Eu congelei. Inconscientemente, apertei o corpo dela de encontro ao meu. Queria protegê-la de um fato passado. Protegê-la de um monstro que eu não vi. Aquilo era minha falha e a dor da traição dela, virou a dor da minha omissão. As lagrimas rolaram e ela sentiu. Se virou de frente pra mim dentro do meu abraço. Meu rosto tomado de vergonha.
-- me perdoa, Vivian. Eu-eu... Eu não pude te proteger, não pude te defender, eu não vi isso chegando - ela me silenciou com aqueles dedos pequenos deslizando sobre meus lábios.
-- o que passou, passou. O importante é que a gente se encontrou de novo. – ela sussurrava com aquele sorriso que me desmontava. Como eu senti falta desse sorriso.
Ela beija meu peito enquanto ainda choro e revisito a cena. Se eu tivesse sido menos impulsivo, menos afobado. Os indícios estavam lá. As roupas no chão não foram tiradas. Estavam rasgadas. O quarto estava bagunçado não porque transaram por todo ele mas porque Vivian lutou. A cama bagunçada era o atestado da negação e da luta dela. Ela estava imobilizada. O som do gemido que por meses martelou meu cérebro era um choro e um pedido pra parar. Como eu pude ser tão idiota!!!
-- não chora, meu amor. Não é culpa sua. E nem minha. Eu vou te contar o que aconteceu desde o princípio. – ela disse, ainda sussurrando, ainda beijando meu peito.
-- se eu puxar pela memória, a coisa começou bem antes daquele dia... Bem antes da faculdade, na verdade. No dia em que fizemos amor pela primeira vez. Naquela tarde, depois de você ir embora, Jorge foi até minha casa. Se declarou pra mim. Disse que não aguentava me ver com você, que sempre me amou... Eu recebi aquela declaração incrédula. Na verdade, nunca olhei pra ele de outra forma além de um irmão. Eu... Sempre fui apaixonada por você.
Aquelas palavras me deixaram bem feliz. Eu demorei a admitir o quanto gostava dela e saber que ela passou pela mesma situação me dava mais certeza de que sempre fomos um do outro. Como se tivêssemos destinados a ficar juntos. Beijei a testa dela e então ela continuou.
-- eu disse exatamente isso a ele. Que ele era como um irmão pra mim, que o amava mas não como homem e que meu coração já tinha dono. Queria que ele ficasse feliz por nós dois. Ele deu de ombros, me abraçou e me felicitou por nós dois, e achei que o assunto tivesse morrido ali.
Estava escuro. E isso escondia nossas feições. Seria um problema se não fôssemos amigos durante uma vida. E também amantes. Sentia o corpo dela tremendo e enrijecendo conforme a lembrança aflorava.
-- você não precisa continuar, meu amor. Não quero que isso cause mais dor do que já causou. – disse beijando a testa dela.
Ela sorriu pra mim. Um sorriso tenro. Havia tristeza ali mas também esperança.
-- eu posso continuar. Não dói. Não mais. – dizia acariciando meu rosto e me dando um beijinho nos lábios.
Não sei se falei pra vocês mas, na falta de expressão melhor, Vivian era foda. Era uma mulher e tanto. Nossa relação sempre foi muito madura e em muito por causa dela. Como amiga ela me ajudava, como companheira ela me desafiava. A existência dela na minha vida me tornava melhor me dava vontade de ser o melhor que eu poderia ser. Eu não só a amava. Eu a admirava. Ela continuou a história.
-- tudo ia bem até que começamos a morar todos juntos. Me incomodava os modos do Jorge e mais ainda o entra e sai de meninas em nossa casa em trajes mínimos. – ela me olhou com os olhos semicerrados mas de jeito divertido – eu ainda tenho ciúmes do senhor, viu? E por isso não gostava daquelas meninas frequentando nossa casa daquele jeito. Um dia que estávamos a sós, eu disse isso a ele. Pedi pra ao menos nós preservar mas ele entendeu errado. Achou que falei aquilo por ciúmes dele, que finalmente o via como homem. Ele entendeu muito errado.
-- eu falava na época, eu falarei agora e repetirei em todas as oportunidades que surgirem: você é perfeita. Você é a única dona do meu coração. E do corpo e da mente também. – falei olhando pra ela. Disse isso de modo taxativo, com uma verdade sentida.
Ela acariciou meu rosto e meus lábios antes de me beijar. Depois continuou.
-- o que vou te falar agora é o que eu deduzo da conversa de vocês pelo que ele falou mas você vai me esclarecer.
Olhei pra ela sem entender direito o que ela quis dizer mas concordei.
-- em uma noite, ele parou de levar mulheres pra casa. E passou a focar em mim. Andava pela casa só de cueca quando você não estava mas nem me chamava atenção. Mas um dia ele passou dos limites e meu erro foi nunca ter te falado nada. Eu cozinhava pra nós 3 ele colou o corpo no meu pelas minhas costas e ficou se esfregando. Eu tentei sair mas ele era mais forte. Só saí porque quase quebrei o dedo dele. Ele peguntou com um riso debochado se eu tinha gostado. Eu coloquei a faca na frente dele e disse que nem um pouco que eu iria contar pra você. Ele me desafiou a contar e foi pro quarto dele. Eu chorei aquele dia mas preferi não encher sua cabeça. Você tava trabalhando demais, seu projeto tava exigindo muito de você e um golpe desses aquela altura ia destruir tudo que você construiu. Ignorei por você...
Quando ela falou isso, eu a apertei em um abraço e ela retribuiu. Não queria largar aquela mulher nunca mais. O pior momento da vida dela ocorreu por ela pensar em mim. Isso me corroía. Mesmo ela dizendo pra esquecer e não me preocupar, eu não conseguia. Ela era meu mundo e eu quase a perdi.
-- e o fato de ter ignorado, gerou o primeiro estupro.
-- como assim primeiro? – respondi confuso.
-- você vai lembrar. No dia que você chegou e eu estava no quarto com um pijama todo fechado. Ele me machucou muito. Naquele dia eu tinha chegado cedo e me mantive distante dele mas ele me puxou na sala. Disse que sabia que eu tinha gostado e por isso não contei pra você. Ele dizia que você sabia e dava força, disse que quando ele conhecesse alguém ele lutaria por ela e era o que ele estava fazendo. Resisti o quanto pude mas o Jorge é forte. Me imobilizou no sofá e me penetrou . Eu implorava pra parar mas quanto mais eu falava, mais ele mandava eu gemer. Eu chorava e ele finalmente ejaculou dentro de mim. Quando ele relaxou, eu corri e me tranquei no quarto. Corri pro banheiro e fiquei horas no chuveiro. Me sentia podre, suja. Culpava minhas roupas, achava que eram curtas demais. Talvez ele estivesse certo e não te contar significava que eu dei a anuência pra continuar... Hoje eu sei que não tive culpa alguma.
Meu corpo tremia. Eu falei isso pra ele mas ele nunca falou do interesse em Vivian. Queria que meu amigo fosse feliz, que encontrasse alguém tão completa e parceira como ela. Ele distorceu minhas palavras, usou-as contra a pessoa que mais amo. Lembrei da prensa que dei nele na faculdade e me arrependi de não tê-lo surrado ali mesmo. E ele ainda mentiu sobre tudo. Nunca houve um triângulo. Voltei a mim com o toque quente e suave de Vivian no meu rosto.
-- eu não consigo deixar de pensar que isso foi culpa minha... Os sinais estavam lá. Eu só... Não vi. – constatei triste.
-- você nunca veria. Você nos amava. Eu adorava te ouvir falar do Jorge porque você tinha segurança o bastante pra dizer que o amava. Ele era seu irmão. Seu melhor amigo. E isso te explica o porquê eu não falei. Eu te amo demais, Nando. Eu sei o que você teria feito com ele naquele momento e isso te destruiria e acabaria com seu futuro. – ela disse com os olhos cheios de lágrimas.
-- eu entendo mas você errou em algo. Meu futuro não é o que eu faço. Meu futuro sempre foi você! Eu nunca fui tão miseravelmente infeliz como sou desde aquele dia até hoje. Mas eu entendo. Eu nunca mais vou deixar nada acontecer a você.
Ela sorriu e continuou.
-- a segunda vez foi a que você pegou. Eu pressentia. Ele tava inquieto e tava tentando me cercar. Desde que aconteceu, eu chegava e me trancava no quarto. Naquele dia que você saiu, eu tentei te fazer ficar por causa disso. Mas assim que você saiu, eu tentei correr pro quarto mas ele me pegou. Rasgou minha roupa. Eu lutei contra ela. Empurrei e joguei sobre nossa estante. Acabei arranhando ele no rosto e foi quando ele me acertou um soco que me deixou tonta. Senti o sangue nos lábios. Ele me imobilizou e me machucou penetrando a força. Dizia que não adiantava me fazer de difícil que eu era dele e que você não podia separar a gente. E naquele momento, você chegou.
-- eu vi o que quis ver. A cena me chocou demais. Jamais pensei que Jorge seria capaz de algo tão monstruoso. – disse resignado. A cena ainda castigava minha mente mas agora resignificada: eu vi o estupro da minha mulher e achei que ela estivesse gostando.
-- Fernando! – bradou Vivian, enérgica. – você me ama? – dizia olhando no fundo dos meus olhos. Parecia ver a minha alma. Mas a pergunta me fez sorrir.
-- se você tem dúvidas disso, eu devo estar fazendo algo de muito errado. – isso arrancou um sorriso dela.
-- você me ama. Você ainda me ama. E pra mim é tudo que importa.
Que mulher. Eu definitivamente não a mereço.
-- depois que você foi embora ele achou que eu ficaria com ele. Assim que ele saiu de cima de mim e apagou, eu peguei todas as minhas coisas e fugi pros meus pais. Contei a eles o que houve mas pedi sigilo. Meu pai ficou revoltado e quebrou tudo dentro de casa. Minha mãe e irmã só choravam.Depois de um tempo acabamos vindo parar aqui... meu tio morreu e o sítio estava abandonado. Acabou sendo em boa hora...- ela pôs a testa no meu peito e respirou fundo.
-- por que não me procurou? – perguntei.
-- naquele momento, se te procurasse, talvez não isso aqui não seria mais possível. O mais provável é que você me escurraçasse, quebrando meu coração de vez – falou com olhar triste.
Aquilo me doeu. Doeu porque ela estava certa. Até ontem eu não sabia nada do que tava acontecendo, nada do que tinha acontecido com ela. Ainda tinha muita raiva e achava que ela havia me traído. As vezes, o mal feito é o melhor que você pode fazer. Ela continuou a história.
- as primeiras semanas foram bem difíceis. Eu me culpava por ele e por você. Eu... Machuquei e decepcionei muita gente, Nando... Meus pais, amigos, orientadores... E você. As vezes, quando se chega no fundo do poço-
-- para de falar. - falei de maneira imperativa. Meus olhos transbordando. Eu entendi o que ela tava prestes a dizer mas não queria ouvir. Eu sentia meu corpo formigando . Me doía imaginar um mundo sem a minha loirinha.- já entendi essa parte. Continue.
Ela sorriu vendo meu desespero. Mas continuou.
-- eu tentei, Nando. Mas foi uma lembrança sua que me salvou. Um dia quando estávamos no arpoador...
-- "depois da faculdade eu vou casar com você, Vivian.. vou pedir sua mão na frente de todos. Vou dizer o quão incrível você é e o quanto torna a vida de todos melhor! EU. VOU . ME CASAR. COM A MULHER. MAIS LINDA. DO MUNDO." Eu não esqueci nenhuma única palavra daquela promessa
Vivian me olhou apaixonada e me beijou com amor.
-- eu quis acreditar que nossa história ainda não tinha acabado. Foi o que me deu forças pra continuar. Eu consegui expelir todos os remédios que tomei e naquele dia mesmo procurei uma psicóloga. Consegui ligar pros meus orientadores e disse que estava com problema familiar e teria que me afastar por um tempo. Desde então venho me recuperando. – senti sua pele arrepiada. Não era tesão. Mesmo nossos corpos estando quente, o clima esfriara – melhor nos vestimos. Vamos terminar essa conversa em casa.
Nós levantamos e nos vestimos. Seguimos para o sítio trilhando o caminho iluminado pela própria casa, que naquele momento, funcionava como um farol. Andávamos abraçados e pela primeira vez desde a separação, meu corpo relaxou. Sentir seu corpo quente eu meus braços me dava uma sensação boa, como se meu coração se aquecesse. Até hoje eu acho incrível como uma pessoa pode ter um cheiro tão abstrato. Vivian sempre teve cheiro de paz. Sempre foi assim. Não importa o quanto eu estivesse tenso e nervoso, estar perto dela, sentir o cheiro dela, acalmava meu coração. Fizemos o caminho até em casa. Ela bateu a aldrava velha e sua mãe logo apareceu. Ela gritou chamando o pai que logo apareceu também. Ambos pareciam felizes em me ver.
-- meu filho, quanto tempo!!! - Disse a mãe dela ao me abraçar.
-- você virou um rapagão, Fernando. – avaliava o pai enquanto dava tapinhas no meu ombro.
Sentia saudades deles. Foram bons cafés da manhã que tomamos juntos. Não falei muito dos pais de Vivian mas eram uma família bem estruturada. Era gostoso estar com eles pois todos se apoiavam e se ajudavam. Muito do espírito de Vivian vinha do berço. Mas o fato de me tratarem daquela forma me surpreendeu.
Olhei pra eles com um olhar triste. Ainda não havia me acostumado com a falha que havia causado todo aquele transtorno. Era vergonhoso. Era cruel. Sentia-me ainda pior pela forma tão cordial que me tratavam. Meu rosto queimava e sentia minhas orelhas quentes. Vivian como sempre sentiu meu desconforto e pôs a mão em meu peito, em cima do meu coração que batia tão rápido quanto o de um cavalo de corrida. Olhei pra ela e encarei aqueles olhos e isso foi me acalmando. Ela percebeu e sorriu. Eu sorri de volta e em um ato de puro impulso, abraçei meu sogro e sogra como não lembro de ter feito antes.
-- me desculpem, sr. Gustavo e dona Cecília. Me perdoem por ter falhado com ela. Se vocês me permitirem... Se me derem uma nova chance... Eu prometo que não irão se decepcionar. A começar por essa visita.
Eles se desgrudaram de mim e percebi que os 3 choravam. Acho que todos ali queriam a mesma coisa: a felicidade da Vivian. Me desgrudei deles e voltei a falar:
-- mais do que recuperar minha vida – dei a mão e entrelacei os dedos com a minha amada – eu vim busca-la pra retornar nosso projeto de vida. Preciso que ela volte pra faculdade. E se forme. Alguém precisa cuidar do Studio.
Todos me olharam confusos e dessa vez eu gostei de não ser o bobo perdido. Olhei pra Vivi. Tudo aquilo era um projeto nosso mas foi por ela e pra ela. Temos um estúdio de dança em NOSSA casa e preciso que a melhor bailarina que já vi volte, se forme e me ajude a administrar aquilo. – olhei pros pais, que sorriam e me voltei pra ela. Seus olhos brilhavam como duas estrelas.
-- você abriu um estúdio de dança? – ela disse quase sem acreditar.
-- esse era o plano, não era? Dar a favela o que a favela nos deu. É meio que uma ong, só trabalhamos com crianças carentes mas preci- - fui silenciado com um beijo.
Ela enlaçou meu pescoço bem apertado enquanto me beijava e sorria enquanto seus lábios estavam colados aos meus. Eu sorria junto. Adorava vê-la feliz.
-- amor, eu adorei mas não é tão simples assim... – ela começou e ia enumerar os problemas.
-- eu sei que não. Mas acredito que juntos podemos dar conta de qualquer coisa. Você vai voltar pra faculdade, vai se formar e vamos retomar nosso plano de vida.
Nesse momento, escuto aquele estalar de tábuas de um chão de madeira. Era a irmã de Vivian. De fato, ela havia desabrochado e se tornado uma linda mulher. Assim como a irmã, Julia, tinha um belo corpo de curvas definidas. Seus cabelos cacheados agora eram bem cuidados e estavam imensos. Esva a vontade, vestindo um shortinho curto e um top. E a novidade foi a voz suave que veio junto com ela, em direção a Vivian.
-- ma-ma?!Novo capítulo agora só dia 22! Espero que estejam gostando tanto quanto eu estou curtindo escrever.