Capítulo XXV - Um sinal de esperança no mar!
Íamos em direção ao cativiero duas noites atrás, mas a polícia identificou que poderia se tratar de uma pista falsa, então, nos alertou para que voltássemos para casa e aguardássemos novas instruções. A angústia me consumia, mas a centelha de esperança não se apagava do meu coração. Eu sabia que veria Rafa novamente e o teria em meus braços, e ele jamais sairia novamente da minha vista.
Eu nunca vou esquecer o som daquele telefone vibrando sobre a mesa. Era um barulho comum, mas naquela noite soou como um trovão dentro do apartamento silencioso. Eu estava sentado no sofá, curvado para frente, com o rosto enterrado nas mãos, quando o toque cortou o ar pesado que me sufocava.
Demorei alguns segundos para entender que era o meu celular. Quando vi o nome da delegacia piscando na tela, o coração quase parou. Senti um frio percorrer todo o meu corpo, como se alguém tivesse aberto uma porta para o inverno dentro de mim.
— Alô? — minha voz saiu trêmula, quase um sussurro.
Do outro lado, a voz firme do inspetor Vasconcelos trouxe a notícia que eu implorava para ouvir havia dias: eles tinham encontrado alguém com as características de Rafael. Um jovem resgatado por um casal de idosos, internado em um hospital no interior, a quatro horas de São Paulo. O estado era grave, mas ele estava vivo. Vivo. A palavra ecoou na minha cabeça como um milagre.
Por um instante, não consegui responder. Era como se o ar tivesse sido arrancado do meu peito. Quando finalmente consegui falar, a voz quase não saiu.
— Eu… eu vou agora. Por favor, cuidem dele… não deixem ele sozinho.
— Ele está sob atendimento médico — garantiu o inspetor. — Venham o quanto antes.
Desliguei com as mãos trêmulas. Fiquei olhando para a tela apagada do celular, tentando acreditar no que acabara de ouvir. Rafael estava vivo. Vivo. As lágrimas vieram de uma vez, quentes, cegantes. Antes que eu pudesse raciocinar, disquei para Dona Eloísa.
— Dona Eloísa… — minha voz falhava a cada palavra — …a polícia ligou. Eles… eles acharam o Rafa. Ele tá vivo, tá no hospital.
Do outro lado, ouvi um grito abafado, seguido de um choro que parecia carregar todas as orações que ela vinha fazendo.
— Meu Deus… obrigada, Senhor! — ela repetia, sem conseguir dizer mais nada.
— Eu tô indo agora — falei, já levantando. — Passo pra pegar a senhora.
Quando desliguei, Miguel entrou no apartamento quase sem fôlego, depois de eu mandar uma mensagem curta pedindo que viesse. Ao ver meu rosto, ele entendeu antes mesmo de eu falar.
— Caio…? — perguntou, os olhos arregalados.
— Eles acharam o Rafa — respondi, engolindo um soluço. — Ele tá vivo, Miguel. Tá no hospital.
Miguel me puxou para um abraço forte, quase esmagador. Senti a força dele tentando me manter de pé quando minhas pernas pareciam de borracha.
— Então, vamos agora. Não devemos perder nem um segundo.
Saímos correndo. Pegamos Dona Eloísa em seu apartamento, e o choro dela quando nos viu foi de cortar o coração. Miguel a ajudou a entrar no carro enquanto eu ligava o motor com as mãos suadas. A rodovia parecia um túnel sem fim à nossa frente, iluminada apenas pelos faróis.
Dirigi como se a vida de Rafael dependesse de cada segundo — e, de certa forma, dependia. O silêncio dentro do carro era quebrado apenas pelas orações baixas de Dona Eloísa no banco de trás, com o terço entre os dedos, e pelo tamborilar nervoso de Miguel no joelho. A cada quilômetro, minha cabeça voltava para as últimas horas que passei com Rafael.
Eu revivia cada palavra da nossa última briga. Eu o acusei. Eu duvidei do amor dele. Eu disse coisas que nunca deveria ter dito. A lembrança era um soco no estômago.
— Eu fui um idiota — murmurei, sem tirar os olhos da estrada. — Eu achei que… achei que ele tivesse me traído. Joguei isso na cara dele. Ele saiu de casa magoado por minha culpa.
Miguel virou o rosto para mim, incrédulo.
— Caio, como você pôde pensar isso? Você sabe quem é o Rafa. Ele ama você com todas as forças. Esse cara entrou na frente de uma bala por você! — a voz dele era firme, mas cheia de compaixão. — Vocês brigaram por besteira, e você precisa acreditar que ainda pode consertar.
Aquelas palavras doeram mais porque eram verdade. Eu respirei fundo, sentindo a garganta arder.
— Eu sei… eu sei, Miguel. Eu só quero pedir perdão. Eu só quero olhar nos olhos dele e dizer que ele é a minha vida.
Dona Eloísa, com a voz embargada, se inclinou para frente.
— Ele sabe, Caio. Ele sempre soube. Mas você vai poder dizer isso de novo. Deus não teria permitido que o encontrássemos se não fosse para dar uma nova chance.
As horas na estrada pareceram uma eternidade. Cada placa indicando a aproximação do hospital fazia meu coração acelerar ainda mais. Eu tentava imaginar como estaria Rafael. Tentei preparar minha mente para o pior — mas não havia como. A ideia dele sofrendo, sozinho, era insuportável.
Finalmente, vimos as luzes do hospital brilhando à distância, um farol no meio da madrugada. Estacionei de qualquer jeito e saltei do carro, correndo para a recepção com Miguel e Dona Eloísa logo atrás. O cheiro de antisséptico e o frio do ar-condicionado me atingiram como um soco.
Um policial nos aguardava na entrada, junto com um médico de jaleco branco.
— Vocês são familiares de Rafael Santos Montenegro? — perguntou o médico, a voz profissional, mas carregada de preocupação.
— Eu sou o companheiro dele — respondi quase sem ar. — Essa é a mãe dele. Ele está…?
— Ele está estável por enquanto — disse o médico. — Mas o quadro é grave. Ele apresenta desidratação severa, anemia profunda e uma infecção intestinal aguda, provavelmente causada por água e alimentos contaminados. Estamos hidratando e monitorando os sinais vitais. Ele está muito fraco, mas está vivo.
Dona Eloísa levou as mãos ao rosto, chorando com um alívio doloroso. Miguel segurou o ombro dela, e eu senti as pernas ameaçarem ceder.
— Posso ver ele? — perguntei, a voz quase quebrando.
— Em alguns minutos. Precisamos terminar alguns procedimentos e conversar com a polícia. — O médico respirou fundo antes de continuar. — A situação dele indica sequestro e maus-tratos. A polícia já foi acionada.
Foi nesse momento que o chão simplesmente sumiu sob meus pés. Senti uma onda de calor subir pelo corpo, seguida de um frio paralisante. A respiração ficou curta, rápida, impossível de controlar. O hospital girou ao meu redor como se eu estivesse em um carrossel fora de controle. As palavras do médico — grave, infecção, maus-tratos — ecoavam na minha cabeça como lâminas.
— Caio? — Miguel percebeu antes de todos. Ele agarrou meus ombros quando minhas pernas cederam. — Ei, respira comigo. Respira, cara.
Mas eu não conseguia. Era como se não houvesse ar suficiente no mundo. Meus olhos ardiam, e de repente as lágrimas começaram a descer sem que eu pudesse impedir. Um soluço violento escapou, seguido de outro. Minhas mãos tremiam tanto que precisei apoiar os cotovelos nos joelhos, tentando não desabar por completo.
— Eu… eu devia ter protegido ele… — minha voz saía entrecortada, quase um lamento. — Eu deixei ele sair… é culpa minha… é tudo culpa minha…
Miguel apertou meus ombros com mais força, a voz firme, quase um comando.
— Para. Olha pra mim. Você não tem culpa de nada, Caio. Ninguém tem. O culpado é quem fez isso com ele, entende? — Ele me puxou para um abraço, firme, como se quisesse impedir que eu despencasse de vez. — O Rafa tá vivo, cara. É isso que importa.
Dona Eloísa se aproximou com os olhos marejados, colocando uma das mãos em minha cabeça, como uma mãe que abençoa um filho.
— Filho, ouça o Miguel. Respira. O Rafael precisa de você forte agora. Ele precisa do seu amor, não da sua culpa.
Chorei ali, no meio do saguão, sem vergonha, sem barreiras. Era um choro que misturava medo, alívio, raiva e amor. Cada lágrima parecia carregar todo o desespero acumulado nos dias em que eu não sabia se o homem da minha vida estava vivo ou morto.
Aos poucos, guiado pela voz de Miguel que me pedia para inspirar fundo e soltar devagar, consegui puxar o ar de volta para dentro dos pulmões. O coração, que antes parecia um tambor descontrolado, começou a desacelerar. Eu ainda tremia, mas consegui erguer a cabeça.
— Eu só quero ver ele… — sussurrei, a voz rouca, quase irreconhecível.
Miguel passou a mão pelas minhas costas, me ajudando a ficar de pé.
— E você vai. Vamos juntos. Ele precisa ver que você tá aqui.
Naquele momento, percebi que não importava o que tinha acontecido, nem as palavras ditas antes da partida. Tudo o que importava era atravessar aquele corredor e segurar a mão de Rafael. Porque, mesmo quebrado, era o amor que me mantinha de pé.
Ainda era madrugada quando dois policiais entraram pelo corredor do hospital, acompanhados pelo som discreto de suas botas sobre o piso encerado. O relógio da recepção marcava quase quatro da manhã. Aquele ar frio, impregnado de antisséptico, parecia segurar o tempo. Eu estava sentado entre Miguel e Dona Eloísa, tentando manter a calma depois da crise de ansiedade, quando vi as fardas azuis surgindo pela porta de vidro. Meu coração acelerou de novo.
Os dois se aproximaram com passos firmes, mas olhares gentis. O mais alto, um inspetor de rosto sério e barba grisalha, apresentou-se primeiro:
— Boa madrugada. Sou o inspetor Vasconcelos e este é o agente Ribeiro. Precisamos conversar com vocês, é um procedimento padrão. — Ele olhou para mim e para Dona Eloísa, medindo nossas expressões. — Vocês são familiares de Rafael Santos Montenegro, correto?
Dona Eloísa assentiu, apertando com força a bolsa no colo.
— Eu sou a mãe dele. E este é Caio, o… — ela respirou fundo, sem hesitar — …o companheiro dele.
O inspetor inclinou a cabeça em um gesto respeitoso.
— Primeiramente, quero dizer que seu filho está seguro agora. Nós já abrimos um inquérito formal e vamos cuidar para que o responsável pague por isso. Mas precisamos ouvir alguns detalhes de vocês.
Antes que a conversa avançasse, percebi dois rostos se aproximando pelo corredor lateral: o casal de idosos que havia resgatado Rafael. O homem, de chapéu de feltro e mãos calejadas, caminhava com passos lentos, enquanto a mulher, baixinha e de cabelos brancos presos em um coque, carregava uma expressão de ternura que parecia aquecer aquele ambiente gelado.
O policial mais jovem os apresentou:
— Este é o senhor Anselmo e esta é dona Carmem — ele sorriu levemente — foram eles que encontraram Rafael na rodovia e o trouxeram para cá.
Meu corpo reagiu antes da minha mente. Levantei de um salto, sentindo um nó na garganta.
— Foram vocês… — minha voz falhou de emoção. Vocês salvaram a vida dele.
A senhora Carmem sorriu com delicadeza, tocando meu braço com carinho.
— Meu filho, nós só fizemos o que qualquer ser humano deveria fazer. Ele estava tão fraco… não tinha como deixar aquele rapaz ali.
Dona Eloísa também se levantou, os olhos já marejados. Ela segurou as mãos dos dois com uma força quase desesperada.
— Eu… eu não tenho palavras — ela disse, a voz embargada. — Vocês são anjos. Muito obrigada! Deus colocou vocês no caminho do meu filho. Se não fosse por vocês… — ela não conseguiu terminar.
Seu Anselmo, com um olhar sereno, balançou a cabeça.
— Ele estava quase desmaiando quando o encontramos. Conseguimos parar o carro a tempo. Ele mal conseguia falar, só repetia um nome… Caio. Foi o que nos fez entender que precisávamos correr.
Ao ouvir meu nome, senti o peito apertar e o coração doer de amor e culpa.
— Obrigado… — consegui dizer, com a voz embargada. — Vocês deram a chance de eu poder vê-lo de novo. Eu nunca vou esquecer o que fizeram.
Miguel, que estava ao meu lado, também apertou a mão de Anselmo com gratidão.
— Vocês são incríveis. Ele é meu amigo, praticamente meu irmão. Vocês salvaram a vida de uma família inteira.
O casal trocou um olhar humilde. Dona Heloísa enxugou discretamente uma lágrima.
— Só pedimos que cuidem dele agora. Ele precisa de muito amor depois do que passou.
Os policiais, que observavam a cena com respeito, pediram licença para iniciar algumas perguntas formais. Enquanto Miguel conversava com o agente Ribeiro, o inspetor Vasconcelos coletava informações de Dona Eloísa, anotando cada detalhe que pudesse ajudar na investigação.
Enquanto isso, fiquei mais alguns minutos com o casal. Queria gravar cada gesto, cada palavra. Era como se eu precisasse guardar para sempre o rosto das pessoas que me devolveram o Rafael.
— Por favor — pedi — deixem que eu tenha o contato de vocês. Quero que conheçam o Rafa quando ele melhorar. Ele precisa saber quem são os heróis que o salvaram.
Seu Anselmo sorriu, estendendo um cartão simples com um número rabiscado.
— Ficaremos felizes em vê-lo recuperado. Mas agora ele está em boas mãos.
Dona Heloísa completou, com a voz suave:
— E vocês, meu filho, cuidem dele. O resto Deus se encarrega.
Eu a abracei de repente, sentindo seu perfume leve misturado ao frio da madrugada. Ela correspondeu, apertando-me como uma avó que conforta o neto. Senti uma força silenciosa naquele gesto, como se ela passasse para mim um pouco da fé que me faltava.
Depois das perguntas, os policiais acompanharam o casal até a saída. Ficamos ali, eu, Dona Eloísa e Miguel, observando os dois se afastarem pelo corredor iluminado, suas silhuetas simples e cheias de significado. Eles olhavam para trás de vez em quando, acenando discretamente.
Dona Eloísa enxugou as lágrimas, a voz ainda trêmula.
— Eles apareceram como um milagre…
Assenti, sentindo uma onda de gratidão me invadir.
— Foram enviados por Deus. — Respirei fundo. —
Agora é a nossa vez de fazer o resto.
Enquanto as portas automáticas se fechavam atrás deles, um silêncio respeitoso tomou conta do corredor. O som distante dos monitores cardíacos ecoava lá dentro, lembrando-nos que Rafael, apesar de tudo, estava ali. Vivo. E, graças àqueles dois desconhecidos, ainda havia tempo para recomeçar.
