Após a foda, como sempre, Lia voltou para o seu quarto, onde esperou Patrick chegar e fez o papel da esposa perfeita. Ele até tentou transar com ela, mas não conseguiu. Mais uma vez, a dor de cabeça voltava. A verdade é que ela já estava farta de tanto gozar com o motorista.
Já na edícula, o sono de Antônio era agitado. Ele se sentia um rato, um saco de batatas — trinta e oito anos nas costas, desde sempre trabalhando para os Fabbri e sendo o capacho de Lia, seu boneco sexual. A verdade é que amava aquela desgraçada. Fora seu primeiro e único amor, aquela pra quem ele sonhou dar o mundo. E, no fundo, sabia que ela gostava dele; sabia que o casamento com Patrick era só uma forma de manter o status social e se aproveitar do dinheiro daquele banana, filhinho de papai. Mas o fato é que Antônio não conseguiria, por muito tempo, viver dessa forma.
Olhava para Mauro, seu melhor amigo, também criado como capacho dos Fabbri. O amigo conheceu Vera num baile na adolescência; se casaram e tiveram Luciana, sua afilhada. E ele? O que Antônio conquistara na vida? Noites de foda com a patroinha, a solidão daquela edícula, os anos passando…
O dia amanheceu preguiçoso na mansão, e madame Suzete já rodava nos saltos, distribuindo ordens, ralhando com Luciana e com Gemma. Adhemar, ausente como sempre, vivia de fachada, fechando os poucos negócios que ainda lhe restavam. Lia provavelmente estava em algum evento. Mas Antônio estava com o cão no couro.
— Que cara é essa, Tonho? Tá com cara de que não dormiu… ou melhor, dormiu bem demais — disse Mauro, ralhando com o amigo, que sabia com quem ele se envolvia.
— Não enche o saco, Mauro — respondeu Antônio, com cara de poucos amigos. A mesma cara que Mauro conhecia desde moleque.
Aproveitando que os patrões não precisavam dele Antônio se enfiou na edícula, tentou dormir, um olho no peixe outro no gato, afinal poderia ser chamado qualquer hora era assim que pobre vivia pra servir.
Aquilo tudo era uma merda de dia era o motorista à noite o brinquedinho sexual da patroa e como ele amava aquela filha da puta, Antonio se remexeu na cama ouvindo as gargalhadas de Lu e Gemma ao longe que com certeza conversam coisas bem mais leves.
Gemma, com o cabelo desgrenhado e as bochechas coradas, pegou uma flor caída e prendeu atrás da orelha.
— Quando eu crescer, vou casar com o Tonho.
Luciana virou o rosto na hora, arregalando os olhos.
— O quê? — perguntou, rindo nervosa. — Gemma, cê tá doida?
— Não tô, não — respondeu a outra, com a maior calma do mundo. — Ele é bom, é bonito e me protege. E me chama de mocinha.
Luciana soltou um “ah, vai se ferrar” abafado e cruzou os braços.
— Gemma, pelo amor de Deus, o Tonho é o motorista da casa. Ele tem quase quarenta! E você… você é uma Fabbri, caramba. Pode casar com quem quiser. Pra que escolher um pobre que vive na edícula?
Gemma olhou pra amiga com aquele ar teimoso e sonhador que só criança tem quando fala sério demais.
— Porque ele é diferente. Ele fala comigo como se eu fosse gente de verdade, não uma boneca da tia Suzete. E quando ele sorri, eu sinto paz.
Luciana bufou, tentando esconder o desconforto.
— Isso é porque você é mimada e ele te dá atenção. Não confunde as coisas, Gemma. Essas histórias de amor de conto de fada não existem, ainda mais com gente pobre.
Gemma abaixou o olhar, brincando com a água entre os dedos.
— Eu não ligo se ele é pobre. Quando eu crescer, vou casar com ele mesmo assim.
Luciana riu, mas a risada saiu torta.
— Quero ver explicar isso pra sua tia Suzete. Ela vai morrer antes de deixar.
Gemma deu de ombros, séria.
— Então ela que morra.
Luciana se calou. Por um instante, não viu mais a menina sonhadora e romântica, — viu uma força bruta e ao mesmo tempo pura que, sem perceber, já carregava no peito a mesma teimosia dos amores impossíveis.
Lá do fundo, ouviu-se o ronco do carro da mansão sendo ligado. Antônio saía pra buscar o patrão, a folga acabava. Gemma levantou, enxugou os pés e ficou observando o carro sumir no portão.
Luciana resmungou, tentando disfarçar a pontada estranha no peito:
— Cê ainda vai se machucar feio com isso, Gemma.
Gemma sorriu sem olhar pra ela.
— Ou vou ser feliz!
MAIS TARDE
O sol se escondia atrás das jabuticabeiras do jardim quando Mauro estacionou a moto ao lado da edícula. O ronco do motor quebrou o silêncio preguiçoso do fim de tarde. Antônio estava sentado num caixote, camisa aberta, cigarro apagado entre os dedos — mesmo sem fumar, mantinha o vício de segurar um — e olhava pro chão como quem encara a própria vida passando.
Mauro desceu, ajeitou o boné e foi direto:
— Até quando, Tonho?
Antônio levantou o olhar, cansado, com aquela expressão de quem já viu de tudo e não se surpreende mais.
— Até quando o quê?
— Até quando vai ser o capacho dessa gente, porra? — Mauro chutou uma pedrinha com força. — Cê ainda acha que a Lia vai largar o banana do marido pra viver contigo na edícula? Acorda, cara.
Antônio ficou quieto. O peito pesava. Lia ainda tinha o cheiro dela nos lençóis, e ele ainda sentia o gosto dela na boca, mas sabia que àquela hora ela devia estar jantando com o marido num restaurante caro, rindo de merda nenhuma.
Mauro se aproximou, abaixou o tom:
— Tô montando um negócio. Uma frota de táxis. Pequena, mas nossa. Eu, você e o Dico. Já juntei uma grana. Dá pra pegar dois carros e começar a rodar. A gente se livra dessa coleira de vez, Tonho.
Antônio deu uma risada seca, amarga.
— Tá maluco, Mauro? Eu nem sei lidar com aplicativo, porra.
— Aprende — rebateu o amigo, firme. — Cê aprendeu a limpar merda de cavalo, aprendeu a dirigir pra madame, aprendeu a ser sombra de ricaço. Aprender a ganhar o próprio dinheiro é o mínimo.
O silêncio caiu pesado. As cigarras faziam barulho lá fora, e o portão da mansão rangia de vez em quando.
Antônio respirou fundo.
— Não sei se consigo sair daqui, Mauro. Desde moleque tô nessa porra. Cresci carregando mala dos Fabbri, tomando ordem de Suzete, vendo Lia casar com aquele panaca. Parece que minha vida ficou presa aqui, nesse quintal de merda.
Mauro sentou do lado dele.
— Justamente por isso, irmão. Cê tá com quase quarenta. Vai esperar o quê? Morrer de velhice nessa edícula enquanto ela brinca de foder com o seu corpo e dorme com outro?
As palavras bateram fundo. Antônio fechou os olhos. A imagem de Lia nua, suada, gemendo o nome dele, se misturava à lembrança dela arrumada, rindo ao lado do marido.
Quando abriu os olhos, não tinha mais dúvida. Só raiva. E cansaço.
— Tá bom, Mauro. Eu topo.
O amigo sorriu de canto, deu um tapa firme no ombro dele.
— Aí sim, porra. Vamos levantar essa frota e sair dessa vida de bosta.
Antônio assentiu.
— Mas antes, quero olhar na cara da Lia e dizer que acabou.
— Faz isso — respondeu Mauro. — E quando disser, não volta atrás.
O céu escurecia de vez quando Mauro foi embora. Antônio ficou ali, parado, vendo as luzes da mansão acenderem uma a uma, como se cada lâmpada fosse um lembrete da prisão que ele ajudou a erguer.
Jogou o cigarro no chão, pegou a chave da edícula e murmurou, quase pra si mesmo:
— Chega dessa merda.
E pela primeira vez em muitos anos, acreditou no que dizia.
Galera, voltei a escrever após anos e não soube criar na categoria série, mas é o que se trata nossa história.
Querem continuação?