Onde o mar nos levou - Capítulo XVII

Um conto erótico de Rafa & Caio
Categoria: Gay
Contém 2928 palavras
Data: 05/10/2025 08:17:58

Capítulo XVII - Sombras

Engraçado como a vida consegue cuspir ironia na cara da gente. Abro o jornal logo cedo, como sempre faço, e lá está ele… Rafael. Meu filho. Meu maior erro. Meu maior inimigo. Aquele que eu criei para ser um sucessor à altura, e que insiste em se rebaixar a um simples rosto estampado em campanhas publicitárias. Modelo! Que desperdício vergonhoso de sangue Montenegro.

Vejo a manchete: “Novo rosto da campanha de luxo conquista o público”. A fotografia ocupa meia página. Rafael, de terno, olhar sério, postura imponente… quase digno do nome que carrega. Mas não se enganem, aquilo é só uma farsa bem iluminada, maquiagem e câmeras caras. Por dentro, ele continua sendo o traidor que cuspiu na minha mesa, que preferiu se deitar com um qualquer ao invés de honrar a família.

E é justamente esse “qualquer” que me atormenta. Caio. O nome me dá náusea. O insolente que roubou o que me pertencia por direito. Rafael nunca foi livre, nunca pôde escolher. Ele me devia submissão, lealdade, continuidade. Mas agora se esconde atrás desse relacionamento patético, como se amor fosse desculpa para jogar fora tudo o que planejei.

A cada linha daquela matéria, sinto o gosto amargo da vingança amadurecendo na boca. O jornalista ousa escrever que Rafael “constrói sua própria imagem e inspira jovens a acreditarem em seus sonhos”. Inspira? Ele deveria inspirar respeito! Ele deveria ser temido, não idolatrado por meia dúzia de consumidores idiotas.

Sinto a raiva pulsar nas têmporas. Aperto o jornal com tanta força que quase o rasgo. Meu filho pensa que venceu… acredita que ao sair de casa e se juntar àquele professor de praia encontrou liberdade. Mas ele esquece quem sou eu. Augusto Montenegro não perde. Nunca perdeu. E não será um garoto insolente, moldado pela fragilidade de um amor ridículo, que vai me desafiar.

Eles podem achar que a vida em São Paulo lhes dará alguma paz. Que a mãe dele, Eloísa, trará conforto. Mas eu já movi as peças, e sei exatamente para onde tudo isso caminha. A polícia começou a desatar os nós das minhas empresas fantasmas, e não hesitarei em afundar Rafael junto, se for preciso. Quero vê-lo sujo, manchado, desmoralizado. Quero que Caio o veja cair, que perca o chão ao perceber que apostou todas as fichas em um homem que não passa de uma sombra.

Minha vingança não será rápida. Será lenta, calculada, cirúrgica. Primeiro arranco o brilho dos olhos de Rafael. Depois, faço com que Caio o abandone. E, no fim, quando estiver sozinho, sem amor, sem carreira, sem família, ele vai me procurar. E eu estarei aqui. Não para acolher. Mas para rir da derrota que ele mesmo cavou.

Porque Rafael pode tentar se reinventar quantas vezes quiser… mas nunca será livre de mim.

Rafael narrando...

Foram horas de estrada, o ronco constante do motor embalando a viagem que parecia não ter fim. Eu olhava pela janela, sentindo a mão de Rafa firme sobre a minha perna, como se dissesse sem palavras que estávamos juntos em tudo. A paisagem mudava aos poucos, do litoral ensolarado ao cinza urbano que anunciava a chegada a São Paulo. O coração de Rafa parecia bater mais acelerado conforme nos aproximávamos da cidade dele — era como se o peso da família, das lembranças e das feridas antigas viesse junto com cada quilômetro percorrido.

Quando finalmente estacionamos na garagem do prédio, ele soltou um suspiro que misturava alívio e nervosismo. O apartamento já nos esperava: Dona Inês, sempre cuidadosa, havia deixado tudo arrumado, flores frescas na sala e até alguns quitutes na cozinha. O cheiro de casa bem cuidada nos acolheu de imediato, trazendo uma sensação estranha de pertencimento, mesmo para mim, que estava conhecendo aquele lugar pela primeira vez.

— Bem-vindo ao meu outro mundo — Rafa murmurou, abrindo a porta com um meio sorriso.

Largamos as malas na entrada e rimos, exaustos da viagem. Eu me joguei no sofá, mas Rafa veio por trás e puxou minha mão, me levantando de novo.

— Banho primeiro — disse, com aquele tom autoritário que sempre acabava em brincadeira. — Quero lavar essa estrada inteira do corpo.

— Estrada do corpo? — provoquei, rindo. — Você só inventa.

— Invento, mas você gosta — respondeu, me puxando até o banheiro.

A água quente caiu sobre nós como um abraço. Ficamos ali, dividindo o espaço apertado do box, o vapor embaçando o vidro e nossos risos ecoando pelo azulejo. Rafa enfiou a cabeça debaixo do chuveiro e sacudiu os cabelos molhados em mim, me fazendo reclamar em meio às gargalhadas.

— Para, idiota! — protestei, tentando empurrá-lo.

— Ah, você adora quando eu faço bagunça — ele retrucou, segurando meus pulsos contra a parede e me olhando com aquele brilho provocador.

— Adoro mesmo é quando você sabe ficar quieto — retruquei, morderia a resposta, mas não aguentei e comecei a rir.

Aos poucos, o tom de brincadeira foi misturando-se com algo mais silencioso, íntimo. Nossos olhares se encontraram, e, por um instante, só o som da água caindo existia. Rafa deslizou os dedos pelo meu rosto, afastando fios molhados de cabelo, e eu encostei a testa na dele, sentindo o coração bater no mesmo compasso.

Mas, como sempre, ele quebrou a tensão com humor:

— Cuidado, Caio... São Paulo não tem praia, mas eu posso te afogar aqui mesmo.

— Você é impossível, Rafa! — falei, rindo e dando um empurrão de leve, mas sem largar dele.

Aquele banho não foi só para tirar o cansaço da viagem. Foi nosso jeito de chegar juntos, de marcar território num lugar que carregava tanto da história dele. Um ritual silencioso que dizia: agora, esse espaço também é nosso.

Rafa narrando...

Preparei algo simples para o jantar, nada elaborado, mas feito com carinho — arroz, frango grelhado e uma salada fresca. Enquanto ajeitava a mesa, percebia o quanto aquele silêncio compartilhado com Caio me trazia paz. Ele observava cada gesto meu com aquele sorriso meio tímido, meio travesso, e só de ter ele ali, no meu apartamento em São Paulo, parecia que tudo fazia mais sentido. Sentamos frente a frente, e no primeiro brinde improvisado com água mesmo, eu soltei um suspiro pesado.

— Cara… eu preciso te falar uma coisa — comecei, mexendo distraído no prato. — Esses últimos dias foram uma loucura. Campanhas, fotos, viagens curtas, ensaios que parecem não ter fim… Eu mergulhei tanto nesse ritmo que quase perdi o ar.

Caio me olhava atento, os olhos escuros refletindo cada palavra. Eu respirei fundo e deixei escapar a verdade que estava presa.

— Eu senti muito a sua falta, Caio. Mais do que imaginei que sentiria. E sabe o que mais me assusta? — fiz uma pausa, levantando o olhar para encontrar o dele. — A ideia de que esse trabalho, por mais que eu goste, possa nos afastar. Eu não quero você longe de mim.

Ele abriu um sorriso pequeno, mas não disse nada de imediato. Apenas deixou que eu continuasse, e eu continuei, porque precisava.

— Eu vou me organizar melhor, vou equilibrar isso. Não quero ser engolido por campanhas ou deadlines e esquecer o que realmente importa. Porque, no fim das contas, o mais importante é você, Caio. É a gente.

Caio apoiou o cotovelo na mesa e segurou meu rosto com a mão, acariciando minha barba rala com o polegar. O gesto simples me desmontou por dentro.

— Rafa… eu não preciso de promessas perfeitas — ele disse baixo, mas firme. — Eu só preciso que você me escolha todo dia.

Engoli em seco, e uma sensação de alívio tomou conta de mim. Escolher Caio era a coisa mais fácil e natural que eu podia fazer. E ali, entre pratos simples e palavras sinceras, a viagem até São Paulo já tinha valido a pena — não só pela chance de rever Dona Eloísa, mas por nos dar esse tempo. Tempo de olhar um para o outro e reafirmar que o nosso amor não ia se perder no meio da correria.

Caio narrando...

Eu deixei o Rafa na cozinha, teimoso como sempre, insistindo em terminar de lavar as vasilhas. Ele dizia que só descansava quando via tudo no lugar, e eu já conhecia aquele jeito dele… obstinado até nos pequenos detalhes. Dei um beijo rápido na nuca dele, senti o cheiro do sabão misturado com o perfume natural da pele, e segui pelo corredor. O silêncio da casa me envolveu, só quebrado pelo som distante da água correndo da torneira.

Entrei no quarto devagar, sem pressa, e acendi o abajur. Tirei a camiseta e pensei em pegar alguma roupa dele para dormir, porque eu sempre gostava da sensação de vestir algo que tinha o cheiro dele. Abri o guarda-roupa sem muito pensar, mas quando a porta se escancarou, fiquei paralisado. Pregadas na parte interna estavam várias fotos… nossas fotos. Eram registros da primeira vez em que a gente se encontrou. Eu me vi ali, com o cabelo bagunçado pelo vento, tentando disfarçar que não estava sendo fotografado. Vi o Rafa sorrindo, abraços meio desajeitados na areia, uma selfie em que quase batíamos a cabeça um no outro, e principalmente aquela foto em que nossos olhares se cruzavam como se o mundo tivesse parado.

Meus dedos tocaram uma das imagens, deslizando devagar, e um calor foi tomando meu peito. Eu lembrei da inocência daqueles dias, do jeito como tudo parecia novo e natural, como se já estivéssemos destinados a estar ali, um ao lado do outro. Sorri sozinho, sentindo uma ternura que quase doía.

Antes de me deitar, lembrei da minha mochila encostada ao lado da cama. Eu tinha trazido comigo o caderno azul que a Dona Heloísa me deu quando eu estava internado. Ele ficava guardado no quarto do Rafa, mas eu tinha feito questão de levar comigo para São Paulo, como se fosse um pedaço dele que eu não podia deixar para trás. Peguei-o da mochila com cuidado, como quem segura algo sagrado, e me sentei na cama. Folheei algumas páginas até que um texto me chamou atenção. A letra era torta, infantil, e no canto estava escrito em letras miúdas:Respirei fundo e li em voz baixa, como se fosse um segredo que o próprio Rafa criança estivesse me confiando:

"Quando o vento sopra forte,

meu peito quer voar também.

Eu não sei ainda quem sou,

mas sei que procuro alguém.

Nos dias que são vazios,

eu invento mundos na mente.

Sonho com mãos que se tocam,

com um abraço quente e presente.

Talvez o tempo me mostre,

talvez o mar me responda.

Mas guardo dentro do peito

essa vontade que ronda.

E se um dia eu encontrar,

alguém que me faça sorrir,

escrevo em versos pequenos

o quanto quero existir."

Quando terminei, fiquei em silêncio, olhando para aquelas palavras. Era impossível não me emocionar. Ele era só um garoto quando escreveu aquilo, e mesmo sem entender muito de sentimentos, já carregava essa busca, essa carência, essa esperança de encontrar alguém. E esse alguém… era eu. Senti meus olhos marejarem, mas não era tristeza. Era como se eu tivesse visto a alma dele, ainda criança, gritar por algo que só muitos anos depois o destino colocaria na frente.

Fechei o caderno devagar, acariciando a capa azul, e me deitei. Não apaguei a luz do abajur, fiquei de lado, apoiando a cabeça na mão, e um sorriso teimava em permanecer no meu rosto. Eu só conseguia pensar em como ele era incrível.

Alguns minutos depois, ouvi a porta do quarto ranger e vi o Rafa entrando. Ele tinha acabado de tomar banho, os cabelos ainda molhados caindo pela testa, a camiseta larga caindo do ombro. Só de olhar já me deu aquele aperto no peito. Ele me olhou meio desconfiado e perguntou, rindo:

— O que foi? Tá com essa cara de bobo por quê?

Eu não consegui segurar. Respirei fundo e falei com a voz embargada de emoção:

— Porque você é o cara mais incrível que eu já conheci.

Ele riu, meio sem entender.

— Eu? O que eu fiz agora?

Balancei a cabeça devagar, ainda com o sorriso preso no rosto.

— Não é o que você fez agora… é o que você sempre faz. — Estendi a mão e toquei o rosto dele, acariciando com calma. — Você demonstra de uma forma tão linda quem é você, Rafa. Você, ao meu lado, em cada detalhe, em cada foto que eu vi ali, em cada verso que você escreveu lá atrás, quando nem imaginava que eu existia. É como se toda a sua vida tivesse sido escrita pra te trazer até aqui… comigo.

Ele ficou em silêncio por alguns instantes, como se minhas palavras tivessem atravessado tudo por dentro. Sentou-se na beira da cama, encostou a testa na minha e murmurou:

— Então quer dizer que você andou fuçando minhas coisas, é?

Sorri travesso.

— Não… suas coisas que me acharam.

E ali, naquele instante, não existia mais passado ou futuro. Só nós dois, o calor da pele, o brilho da luz fraca do abajur e a certeza de que tudo fazia sentidoEle riu baixinho, e aquele riso escapando do canto da boca era o suficiente para eu me sentir ainda mais bobo. Mas não era um “bobo” comum… era uma sensação de plenitude, de perceber que ali estava um homem que me mostrava, todos os dias, que amar podia ser simples e profundo ao mesmo tempo. Quando ele encostou a testa na minha, senti meu coração acelerar, e por alguns segundos fiquei só observando o quanto os olhos dele refletiam uma luz que não vinha do abajur — era algo de dentro, algo dele, algo que sempre me envolvia.

Me afastei um pouco, puxando-o pela mão para que deitasse ao meu lado. Ele hesitou, com aquela mania de querer organizar até os pensamentos antes de se largar, mas acabou cedendo. Apaguei a luz do abajur, deixando apenas a penumbra suave da noite entrando pela fresta da janela, e puxei o corpo dele contra o meu. O cheiro do sabonete ainda fresco se misturava ao calor da pele, e fiquei ali, deitado, sentindo cada detalhe, como se o mundo fosse resumido à respiração dele batendo contra meu pescoço.

Enquanto o abraçava, pensei no caderno azul que estava sobre o criado-mudo. Aquele poema antigo não saía da minha cabeça. Era como se eu tivesse lido uma carta que o Rafa, ainda menino, tivesse escrito para mim sem nem saber. Ele buscava alguém. Ele sonhava com mãos que se tocavam, com um abraço quente e presente… e eu estava ali, sendo esse alguém. A voz dele criança, escondida nas linhas tortas, ecoava em mim, e me fez refletir sobre o quanto a vida pode ser cruel, mas também pode ser incrivelmente generosa.

Passei a mão devagar nos cabelos dele, que ainda estavam úmidos, e murmurei:

— Sabe o que eu pensei quando li seu poema?

Ele virou o rosto para mim, curioso. — O quê?

Engoli em seco, porque as palavras vinham carregadas de emoção. — Que você já me chamava antes mesmo de me conhecer. Que você já sonhava comigo, Rafa. Era como se sua alma já me esperasse, como se estivesse desenhando o espaço que eu ia ocupar no seu coração.

Ele suspirou, encostando o rosto no meu peito, e por um instante não disse nada. Apenas ficou ali, quieto, como se absorvesse cada sílaba. Depois, a voz saiu baixa, rouca, quase um sussurro:

— Eu sempre me senti sozinho quando era criança. Sempre tive tudo… menos o que importava. Talvez por isso eu escrevesse aquelas coisas. Mas saber que você leu, e que agora faz parte disso, é como se tivesse valido a pena.

Apertei-o mais contra mim, sentindo o coração dele bater acelerado. — Valeu a pena sim. Porque esse menino que escreveu aquele poema é o mesmo homem que eu tenho nos braços agora. E eu vou cuidar dele, sempre.

Ele ergueu o rosto e me olhou com uma intensidade que quase me desmontou. Havia uma mistura de fragilidade e força nos olhos dele, como se ainda fosse aquele garoto perdido, mas ao mesmo tempo fosse o homem que aprendeu a lutar contra tudo. Eu beijei a testa dele devagar, depois os lábios, e ficamos assim, trocando carícias silenciosas, como se não precisássemos de mais nada além daquele momento.

O silêncio da noite nos envolvia, mas era um silêncio confortável, cheio de significados. Enquanto acariciava suas costas, percebi que meus pensamentos corriam soltos. Imaginei o Rafa criança, sentado em algum canto, escrevendo aquele poema sem saber ao certo o que sentia. E depois imaginei o Rafa de hoje, deitado comigo, forte, decidido, mas ainda com aquele coração sensível que nunca mudou. Era como se o tempo tivesse apenas amadurecido o que já existia.

— Sabe o que eu mais amo em você? — perguntei de repente.

Ele arqueou a sobrancelha, curioso. — O quê?

— Que, por mais que você tenha crescido, se transformado, conquistado tanta coisa… você ainda carrega dentro de si aquele menino. Ele não desapareceu. Ele só encontrou alguém que pudesse enxergá-lo de verdade.

Rafa fechou os olhos, respirando fundo, como se minhas palavras fossem um alívio. — E você enxerga.

— Eu enxergo — confirmei, apertando-o ainda mais contra mim. — Eu sempre vou enxergar.

Ficamos em silêncio de novo, e o sono começou a pesar em mim. Mas, antes de adormecer, ainda pude sentir o Rafa me puxando levemente pelo queixo para um beijo demorado, cheio de calma. Não era um beijo urgente. Era um beijo que dizia “eu estou aqui, e vou ficar”.

Naquele instante, com ele nos meus braços, o caderno azul sobre o criado-mudo e as fotos no guarda-roupa guardando nossa história, eu soube com toda a certeza: aquele menino que escrevia versos pequenos sobre existir tinha finalmente encontrado um lugar. E esse lugar era comigo.

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Foto de perfil de T. Lys. RT. Lys. RContos: 18Seguidores: 4Seguindo: 2Mensagem "Escrevo com o coração em carne viva, transformando dor, amor e redenção em capítulos que sangram poesia — onde cada palavra carrega o peso da verdade e o alívio da esperança."

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