Do Paraíso ao Abismo 3.

Um conto erótico de Lukinha
Categoria: Heterossexual
Contém 5007 palavras
Data: 07/11/2025 15:01:45
Última revisão: 07/11/2025 15:17:42

Confesso que dei menos importância do que deveria ao comentário da Sara, aquela provocação sobre Ana parecer ter saído de um motel, e não de uma noite de trabalho. Não era a primeira vez que Ana chegava em casa daquele jeito. E, portanto, eu não achava que aquilo merecia preocupação.

Sara sempre fora assim: provocadora, implicante com qualquer mulher que se aproximasse de mim. Com Ana não seria diferente. Só que, daquela vez, sua implicância parecia ir além do habitual e com a chegada do meu aniversário, acabei esquecendo aquilo e me preocupando com o que realmente importava.

Jantares de aniversário na minha família sempre foram previsíveis: mesa grande, risadas altas, minha mãe servindo comida demais e meu pai repetindo as histórias de quando abriu a primeira empresa. Era quase um ritual e, de certa forma, reconfortante por ser previsível.

Mas, naquela noite, tudo parecia mais ensaiado, mais artificial, provavelmente para impressionar Ana. Ela só conhecia meus pais, mas, naquela noite, minhas irmãs, cunhados e sobrinhos também estariam presentes. No universo idealizado das redes sociais em que minhas irmãs viviam, qualquer comentário negativo, ainda mais vindo da nova namorada do irmão caçula, poderia arranhar a imagem impecável que cultivavam.

Ana chegou cedo. Antes de mim até, pois tivemos compromissos naquela tarde e ir separados era mais fácil para os dois. Ela trouxe um vinho chileno e uma sobremesa que fez minha mãe se derreter em elogios. Parecia saber exatamente o que dizer, quando sorrir e até o momento certo para elogiar o corte de cabelo da minha irmã mais velha que, a propósito, era quase impossível de agradar.

— Que mulher inteligente, Jorge. — Disse minha mãe, encantada. — Conversa bem, tem opinião… não fala só por falar.

Ana respondeu com aquele sorriso preciso, o mesmo que usava para conquistar qualquer ambiente.

— Ah, dona Helena, obrigada. O Jorge fala tanto da família que eu já me sentia parte antes mesmo de conhecer pessoalmente.

Meu pai, satisfeito, conversava com meus cunhados sobre mercado financeiro. Ana entrou no tema com naturalidade, citando índices, mencionando variações de juros e até comentou sobre a performance de uma empresa na qual ele pensava em investir no futuro. Tudo no tom certo. E eu ali, observando, meio orgulhoso, meio intrigado. Era como se ela tivesse estudado não só sobre mim, mas sobre todos à mesa.

Quando os sobrinhos começaram a brincar pela sala, Ana se juntou a eles. Ajudou um a montar um castelinho de blocos e fez minha mãe se emocionar de novo.

— Essa aí é pra casar, filho — sussurrou minha mãe, com aquele brilho nos olhos. — Mas, lógico, só depois de você terminar os estudos.

Em pouco tempo, já era chamada de tia pelos pestinhas.

Sorri, mas uma pontada de dúvida insistia em aparecer. Não porque algo estivesse errado, e sim porque tudo parecia certo demais.

Enquanto todos riam e brindavam a mim, eu via Ana deslizar entre os assuntos, adaptando-se a cada pessoa com uma naturalidade quase ensaiada. E, por mais que eu quisesse apenas aproveitar a noite, uma voz dentro de mim lembrava da Ana do Nordeste, a que ria alto, falava besteira e me fazia sentir em casa mesmo longe de tudo.

O jantar acabou sendo mais sobre ela do que sobre mim. O que, honestamente, não me incomodou. Detesto ser o centro das atenções.

Era hora do segundo tempo da noite: o bar com os amigos.

O lugar estava cheio, mas aconchegante. Gente bonita, música leve — uma mistura de pop e jazz — e aquele cheiro de chope gelado com fritura que sempre me lembrava as sextas da faculdade.

Rimos, brindamos, e tudo parecia simples. Ana estava à vontade, rindo das piadas, pedindo petiscos, se entrosando com o pessoal. Eu olhava para ela e sentia orgulho da forma como se encaixava em qualquer grupo, como se sempre tivesse pertencido ali.

Até que veio o comentário.

— Você parece feliz com a Ana, cara. — Disse Daniel, amigo de longa data, erguendo o copo. — E é bom ver isso. A gente sempre achou que você e a Sara iam acabar juntos.

O silêncio que se seguiu foi o suficiente para gelar o ambiente. Ana, que ainda ria, parou. E, por instinto, segurou meu braço e encostou a cabeça no meu ombro, marcando território.

— É… — Murmurou ela, num sorriso tenso, os olhos frios. — Surpreendente mesmo.

Daniel tentou consertar, balbuciou um “foi só um comentário”, mas o estrago já estava feito.

Carol, uma amiga mais antiga, tentou ajudar e piorou:

— Ainda mais… depois do passado de vocês…

Ela se calou no mesmo segundo, percebendo que falou mais do devia, mas já era tarde. Ana se virou para mim, o olhar cravado.

— Passado? Que passado, Jorge?

Tentei rir, minimizar.

— Nada demais, amor. A gente se conhece há muitos anos, só isso. Todo mundo tem suas histórias…

— Não foi isso que pareceu. — Ela rebateu, séria. — Que passado é esse que eu não sei?

Antes que eu encontrasse as palavras, Sara entrou na conversa. Recostou-se na cadeira, cruzou as pernas e, com aquela calma provocante que sempre usava para testar alguém, disse:

— Não é grande coisa. Eu e o Jorge fomos o primeiro um do outro… se é que você me entende.

O ar saiu do peito de Ana como se tivesse levado um soco. Sara continuou, impiedosa:

— Primeiro amor, primeiro beijo… primeiro aquilo. — Ela até revirou os olhos, debochada.

A mesa inteira ficou muda. Ana me olhou como se eu tivesse cometido um crime.

— Mas calma. — Continuou Sara, num tom quase doce. — A gente percebeu cedo que éramos melhores como amigos. A vida seguiu, cada um pro seu lado. Só que… — Ela fez uma pausa, olhando pra mim — …a gente se entende de um jeito que pouca gente entende, sabe? Meio que almas gêmeas.

Ela parecia se divertir com a tensão.

— Não romanticamente, claro. Mas em todo o resto. — O sorriso de Sara era afiado como uma navalha.

Ana se levantou devagar, os olhos marejados, o queixo rígido.

— Eu só… vou ao banheiro. — E saiu, tropeçando nas cadeiras.

Fiquei alguns segundos parado, encarando o copo vazio, tentando processar. Quando olhei para Sara, ela ainda me observava com aquele meio sorriso provocador, mas sua postura era receosa.

— Você passou do ponto. — Falei, um poucos decepcionado com minha amiga.

Ela deu de ombros.

— Só quis ver até onde o teatro dela ia.

— E conseguiu. Parabéns. Tá satisfeita? — Disse, me levantando.

Fui atrás de Ana, sentindo que a noite tinha acabado de mudar de tom e que, de algum jeito, o que havia por trás daquela provocação da Sara não era apenas ciúme. Era outra coisa. Talvez proteção. Ou um instinto que eu ainda não sabia nomear.

Bati na porta, chamei, mas Ana não me respondeu. Bati mais uma, insisti.

— Ana... abre, por favor. A gente precisa conversar.

Silêncio. Só o som abafado da música vindo do bar.

— Ana, eu juro, não foi nada demais. A Sara só... exagerou, como sempre faz.

Finalmente, ouvi sua voz. Baixa, mas cortante:

— Ela mentiu?

Fechei os olhos por um instante.

— Abre a porta, por favor. Não quero conversar assim, através de uma parede.

Ouvi o som do trinco. A porta se abriu devagar, e ela apareceu diante de mim. O olhar frio, batom um pouco borrado.

— Então fala, Jorge. Olhando pra mim.

Segurei sua mão e a conduzi para um canto mais vazio, o jardim do bar, na parte traseira. Acho que era uma área para fumantes.

— Vem, aqui a gente pode conversar com calma.

Ela deixou, mas sem soltar meu braço. Um garçom passou, e eu pedi:

— Uma água, por favor.

Quando ele se afastou, Ana cruzou os braços.

— Então?

Respirei fundo.

— Eu e a Sara... a gente cresceu junto. Nossos pais eram amigos. Eu era aquele garoto tímido, meio bobo, e ela sempre foi mais solta, curiosa, meio doida às vezes. Até um pouco safada…

Ana me olhava sem piscar.

— E?

— E com o tempo, a amizade virou uma coisa confusa. Adolescência, hormônio, sabe? A gente se gostava, ou achava que sim.

— Então vocês ficaram.

— Sim. — Confirmei, disposto a contar tudo de uma vez. — Foi durante uma viagem de férias. Um beijo, depois outro... e pronto. As coisas aconteceram. Foi natural, Ela queria, estava curiosa… eu também. Confiávamos um no outro, éramos os únicos virgens da galera…

Ela continuou imóvel. Só os dedos tremiam, apertando o copo de água que eu tinha entregado para ela.

— “As coisas aconteceram”? É assim que você chama?

— Eu não quero mentir pra você. — Falei, tentando manter a calma. — Foi a primeira vez dos dois. Fazia sentido na época.

Ela soltou um riso curto, sem humor.

— Que lindo. Um pacto de adolescência.

— Não foi assim, Ana. A gente namorou por uns meses depois, mas logo percebeu que não era o que queríamos. Eu e a Sara sempre fomos mais irmãos do que qualquer outra coisa.

— Irmãos? — Ela arqueou a sobrancelha. — Porque irmãos se beijam e dormem juntos o tempo todo, né?

— Você tá distorcendo o que eu tô dizendo.

— Tô tentando entender. — Ela rebateu, o olhar gelado. — Porque você disse que me provocou, passou do ponto. Mas, no fundo, ela só contou algo que você nunca me contou.

Passei a mão pelo rosto, exasperado.

— Eu não escondi por mal. Era um assunto antigo, bobo. Não fazia sentido trazer isso agora.

— “Antigo” pra você. — Ela me interrompeu. — Mas pra mim é só mais uma história da sua vida que eu não conhecia. É que, ao não saber, ela pode usar para me atingir.

Por um momento, fiquei em silêncio, apenas olhando para ela.

— Eu te amo, Ana. Só isso importa pra mim.

Ela desviou o olhar, apertando o copo entre os dedos.

— É. Só que o amor às vezes vem com muitas entrelinhas, Jorge.

O silêncio entre nós pesou. A música do bar parecia distante.

— Vamos embora? — Sugeri. — A gente conversa melhor em casa.

Ela me olhou por alguns segundos antes de se levantar.

— Melhor mesmo. Até porque, pelo visto, tem muita história sua que eu ainda não conheço.

Ela saiu na frente, me deixando com a sensação de que a distância entre nós tinha crescido, mesmo estando lado a lado.

Respirei fundo antes de voltar à mesa para me despedir. Os amigos, percebendo o clima, tentaram disfarçar o constrangimento com sorrisos sem graça e brindes tímidos.

— A gente tá indo, pessoal. — Eu disse, tentando soar casual. — Obrigado pela presença de todos.

Ana apenas se virou, falando sem realmente encarar ninguém.

— Foi ótimo ver vocês — Seu sorriso era frio demais para ser sincero.

Ela cumprimentou um por um, menos a Sara. Que, talvez incomodada por ver Ana tão no controle, não conseguiu se conter.

— Você vai embora só por causa disso? — Ela disse, alto o bastante para o bar inteiro ouvir. — Pelo jeito, Ana era virgem, casta, quando vocês se conheceram, e você mentiu para ela, lhe negando sua pureza.

Daniel e Carol tentaram impedir Sara, mas ela não parou.

— Agora, só porque está com ela, precisa negar o seu passado para não ofender a princesa?

A tensão explodiu. As conversas ao redor cessaram, e até o garçom hesitou.

— Já deu, Sara. — Falei, firme, surpreso com minha própria irritação. — Você não precisa ser tão babaca.

Ela arregalou os olhos, sentindo o golpe.

— Babaca? — Repetiu, quase rindo, mas o riso morreu antes de nascer. — O que tá acontecendo com você, Jorge?

Não respondi. Só olhei em volta, constrangido. Ela continuou, agora sem filtro, a voz trêmula entre raiva e mágoa:

— Tá enfeitiçado, é isso? Cego? Cadê o cara que eu conhecia? O Jorge que sonhava, que ria, que tinha vontade própria? — Ela balançou a cabeça, descrente. — Porque esse aí... parece um boneco. Um projeto de marionete. Um homem que não pode nem respirar sem pedir permissão.

Ana, ao meu lado, manteve o rosto impassível, mas os olhos brilhavam com algo entre orgulho e triunfo.

Sara deu um último gole no vinho, virou-se para mim e disse, com a voz fraca:

— Espero que caia logo na real. Ninguém é tão perfeito assim.

O silêncio que veio depois foi absoluto.

— Vamos, Ana. — Falei e saí, sem olhar para trás.

Enquanto atravessávamos o salão, senti o peso das palavras dela pairando. E, por mais que eu quisesse ignorar, algo ficou ecoando, uma parte de mim sabia que não era só despeito.

O motor roncava baixo, e o som dos pneus no asfalto preenchia o silêncio do carro. As luzes da cidade passavam pelas janelas como flashes, iluminando o rosto de Ana, sereno e relaxado.

Foi ela quem quebrou o silêncio:

— Me desculpa, amor. — Ela disse num tom suave, quase infantil. — Eu não queria causar uma cena na frente de todo mundo. É que... quando ouvi a Sara falando da história de vocês... — Ela suspirou, olhando pela janela. — Eu me senti pequena, desrespeitada.

Continuei com os olhos na estrada.

— Eu sei que vocês têm uma história bonita — Continuou ela, a voz embargada. — E que eu não devia ter me metido. Mas foi mais forte do que eu. Quando ela começou a falar, e eu percebi o jeito como te olhava... — Ana mordeu o lábio. — Eu entendi.

— Entendeu o quê? — Perguntei, curioso, sem tirar os olhos do retrovisor.

— Ela é apaixonada por você. — Respondeu Ana, num tom que mais parecia me testar. — Talvez nem ela perceba, mas eu percebi. Mulher sabe dessas coisas. O sexto sentido da gente não falha. Eu já sentia isso faz tempo.

Apertei o volante, mas permaneci calado. Ela virou o rosto, tentando encontrar meus olhos no reflexo do vidro.

— Eu devia ter agido melhor. Devia ter rido da situação. Mas eu te amo tanto... — Ela encostou a mão no meu braço, numa carícia suave. — E quando sinto que alguém pode te tirar de mim, eu me perco.

Ficamos alguns segundos em silêncio. Então, suspirei fundo.

— Você não tem culpa de nada. — Falei, sem emoção. — A Sara exagerou. Forçou uma situação que não precisava. Quem te deve desculpas sou eu.

— Você? — Ela fingiu surpresa.

— Sim. Eu devia ter previsto. Não devia ter te deixado desconfortável daquele jeito.

Ana soltou um suspiro leve, satisfeito, e repousou a cabeça no meu ombro.

— Eu só quero que a gente fique bem, amor. Só isso.

Assenti, sem responder, e o carro seguiu pela avenida, cortando a madrugada calma. Ela fechou os olhos, tranquila, como se o mundo tivesse voltado ao lugar.

Eu, no entanto, mesmo ali, dirigindo, me sentia longe, tentando entender em que momento as minhas certezas começaram a se dissolver.

Já em casa, depois do banho, vesti uma calça de moletom e me deitei ao lado dela. Ana dormia profundamente, o rosto sereno, a respiração leve, como se nada tivesse acontecido naquela noite.

Peguei o celular na mesa de cabeceira para colocar o alarme e a tela acendeu com uma notificação. Era da Sara.

“Me excedi hoje. Passei dos limites. Desculpa por ter falado daquele jeito. Foi o ciúme falando mais alto e talvez o medo de te perder de vez. Não quero ser motivo de briga entre você e ela. Boa noite, Jorge. Mais uma vez, peço desculpas”.

Fiquei olhando para a tela por alguns segundos. As palavras ecoaram junto com os flashes da discussão, os olhares, as insinuações, o desconforto de Ana, e o meu próprio cansaço com tudo aquilo. Suspirei fundo, passei a mão no rosto e olhei para Ana. Ela se mexeu levemente, virando de lado, o braço repousando sobre o meu peito, um lembrete silencioso de quem estava ali, escolhendo ficar.

Depois de longos minutos, destravei o celular e digitei:

“Eu te desculpo, Sara. Sei que só quer o melhor para mim. Mas acho melhor a gente ficar um tempo sem se ver e sem se falar. Quero que as coisas com a Ana deem certo, e com essa implicância entre vocês, não é justo com nenhuma das duas. Espero que você me entenda”.

A resposta veio quase imediata, direta, sem rodeios.

“Se é isso que você quer, eu respeito. Mesmo achando que você está escolhendo o lado errado. Não vou te chantagear nem usar o clichê do “ela ou eu”. Só saiba que eu estarei aqui, como sempre estive... esperando o meu amigo cair na real. Te desejo o melhor, Jorge”.

Fiquei olhando a última mensagem, sentindo o peso das entrelinhas. Apaguei a tela, coloquei o celular virado para baixo e me deitei. Ana se aconchegou mais perto, e eu, com os olhos abertos no escuro, pensei no quanto aquele “ te desejo o melhor, Jorge” soava mais como um “acorda pra vida, Jorge”.

Com muita dificuldade, consegui dormir algumas horas.

A manhã seguinte começou silenciosa. O sol entrava tímido pelas frestas da cortina, riscando o lençol ainda com o cheiro do perfume de Ana. Me levantei e fui preparar o café. Quando apareci na porta do quarto, já vestido para sair, Ela se arrumava diante do espelho, ajeitando o cabelo e passando um batom discreto,

— Ana... a gente precisa conversar um minuto, antes de você ir. — Falei, me apoiando no batente.

Ela se virou com um meio sorriso.

— Claro. Aconteceu alguma coisa?

Respirei fundo.

— Fiquei pensando em algumas coisas... em você, no seu trabalho, nesses horários malucos. — Cocei a nuca, tentando achar o tom certo. — Sabe, as pessoas falam. E depois do que aconteceu aquela noite, com a Sara aqui, quando você chegou mais cedo... ela acabou dizendo umas besteiras.

Ana cruzou os braços, o olhar se estreitando.

— Que tipo de besteiras?

— Coisas que me irritaram. — Respondi, desviando o olhar. — Que parecia que você não vinha do trabalho, mas de outro lugar. De um motel, por exemplo.

Ana deu uma risada seca, incrédula.

— E você achou que valia a pena repetir isso pra mim? Me lembrar do desrespeito dela? — Ana perguntou, num tom calmo, mas gelado.

— Eu não tô dizendo que acredito nela. — Me apressei em explicar. — Só que me preocupo. Você sabe como as pessoas são, e eu não quero que te tratem com desrespeito, que comecem a te julgar.

Ela se aproximou, parando bem em frente a mim.

— Eu sei cuidar de mim, Jorge. E também sei o tipo de ambiente em que trabalho. É cansativo, às vezes pesado, mas eu gosto do que faço. Gosto de não ter rotina, de estar sempre em lugares diferentes, com gente diferente. Isso me faz bem.

— Eu entendo. — Respondi num tom mais baixo, sentindo o muro se erguer diante de mim, me afastando de Ana. — Talvez... talvez o meu pai pudesse te ajudar a encontrar algo melhor. Um horário mais estável, um ambiente mais tranquilo. Até um salário maior, pra te dar mais liberdade financeira, entende?

Ela me olhou por alguns segundos, avaliando minha proposta.

— Eu não quero isso, Jorge. O que eu tenho já me basta. E eu não quero depender do seu pai pra conseguir nada. Não quero que pensem que sou uma interesseira.

Assenti, resignado, os ombros relaxando.

— Tá bom... — Me rendi. Não tinha porquê insistir. — Eu só queria ajudar.

Ela tocou de leve o meu braço, num gesto delicado, mas com aquele tom de encerramento.

— Eu sei. Mas eu tô bem do meu jeito.

Forcei um sorriso, aceitando o fim da conversa e o resultado.

— Tudo bem. Então deixa eu te dar uma boa notícia, pra variar. — Mudei logo de assunto, para derrubar de vez aquele muro imaginário entre nós.

Ela arqueou a sobrancelha, curiosa.

— Que notícia?

— O primeiro ano da faculdade tá acabando, e a partir da próxima semana eu vou mudar para o curso noturno. — Fiz uma pausa, observando a reação dela. — Meu pai quer que eu comece a ir para a empresa, para aprender como as coisas funcionam. Disse que tá na hora de eu assumir responsabilidades, já que nenhuma das minhas irmãs tem interesse em cuidar do legado da família.

Ana abriu um sorriso que, pela primeira vez em dias, pareceu genuíno.

— Então agora é oficial... o herdeiro vai assumir o império da família?

Ri, meio sem graça.

— Calma, ainda tem muito chão até lá. Mas quem sabe, em alguns anos…

Ela se aproximou, me abraçando carinhosamente.

— Fico feliz por você, amor, de verdade. Acho que vai ser bom para você.

Retribuí o abraço, mas fiquei alguns segundos em silêncio, olhando por cima do ombro dela, com aquele mesmo olhar distante de quem carrega dúvidas que não sabe se quer respostas.

Os meses seguintes passaram como um sopro. Quando dei por mim, já estava preso numa rotina que me engolia por completo: empresa das oito às quatro da tarde, faculdade das seis às onze da noite. O pouco intervalo entre um e outro virou o meu pouco tempo de qualidade. E esse tempo tinha nome: Ana.

No começo, achei que minhas preocupações sobre o trabalho dela tivessem ficado no passado, mas Ana me surpreendeu. Em vez de discutir ou se justificar, ela escolheu agir. E o que veio depois foi um verdadeiro bombardeio de amor.

Todos os dias, quando eu chegava do escritório, exausto, encontrava a mesa arrumada e um lanche caprichado sempre pronto. Ana dizia que eu precisava “alimentar o cérebro sem pesar o corpo”. Às vezes, me puxava para o sofá, dizia que um cochilo de vinte minutos era tudo que eu precisava para recarregar. E eu cedia.

Era sempre assim: ela me fazia deitar, se encaixava atrás de mim, o braço por cima, o corpo colado no meu. Eu sentia o seu calor, o cheiro doce do cabelo, e mesmo sem dormir, descansava. Às vezes, ela me fazia massagem nos ombros; outras, apenas passava os dedos no meu cabelo, em silêncio. E aquilo bastava. À noite, saíamos quase juntos. ela para o trabalho, eu para a faculdade.

Mas, pouco a pouco, ela começou a chegar cada vez mais cedo. Às vezes, eu mal tinha tempo de estacionar o carro e ela já estava entrando em casa, me recebendo com aquele sorriso que desarmava qualquer resto de cansaço.

— Cheguei quase junto com você. — Ela dizia, tirando os sapatos e se jogando no sofá.

— Quase. — Eu respondia, rindo. — Tá virando competição?

— Se for pra ganhar um beijo de prêmio, eu aceito.

Esses momentos viraram o combustível dos meus dias. A gente fazia o jantar juntos, coisa rápida, ou pedia algo leve, e depois... o tempo simplesmente sumia. Fazíamos amor, conversávamos um pouco e dormíamos abraçados, fazendo juras de amor eterno.

Ana cuidava do apartamento, da minha rotina, até da minha alimentação. Às vezes, aparecia no escritório no meio do dia com uma marmita que ela mesma preparava.

— Tô te salvando do fast food. — Dizia, me entregando o pote com um sorriso.

E era impossível não sorrir de volta. Quanto mais o tempo passava, mais eu sentia que o amor entre nós crescia. Não era só paixão ou desejo, era parceria, cuidado, presença. Ana se tornou a engrenagem que fazia tudo funcionar na minha vida.

Às vezes, quando eu a via dormindo, encolhida ao meu lado, pensava que talvez fosse isso o que chamavam de sorte.

E assim, vários meses passaram.

{…}

Aquele final de semana parecia perfeito demais para ser verdade. A serra no Espírito Santo era um convite à paz. O ar fresco, o verde que se espalhava por todos os lados, o som distante da cachoeira… tudo era perfeito.

Depois de horas de trilha naquela manhã, eu e Ana decidimos almoçar no restaurante do hotel, um lugar rústico, aconchegante, com mesas de madeira e janelas grandes que deixavam a brisa entrar.

Ana parecia leve, sorrindo à toa, brincando com o guardanapo enquanto esperávamos o pedido. Mas tudo mudou em questão de segundos.

— Ana Flávia! Prima, é você?! — A voz estridente veio das mesas do fundo, animada e surpresa.

Vi quando o sorriso de Ana se desfez. Ela congelou, como se o nome tivesse acertado um ponto sensível. Ao se virar, um rapaz se aproximava: jovem, afeminado, rebolando ao caminhar, traços parecidos com os dela, olhar gentil. Enfim, uma energia intensa demais para passar despercebida.

— Mulher, você sumiu! — Disse ele, abrindo os braços e a envolvendo num abraço entusiasmado. — Por onde tem andado? Imagino que não tá sabendo que sua irmã voltou do Nordeste, né?

A reação de Ana foi quase imperceptível, mas eu percebi. Os ombros tensos, o sorriso forçado.

— Mulher, que bofe bonito é esse que você arrumou? — O rapaz virou-se para mim, sorrindo educadamente. — Agora entendi por que tava sumida... escondendo a carne nova da gente, é?

Retribuí seu cumprimento com um aceno educado, mesmo notando a irritação visível de Ana.

Em segundos, ela se levantou, pegou o rapaz pelo braço e o arrastou para fora do restaurante. Pela janela, vi os dois conversando, ou melhor, discutindo. Ela gesticulava muito, enquanto ele, indignado, tentava se soltar.

A cena durou poucos minutos, mas o suficiente pra me deixar desconcertado. Antes de virar as costas e sair em disparada, o rapaz gritou algo que, mesmo à distância, deu pra entender perfeitamente. Não precisava ser perito em leitura labial para captar as palavras: “Vai tomar no cu, sua vadia.”

Pouco depois, ela voltou, o rosto ainda corado, mas já tentando retomar o controle.

— O que foi isso? — Perguntei assim que ela se sentou. — É seu primo?

Ana pareceu pega de surpresa pela objetividade da pergunta, mas respondeu rápido:

— É, sim.

Ela fez uma pausa curta e completou:

— Mas fica longe dele. Ele não presta. Vive de pedir dinheiro pra todo mundo. É um verdadeiro pesadelo.

Assenti, mas a curiosidade me mordeu por dentro.

— Então... sua irmã voltou do Nordeste? — Perguntei com calma, tentando soar casual. — Não sabia que você tinha uma.

Ana respondeu ainda mais rápido:

— Não nos damos bem. Ela é interesseira e invejosa. Não nos falamos há anos.

A mudança de tom foi instantânea. Cansada das perguntas, ela pegou o guia turístico da mesa e abriu na página marcada com o dedo, tentando mudar de assunto.

— Olha aqui — Disse, com o mesmo entusiasmo de antes. — À tarde tem a trilha pela mata atlântica. Dizem que é linda.

Forjei um sorriso.

— É a mais recomendada daqui.

E, sem insistir, deixei o assunto morrer, ainda que, por dentro, algo tivesse começado a acordar.

A trilha começava logo atrás do hotel. Um caminho cercado de mata atlântica, o som dos pássaros misturado ao barulho de água correndo entre as pedras. O guia tinha dito que o percurso era leve, mas o peso que eu sentia não vinha do cansaço. Desde o almoço, o silêncio entre nós era espesso, e só o som do riacho quebrava o ar carregado.

Ana ia à frente, passos firmes, fingindo apreciar o verde, mas sem realmente olhar ao redor. Eu percebi. Havia uma tensão ali. Sutil, mas constante.

— Você não vai falar nada sobre o que aconteceu? — Perguntei, tentando soar natural.

— Sobre o quê? — Ela respondeu sem olhar para trás.

— Seu primo. A discussão…

Ela bufou, pisando mais forte no chão úmido.

— Já falei, Jorge. Ele é um problema ambulante. Melhor nem dar assunto.

Acelerei o passo para ficar ao lado dela.

— Eu entendo. Mas se a sua família é tão complicada assim, acho que eu devia saber um pouco mais. Para estar preparado, caso algo parecido aconteça de novo.

Ela parou de andar. Virou-se devagar, os olhos brilhando com uma mistura de irritação e algo mais difícil de definir.

— Por que esse interesse todo agora? Vai querer conhecer todo mundo também?

Tentei manter o tom calmo.

— Não é isso. Só quero entender. Você fala pouco sobre eles. E hoje… o jeito que aquele cara te chamou de “Ana Flávia”... me fez pensar que tem mais coisa nessa história.

Ela desviou o olhar, respirou fundo e voltou a andar, mais devagar.

— Eles nunca gostaram de mim. — Disse, num tom contido. — Desde pequena, eu era a filha errada. A minha irmã sempre foi o modelo: estudiosa, certinha, educada… a queridinha. Eu? A rebelde. A que falava o que pensava. A que não aceitava ordens.

Ela parou por um instante, encarando o chão coberto de folhas.

— Meus pais sempre faziam questão de deixar claro quem era a favorita. Presentes, elogios, viagens... tudo era pra ela. Pra mim, sobrava o resto.

Ouvi em silêncio. Parte de mim se compadecia, mas outra parte sentia que havia algo ensaiado demais naquelas palavras, um roteiro muito bem ajustado.

— E quando entrei na faculdade, achei que finalmente ia me libertar. Mas foi só dizer que não ia estudar o que eles queriam que… pronto. Depois de poucos meses cortaram a ajuda.

Ela me olhou, esperando reação. Acostumado à frieza metódica da minha própria família, eu tentei imaginar pais sendo tão cruéis com uma filha. Não consegui.

— Mas e a sua irmã? — Perguntei, cuidadoso. — Vocês não se falam mesmo?

— Nem quero. — Ela respondeu rápido demais. — Para mim, ela morreu.

A frase ecoou no meio da mata, forte e amarga. Engoli em seco, sem saber se era raiva, dor... ou outra coisa.

Triste pela vida que Ana levou ou, pelo menos, pela versão que ela contou, decidi não tocar mais no assunto. Em vez disso, tentei animá-la. Peguei o celular, fiz graça, tirei uma selfie, e logo ela se deixou contagiar.

Rimos, tiramos fotos de casal com o horizonte azul ao fundo, o mar de montanhas e o vento bagunçando o cabelo dela. Por algumas horas, parecia que o dia tinha voltado a ser leve, e o episódio do almoço nunca tivesse existido.

A trilha era linda: riachos cortando o caminho, o cheiro de terra úmida, o sol atravessando as folhas num tom dourado. Quando o cansaço bateu, Ana encostou a cabeça no meu ombro e suspirou, dizendo que aquele momento compensava qualquer coisa. Envolvido por seu jeito doce, preferi a paz à minha curiosidade insistente.

Já de volta ao hotel, com o céu escurecendo, encontramos o primo dela na recepção, fazendo o check-out. Ele segurava as malas e o celular, conversando com o atendente, até que nos viu. O sorriso que surgiu em seu rosto não era de alegria, era de escárnio.

Ele pagou a conta, pegou a chave do carro e, ao passar por nós, parou por um segundo diante de mim.

— Cuidado com essa vadia. — Disse, com um sorriso venenoso. — Ela não vale a roupa que veste. Se eu fosse você, ficava bem longe.

E saiu, deixando o rastro daquelas palavras pairando no ar como fumaça, difícil de dissipar.

Continua…

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Comentários

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Tô pensando que a Ana Flávia tem uma irmã gêmea e realmente quem o Jorge conheceu no nordeste não é a que convive com ele kkkk

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Caso essa teoria de gêmeas seja o caso, onde a gêmea má conseguiu tantas informações, que aliás nem a gêmea boa teria tido acesso a tantas informação, mas em todo caso chegamos a uma encruzilhada, é navalha de Occam ou a CIA se juntou a algum antigo Araponga do SNI, para tentar desvendar como opera uma rede internacional de contra informação, formada por hackers mercenários, que interagem com várias fintechs de propriedade do pai do Jorge, essas interações se dão através de fintechs fantasmas utilizando uma infinita gama de Tumblers lavando uma quantidade incomensurável de criptoativos, mas recebendo como pagamento, não só dinheiro, como também o principal ativo, informações privilegiadas da economia e política de vários governos, desde super potências até republiquetas de banana, afinal tem corrupção nos governos em todos os escalões e em todos os continentes, posteriormente vendendo essas informações ao governo que possa se interessar pelo preço exorbitante que cada determinada informação "top secret" vale. Kkkkkkkkkkkk viajei de novo kkkkkk

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Acho muito curioso como a Ana se comporta quando as coisas começam a sair do controle dela. Ela precisa isolar o Jorge, porque ele sozinho com ela, é fácil dela devorar. Agora se alguém a enfrenta ou ameaça, ela já fica meio perdida.

Ansioso pra ver a máscara dela cair de vez e a verdade se fazer

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Possivelmente o protagonista mais bobo e lerdo da historia entre todos os contos do Lukinha. Torcendo pra ele se dar mal tamanha ''sonsice''.

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Esse conto está muito parecido com um dos seus contos anteriores "Obsessão", os protagonistas são praticamente idênticos até aqui.

A manipuladora com desvio de caráter e o bonzinho traído de boa família.

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A semelhança termina aí. Para existir uma manipuladora, é preciso existir um bonzinho, de coração puro.

Tem uma máxima carioca que diz: todo dia, um malandro e um mané saem de casa, quando eles se encontram, dá negócio.

Na próxima parte o clima esquenta, o conto acelera, e já vamos para os finalmentes.

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Não é só de carioca essa máxima aí não kkkkk, uns minutos atrás vi postarem no Facebook um tongo que levou chapéu de 70 picanhes por conta de joguinho mobile.

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Bom todo mundo está avisando, ele deveria verificar para não chorar depois. Já ancioso pela continuação, 3 esteelas.

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