — disse ela, observando pela janela o aguaceiro que caía sem pausa.
Rafael estava sentado ajeitando alguns papéis da última ocorrência. Levantou o olhar por um instante, apenas o necessário.
— É. Vai ser um plantão parado.
Edina sorriu.
Plantões parados eram sua especialidade. Quanto menos barulho, mais espaço havia para o jogo.
Ela caminhou até a mesa com a tranquilidade calculada de sempre. O som leve dos passos dela parecia competir com a chuva.
— Você sempre esteve tão focado nos seus afazeres, Rafael… — disse ela, apoiando-se na mesa com expressão curiosa. — Até quando não há nada pra fazer.
— É o trabalho — respondeu ele, desviando naturalmente o olhar, como se não percebesse que aquilo só aumentava a curiosidade dela.
Ela o estudou por alguns segundos. Gostava da postura dele. Gostava do silêncio dele. Homens quietos sempre tinham muito guardado por dentro.
— O trabalho não preenche tudo — murmurou Edina, mexendo lentamente o café, o cheiro forte se espalhando no ar. — Às vezes sobra espaço na cabeça, sabe? Aquele espaço que a gente tenta ignorar.
Rafael franziu a testa, ainda sem encará-la diretamente.
— Não sei se concordo.
— Claro que sabe — disse Edina, com um sorriso pequeno, mas firme. — Todo mundo pensa no que não deveria quando o dia fica silencioso demais.
Ela não estava perguntando. Estava afirmando — como quem já havia entendido mais do que ele mostrava.
Rafael respirou fundo.
O barulho da chuva aumentou.
A base ficou ainda mais isolada, quase desconectada do resto do mundo.
Edina deu alguns passos lentos até o armário de suprimentos, abrindo a porta como se isso fosse parte da conversa.
Pegou uma manta — a sala estava fria com a chuva — e a colocou sobre si, de forma sutil, elegante. O movimento atraiu os olhos dele por apenas meio segundo… mas ela percebeu.
Edina sempre percebia.
— Está com frio? — perguntou Rafael, tentando manter o natural.
— Um pouco — respondeu ela. — Ou talvez seja só esse clima… um dia chuvoso tem um poder estranho sobre as pessoas. Deixa todo mundo mais… sensível.
Ele desviou o olhar para o rádio, desligado há horas, esperando uma ocorrência que não viria tão cedo.
— Eu não sou muito de sensibilidade — disse Rafael.
Edina riu baixo.
— Não é mesmo? Que curioso… — Ela aproximou-se sem pressa, até ficar a um metro dele. — Posso te contar uma coisa?
Rafael engoliu seco.
— Pode.
Ela inclinou a cabeça, observando-o como se estivesse estudando as rachaduras invisíveis do autocontrole dele.
— Você é o único daqui que não tenta me impressionar — disse ela. — E isso te torna o mais interessante de todos.
Ele finalmente ergueu o olhar. A expressão não era raiva, nem desconforto — era confusão.
— Edina… você sabe que eu sou casado.
— Sei — respondeu ela, sem desviar os olhos. — Justamente por isso eu disse que você é interessante. Os casados sempre são mais cautelosos. E cautela me fascina.
Rafael respirou fundo, como se buscasse dentro de si alguma resposta racional para aquilo.
— Eu não quero entrar nesse tipo de conversa.
— Já entrou — disse Edina com suavidade, quase como um carinho que não existiu. — Só de reagir assim, você já está dentro dela.
Ele se levantou, talvez para demonstrar firmeza, talvez para colocar distância. Mas ela deu um passo para o lado, abrindo passagem — e o olhar dele cruzou com o dela por tempo demais.
A chuva continuava pesada. Quase não havia som além dela e das respirações tensas no ambiente.
Edina caminhou até a ambulância estacionada no pátio coberto. Rafael hesitou, mas acabou seguindo. A porta da viatura estava aberta, o interior mais escuro, iluminado apenas pela claridade cinzenta do lado de fora.
Ela entrou primeiro.
— Preciso conferir uma coisa no equipamento — disse, sabendo que ele iria atrás.
E ele foi.
Dentro da ambulância, o espaço era menor, mais fechado, mais íntimo. Rafael colocou as luvas para fingir foco profissional, mas Edina sabia que ele não sabia nem o que estava procurando.
— Está nervoso? — perguntou ela, quase no ouvido dele, mas mantendo a distância exata para que nada se tornasse explícito.
— Não — mentiu ele.
— Está sim. Eu sinto — disse ela, passando a mão pelo próprio braço num gesto casual que parecia muito mais provocação do que proteção contra o frio. — Não precisa ter medo de mim, Rafael.
Ele virou de costas, tentando respirar melhor.
— Não tenho medo. Só não quero ultrapassar limites.
Edina apoiou-se na maca, com o olhar firme, intenso.
— Limites só existem para quem quer impor barreiras — disse ela em voz baixa. — E você está lutando contra algo que nem começou.
Ele fechou os olhos por um instante, tentando se recompor.
— Você… gosta de fazer isso, né? — perguntou ele finalmente. — De mexer com as pessoas.
Ela sorriu. Um sorriso cheio de verdade.
— Gosto de entender o que elas escondem.
— E o que você acha que eu escondo?
Edina aproximou-se devagar. Não o tocou. Nunca tocava primeiro. Era esse o jogo.
— Que você sente mais do que admite — respondeu ela. — E que está tentando proteger isso como se fosse perigoso. Mas a verdade, Rafael… é que o perigo não sou eu. É o que você sente quando fica sozinho comigo.
A chuva batia forte no teto.
A base estava vazia.
O mundo parecia reduzido ao espaço de uma ambulância.
Edina recuou devagar, com elegância, dando a ele a chance de respirar.
— Não se preocupa — disse ela, saindo da viatura. — Eu sei exatamente até onde ir.
Mas o olhar que ela lançou antes de atravessar o pátio deixava claro:
Ela iria voltar.
Ela iria testar.
E ele iria sentir.
Porque a tempestade lá fora não era nada comparada à que ela deixava dentro dos homens que tentavam resistir.