Diário de Marco Aelius Varro - Prólogo e Primeiro capítulo

Um conto erótico de Leandro Gomes
Categoria: Homossexual
Contém 1028 palavras
Data: 23/11/2025 23:53:19

Diário de Marco Aelius Varro

Tradução e notas de L. M. Cassius, Universidade de Roma________________________________________

Prólogo do Tradutor

Encontrei o códice em 1956, entre fragmentos de ossos e bronze, sob o que restava das muralhas da XII Legião, na Germânia Inferior. Não deveria tê-lo aberto.

O volume, de couro enegrecido e surpreendentemente intacto, estava preso por uma tira gasta e selado por um anel de ouro. O selo trazia um símbolo — metade sol, metade serpente — que não consta em nenhum registro conhecido da Roma imperial. Desde aquele dia, carrego a sensação de que algo me observa sempre que tento decifrá-lo.

O texto, em latim rude, porém refinado, é atribuído a Marco Aelius Varro, centurião romano do século I. Mas as palavras — ou melhor, o que vive por trás delas — pertencem a uma natureza que me escapa. As páginas misturam devoção e desejo, sangue e fé, como se o autor houvesse se deitado com o próprio mistério.

Traduzo-as com o rigor que minha profissão exige, ainda que a cada linha o ar em meu escritório pareça rarefeito, e o espelho diante da escrivaninha reflita algo que não se move comigo.

Não me peçam conclusões.

Traduzo, apenas — e temo que, ao fazê-lo, perpetue aquilo que Varro iniciou.

L. M. Cassius

Roma, 1978

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Diário de Marco Aelius Varro, Centurião da XII Legião

Há noites em que a guerra cala — e nesse silêncio, o medo fala mais alto do que as espadas. Foi na noite de 15 de abril, do Anno Domini XLII, sob um céu sem estrelas, entre as colinas úmidas da fronteira, que a morte quase me encontrou.

Patrulhava com outros cinco soldados próximo da fronteira do acampamento. O nevoeiro vinha do norte, espesso como fumo de sacrifício, e o som dos passos se perdia logo adiante. Não percebemos quando nos cercaram — sombras ágeis, vindas da mata, homens bárbaros, grandes e fortes. O primeiro golpe veio pelas costas; o segundo, da escuridão. Caímos como bois no matadouro. Dois dos meus companheiros caíram mortos antes que eu pudesse empunhar a espada; outro, talvez poupado pelos deuses, conseguiu fugir, e os outros dois caíram desmaiados ao meu lado, cercados pelos bárbaros. Recordo-me apenas o brilho das lâminas, o cheiro do sangue quente, e o frio da terra em minha boca.

E foi então que, caído ao solo, eu o vi. Entre as sombras, surgiu uma figura solitária — alta, forte, envolta em um manto escuro, o rosto quase oculto. Não sei como atravessou o campo sem ruído, nem por que os bárbaros, ao vê-lo, recuaram como quem reconhece algo mais terrível que a própria guerra. Ouvi sua voz — aliás, ela pareceu ecoar dentro de mim, como se as palavras fossem pronunciadas através do meu próprio peito. Era calma, firme, em um latim culto, quase cerimonial:

“Não tenhas medo. Apenas aquiete-se e observe a morte recuar.”

O que se seguiu não pertence ao mundo dos mortais. Vi-o tomar um dos bárbaros pela garganta com uma única mão e erguê-lo do chão sem esforço algum. A lâmina do inimigo caiu antes que ele mesmo caísse. Outro tentou atacá-lo por trás, mas o estranho girou com uma velocidade impossível e quebrou-lhe o pescoço num estalo seco que ecoou como madeira partindo. O terceiro tentou fugir, mas o desconhecido o alcançou em poucos passos e o lançou violentamente contra uma pedra, onde seu crânio partiu, ficando ali como um boneco de pano. Tudo isso ocorreu em segundos. Meu coração, porém, levou minutos para voltar a bater.

Quando eliminou o último deles, o estranho voltou-se para mim. Seu rosto era pálido como mármore sob a luz tênue, mas nenhum arranhão, nenhum tremor, nenhuma gota de sangue marcavam sua pele. Respirava com calma absoluta — como se tivesse acabado de caminhar, não de matar. Ficamos apenas nós dois — eu e aquele desconhecido. A lua, enfim, rompeu o nevoeiro, e pude vê-lo melhor. Tinha a pele pálida, e olhos avermelhados que pareciam brilhar de dentro para fora, sem luz que os refletisse. Havia neles algo que me fazia lembrar os de um animal — mas não de fera: de criatura antiga, serena, que observa o tempo passar e não se importa. Seu corpo era forte, com músculos que pareciam ter sido esculpidos como as estátuas dos deuses. Ele tinha algo de divino e profano ao mesmo tempo — como se os deuses tivessem moldado sua carne em um instante de capricho... e de pecado.

Ainda trêmulo, agradeci-lhe. Ele sorriu, mas seu sorriso não era humano: havia ali mais piedade do que orgulho. Disse-me apenas:

“Não era a tua hora, Marco Aelius Varro.”

Meu sangue gelou. Não me lembrava de ter dito meu nome. Não, eu não disse meu nome a ele. Antes que eu pudesse perguntar quem era, ele se afastou — e o nevoeiro, obediente, pareceu abrir-lhe caminho.

“Quem és?” — consegui perguntar, embora a voz mal me saísse.

Ele inclinou a cabeça, como se considerasse a pergunta e, por alguma razão, a achasse irrelevante.

“Voltaremos a nos ver.”

Ele aproximou-se dos meus companheiros, que neste instante já estavam acordados, e olhou em seus olhos e, sem que eu percebesse como, virou-se e desapareceu. Não correu. Não saltou. Simplesmente deixou de estar ali, absorvido pelas sombras como se fosse parte delas. Fiquei sozinho com meus companheiros, já conscientes, e os corpos dos inimigos. Ao redor, apenas o farfalhar das folhas, como se a floresta testemunhasse tudo em silêncio reverente.

Horas depois, já amanhecendo, o soldado que conseguiu escapar chegou junto com o centurião e nos encontraram ainda desnorteados. O centurião perguntou-me o que aconteceu, mas minhas palavras não faziam sentido em seus ouvidos. Foi então que meus dois companheiros, me interromperam, dizendo que eu sozinho tinha eliminado os bárbaros. Não mencionaram o estranho em nenhum momento. Eu não entendi porque disseram isso, mas por algum motivo, eu não desmenti.

Às vezes, penso que sonhei. Mas no cabo da minha espada havia sangue, e na terra, os corpos jaziam frios. Não sei quem era aquele homem — ou o que era. Mas desde aquela noite, o som de sua voz não me abandonou. E temo que, de alguma forma, ele tenha levado algo de mim quando me salvou.

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