Os bruxos reais aguardavam do lado de fora, no corredor, Eliandrin, Telefaithin, e Cortivinus, envergavam os mantos sangrados, banhados pelo sangue de inocentes, capturados nas incursões reais ao longo dos séculos. Eliandrin estremecia diante dessa realidade, e sua nuca transpirava ao pensar nas correntes de energia rediviva que circulava por todo seu corpo. Era como estar nu diante de uma multidão, o rei rugiu do outro lado das portas, Telefaithin cofiou a longa barba com as longas unhas negras, consultou os colegas, e suspirou impotente. Com a doença do rei, os magos foram chamados às pressas, e os redivivos precisavam manter distância, uma distância perigosa calculou Cortivinus sentindo entre os dedos, o pingente pendente sobre o manto. Os magos do outro lado da porte, eram conselheiros hábeis como eles, e o jovem príncipe, herdeiro do rei moribundo, amava a rainha, era devoto da esposa, e temia a união ao Elo.
Os três bruxos, teriam que tecer uma trama muito bem urdida, para levar o novo rei, a nova cabeça coroada, para a decisão mais acertada.
Eliandrin pensou nas aves de rapina cercando o cheiro de carne apodrecendo. Era o mais próximo de Potêntis, o próximo rei, conviveu com ele e brincou por aqueles corredores de pedra, trocaram confidências, e sabia do quanto seu amigo amava Gabine de Selvia, a princesa de todo o reino, a futura rainha. Mas sabia igualmente quanta severidade abundava na jovem, severidade que faltava em Potêntis, treinado desde jovenzinho, nas artes da retórica, da palavra, treinado em manipulação, faltava a ele o toque de crueldade necessário para dominar as próprias vontades e governar como o poder exigia.
Telefaithin ergueu uma sobrancelha para outro brado ecoando pelo corredor, entristeceu-se pela dor que percebera nessa nota, “um rei comportar-se como um porco no abate”, olhou com indiferença para os colegas e murmurou o que nenhum deles tinha coragem de verbalizar:
- Potêntis precisa do profeta - sua voz era seca, disciplinada. - Ou o reino ruirá, em pouquíssimo tempo. Senhores, conheço o rei, foi um monarca sábio, longevo, e o filho não será diferente.
Eles inclinaram-se para os toques dos sinos ecoando pelo lado de fora, o céu escureceu por um minuto, e todos souberam que o rei estava morto.
Potêntis ainda segurava a mão do rei, e o anel, as últimas palavras do pai, foram de preocupação com o reino, embora, Potêntis desconfiasse que seu velho pai, desejara com todas as forças morrer próximo ao seu poço de visões. O jovem rei suspirou. Os sinos ecoavam, retiniam longamente, sovados por feiticeiros controladores do ar, que empurraram as notas fúnebres em direção a Lides a cidade mais próxima, e os feiticeiros de Lide empurrariam as notas recebidas, para a cidade vizinha, logo todos saberiam.
- Vossa majestade, - disse uma voz atrás de si. - É preciso que apareça ao povo, acene, conforte os corações.
Ele apoiou-se à beirada da cama onde jazia inerte o corpo do antigo monarca, colocou o anel no anelar. Imediatamente os bruxos que aguardavam no corredor, souberam que podiam entrar no recinto. O poder contido no anel, era o mesmo contido nas vestes dos bruxos, redivivo.
Potêntis caminhou em direção ao cômodo vizinho, passando por uma turma de rostos familiares, os soldados, inclinaram-se em reverência antes de abrirem as duas bandas das portas de acesso à varanda por onde os reis apareciam. Em dias festivos ou fúnebres, em anúncios de guerra, ou de acordos de paz, em casamentos, era ali, naquele pequeno espaço, que todos se acotovelavam em volta da cabeça coroada. Potêntis seguiu sozinho, erguendo a mão com o anel, símbolo do poder real da casa dos Gavinos.
- Viva ao rei! Viva ao rei! Viva ao rei! - o povo gritava diante do palácio.
Gabine uniu-se ao marido e os aplausos aumentaram ainda mais, os dois, de mãos dadas entraram e seguiram assim até a sala do trono. Na mesa de pedra negra, sentaram-se lado a lado. Uto Givin puxou o cadeirão para Potêntis, e em seguida para Lady Gabine, os membros do conselhos tomaram assento, e o rei, falou:
- Meu pai morreu, - disse formalmente - portanto, assumo meu direito perante os fundamentos do mundo, e dos homens, e pelas leis, de ascender ao trono como único e soberano rei de todo nosso povo, desde Alivim, Lides, e Portuaria, até as ilhas de Forte Massa.
- Assim seja, viva o rei Potêntis! - bradou Uto Givin em sua voz cavernosa.
- Viva! - gritaram todos.
Ao fim das promessas de lealdade ao rei e a casa Gavinos, silêncio seguiu-se de uma tosse seca de Telefaithin, que mesmo com a advertência de Eliandrin e Cortivinus ao seu lado, prosseguiu em sua voz titubeante no inicio mas firme conforme dava vazão aos seus pensamentos:
- Vossa majestade, - começou - permita-me que indague?
Potêntis assentiu.
- O senhor seu pai, nosso amado rei, - continuou - era o único habilitado a entrar nos aposentos do Rei Profeta, com a morte do rei…
- Basta! - disse Potêntis. - Sei o que o conselho pensa a esse respeito, e devo considerar, não no momento.
- Vossa majestade, perdoe-me - Telefaithin implorou - acontece que o rei era o único que alimentava o profeta, entende? Mesmo sob o encantamento do redivivo que sabemos todos, inocula a velhice, caso não coma, não se alimente, a criatura morrerá.
Potêntis olhou para a esposa que segurou em sua mão, eles conversavam no olhar, embora nenhum dos dois possuíssem dom de intelecto, nem visão, nem profecia, havia amor entre eles. Os bruxos trocaram olhares entre si, e temeram não pelo que Telefaithin dissera mas pelo que ensejou. Uto sentado à direita do rei, inclinou-se em sua direção. A rainha manteve-se ereta sem expressar opinião. Eles não entendem o perigo que todos nós corremos, Cortivinus anuiu consigo mesmo. O frasco com o sangue do rei morto estava debaixo da sua túnica, continuava quente.
- O assunto é deveras importante - Uto disse para todos. - Eu e meus colegas, Valkirie, AngTu e Calisie, aconselhamos ao rei por um fim ao sofrimento da criatura que vem há séculos servindo ao reino, e seguir em frente sem os seus… Serviços.
- Absurdo! - Eliandrin protestou. - Seria o fim do reino!
- Reinos sobrevivem sem escravos! - Valkirie respondeu. - O rei profeta, que nome irónico para alguém que está em um estado de letargia, de ilusionismo, cativo de um Elo…
Uto olhava significativamente para a colega que percebendo o quanto havia avançado, interrompeu-se, e o rei, suspirou como um derrotado. Ele pela primeira vez passou o polegar por cima da pedra no anel. A mão da esposa continuava sobre o seu pulso, e o rei disse:
- A mim enoja tudo isso, - revelou - amo minha esposa com todas as forças. Contudo, a tradição me força a necessidade, decido, irei ao encontro do nosso rei profeta assim como foi meu pai antes de mim, e meu avó antes dele, e sucessivamente. Amigo Uto, desejaria do fundo do meu coração não ter que continuar essa tortura mas somos escravos dos nossos deveres.
Os três bruxos entreolharam-se, e Cortivinus retirou da manga direita o frasquinho com o sangue do antigo rei. Todos olharam para ele que o erguia diante do rosto, e colocou em cima da mesa de pedra negra. O bruxo mais velho assentiu, e Cortivinus repetiu o mesmo gesto, Eliandrin por amizade ao rei, disse então:
- Que assim seja oh rei, - trocaram olhares e Potêntis sorriu débil segurando firme a mão de Gabine. - Vossa majestade, vestirá o rosto do seu pai, encantado por nós, e a passagem para a colina se revelará.
O rei ouvia atentamente e a rainha com ele, assim que Eliandrin, abriu o frasco e derramou o sangue real em suas mãos, os outros dois bruxos, seguraram nos ombros do parceiro, os olhos de Eliandrin ficaram totalmente negros. O bruxo disse palavras ininteligíveis sussurros que soaram a todos como engasgos e que muitos até mesmo os magos tiveram dificuldade em identificar, era língua rediviva, o sangue escureceu, uniu-se na mão de Elaiandrin como uma massa de pão, o bruxo a modelou amansando comas mãos.
Levou para o rei que ergueu as mãos, e a voz de Elaindrin assumiu um tom baixo, escuro:
- Com o sangue do pei, para o bem do filho, com o rosto do pai.
O rei segurou a massa e a encostou no rosto, a massa adensou na sua pele, e diante dos olhos de todos, o rosto do rei morto surgiu por cima do rosto do novo rei. Aos poucos, era como se o próprio morto estivesse ali, em pé diante de todos mas mais novo, pelo menos trinta anos mais novo. Potêntis não sentiu nada além de uma friagem nas bochechas.
- Se tem que ser feito que seja imediatamente, - falou o rei.
Todos levantaram. O rei despediu-se da esposa, e a caminho da colina, Potêntis segurou no antebraço de Eliandrin os dois seguiram mais atrás enquanto os magos e os bruxos brigavam mais a frente. Gabine vinha muito perto do rei e de Eliandrin. O rei inclinou-se para o amigo, e revelou:
- Creio que a magia não funcionará - sorriu de canto - eu amo minha esposa com todas as forças meu amigo, e a magia rediviva pode muito bem…
- Meu rei, para a vossa felicidade espero que não funcione, mas para a alegria do reino funcionará. Esse poder é antigo meu senhor, e inquebrantável, por único que seja o vosso amor pela nossa rainha.
Potêntis permaneceu calado em seus pensamentos esperava por uma libertação. Ele conhecia a história do seu povo e de como o reino cresceu, prosperou, e continuou na sua família por quatro séculos, tudo por causa das profecias. O poder de saber como agir, a muleta que esse poder oferecia, era grande demais para ser recusado.
Gabine olhava estranhamente, de canto de olhos, o ruido dos passos foram aumentando, e se viram diante de um corredor estreito. Dali em diante, apenas os três bruxos e o rei seguiram, Potêntis abraçou a esposa e prometeu que continuaria amando-a para sempre. Potêntis seguiu atrás de Eliandrin, enquanto Telefaithin, e Cortivinus vinham mais ao fundo. No final do corredor, Eliandrin tocou a parede e uma abertura cortou a estrutura do teto até ao chão.
Os outros dois bruxos uniram-se à Eliandrin, e a abertura aumentou mas havia apenas escuridão do outro lado, nada era visível.
- Devo entrar aí? - Potêntis perguntou.
Ele ainda olhou para trás e viu a esposa acenando de longe. Eliandrin afirmou e o rei passou uma perna e depois a cabeça, desaparecendo atrás daquela boca de escuridão fendida na pedra. Apenas quando já encontrava-se ali, percebeu luzes nas paredes, e percebeu as paredes, “como farei para voltar?”. Mas viu adiante uma descida de degraus em caracol, Potêntis olhou em volta, era uma espécie de corredor como o outro mas mais escuro, as paredes negras, e escamosas. O cheiro doce e insinuante o tranquilizava.
Potêntis trazia nas costas uma cesta de vime cheia de frutas e proteínas para o Profeta, como seria aliás? O pai nunca tocava no assunto e ofenda-se quando alguém perguntava alguma coisa. Ele arrancou uma das tochas da parede e seguiu em frente, desceu os degraus em caracol e deu com uma parede vazia diante de si, uma vontade alucinante o dominava, ele queria destruir a parede, movido por esse impulso a chutou.
Potêntis ofegante interrompeu os golpes, encostou a cabeça na parede fria, e desejou estar com o profeta, as mãos deslizaram para dentro, e logo, ele atravessou a parede, diante de um salão pequeno, ao virar-se, saia de um espelho de corpo inteiro. A sala era arrumada mas lembrava mais uma cabana de caçador do que um palácio, e de uma porta aberta entrava um vento frio, impetuoso.
Potêntis engoliu saliva ao verificar o rosto que tinha, não era mesmo o seu precisou controlar-se para seguir em frente, e o cheiro que veio junto com o vento, o arrebatou na mesma hora.
Ele esperava por uma criatura verrucosa, velha, carcomida pelo tempo, fétida. Mas tinha diante de si uma mulher, jovem, franziu o rosto. Ela chorava de alegria e correu para seus braços, beijando-o, tocando seus braços, seu peito, seu rosto.
- Meu amor, meu amor você veio! Você está aqui… meu querido… venha, entre, entre, está cansado? Ah minha, vida esperei tanto por você.
O cheiro dela e o seus afagos o acolheram e o dobraram quase como magica, Potêntis mergulhou para um canto de si mesmo ao qual nunca havia penetrado. Ele esperava encontrar outra coisa. O nome rei profeta mentia descaradamente! Como aquela doce e bela criatura podia ser um profeta? Nem mesmo lembrava um homem. O toque suave de sua pele, o cheiro, a sua voz.
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Olá, obrigado pela leitura!
Essa é uma história de fantasia com direito a magia, reinos, monarquia e tudo o mais.
Há um sistema de magia e sociedades estruturadas em valores diferentes dos comuns.
O bem e o mal aqui é relativo embora exista e seja considerado. A historia porem respeita
os limites do site e das nossas leis embora possa ter violências.
Até logo!