Ao olhar para trás, me deparei com o quebra-cabeça montado, com apenas uma peça faltando ser colocada. Resolvi não comentar sobre, mas, pelo visto, algo iria acontecer ali.
Ao terminar o café, Sr. Zé pediu para que os três filhos conversassem. Pedi que Kaique e Milena fossem arrumar suas mochilas e já ia saindo com meus sogros, contudo, Juh segurou meu braço para que eu ficasse.
— Não vai, não — ela pediu.
— Tem certeza? — questionei.
— Tenho muita — a gatinha respondeu, e eu fiz o que ela queria.
Sentei novamente ao seu lado e depositei uma sequência de beijinhos no pescoço dela.
— Parece até que nós vamos atacá-la — Lana murmurou para Iury, mas conseguimos ouvir perfeitamente.
Nesse momento, Júlia deu um forte tapa na mesa, que chamou a atenção de todos nós.
— É claro! É o que vocês mais gostam de fazer! — Juh disse, em tom alto e com a voz clara.
Nem eu, nem eles esperávamos aquela reação. Inclusive, os dois arregalaram os olhos de maneira quase imediata.
— A ideia foi minha, Iury apenas executou. Desculpa — Lana falou, de braços cruzados e com certa má vontade no tom de voz.
— Eu executei porque quis, não porque Lana mandou... Desculpa! — meu cunhado disse, com um tom mais manso que o da irmã.
— Assim é fácil — comentei, impaciente.
— A gente quer se desculpar pelo que aconteceu e não queremos mais causar confusões — Iury continuou.
Lana revirou os olhos e levantou-se da mesa. Quando retornou, tinha a caixa do quebra-cabeça em suas mãos.
— Nós montamos durante a madrugada — ela disse, deixando na frente de Juh e mostrando a única peça que faltava.
De imediato, Júlia já se derreteu inteira pelo gesto mínimo, e eu pensava somente em como a maneira dela reagir não ajudava em nada em relação a eles perceberem que erraram e que não estava tudo bem agir daquela maneira.
Ela ficou um tempo olhando, impressionada, cada detalhe da foto e passando o dedo onde via alguns excessos de cola já seca.
— Alguém pediu para vocês montarem? — Juh perguntou, séria.
Eles se entreolharam, mas nada disseram.
— Mandaram a gente pedir desculpas — Iury começou.
— Porém, montamos porque achamos que era o certo. Ninguém pediu — Lana continuou.
— Não sei se você vai acreditar, mas pode perguntar aos nossos pais, se quiser — minha cunhada falou.
— Não precisa... Eu gostei muito disso — Juh disse, já com um sorrisinho de canto.
Respirei fundo, e ela apertou minha coxa, acredito que como um pedido para eu ter calma.
— Você perdoa a gente? — Iury quis saber.
— É... sim... mas... é muito difícil manter a nossa relação assim... A gente não desenvolve nunca, só brigamos. Nós não conseguimos concordar uns com os outros por muito tempo, nem ficar no mesmo espaço sem causar uma confusão... Isso é muito cansativo, e eu não quero continuar assim... — ela começou a dizer.
— Somos muito diferentes... — Lana comentou.
— Gente, vocês são diferentes, mas isso não justifica que se machuquem constantemente. Tenho observado Júlia se esforçando repetidamente para se aproximar, mas, em troca, ela tem recebido apenas respostas duras. Essa dinâmica não é saudável. Sei que conheço vocês há pouco tempo e reconheço que passaram por experiências muito difíceis, que ninguém deveria enfrentar. No entanto, é importante compreender que ninguém aqui tem culpa do que aconteceu, e estamos empenhados em oferecer todo o suporte necessário para ajudar na cura dessas feridas. Se houver disposição de ambas as partes, acredito que vocês podem superar essa barreira e, no mínimo, estabelecer uma relação baseada em respeito e educação — falei, como um desabafo.
— Eu não estou pedindo que vocês me amem, apenas harmonia... Quero viver em paz e que nossos pais sintam essa paz... Então, tomei uma decisão definitiva em relação a nós três — Juh disse, hesitante.
Sua voz estava trêmula, e eu já a conhecia há tempo demais para saber que ela queria chorar, mas seguraria até onde conseguisse.
— Qual? — Iury questionou, visivelmente nervoso.
— Não vou mais correr atrás. Vou continuar ajudando com os médicos, marcando consultas, exames e terapias, mas... nada além disso. Se vocês quiserem saber sobre mim e me conhecer de verdade, estou à disposição, porém, não vou fazer mais nada na intenção de construir uma ponte entre nós. Acredito que ninguém pode negar que a minha parte eu fiz... — Juh disse.
Eu gostei da posição que a gatinha tomou, mesmo sabendo que, muito provavelmente, aquilo não aconteceria, visto que Juh não consegue não estender a mão, não tentar ajudar e ignorar quem ela ama e se importa. Mas, pelo menos, serviu para dar um susto nos meus cunhados, que ficaram visivelmente impactados com a declaração.
Eles concordavam balançando a cabeça de maneira positiva quando algo aconteceu. Ouvimos um barulho de carro e, quando olhamos pela janela, era um veículo conhecido — e a pessoa que desceu dele também.
Meus sogros foram depressa em direção à varanda, parecendo preocupados com aquela inesperada visita da assistência social da Vara da Infância e da Juventude.
Lana correu para o quarto, já chorando, e Iury a seguiu, correndo, tentando alcançá-la.
— Lanaaaa, me espera! — ele falou, quase em um sussurro.
Juh olhava para fora e em direção ao quarto. Nós não estávamos entendendo a situação.
— Ué, do nada... Estava marcado? — perguntei.
— Será que alguém denunciou algo? — Júlia quis saber, já deixando algumas lágrimas escaparem.
— Não... Quer dizer, acho que não — respondi, tentando ver melhor o que acontecia.
— Amor, vai lá falar com eles — ela disse, tentando me puxar.
— Quê? Não, amor... Vou falar o quê? Vai você, que é irmã — falei, tentando escapar.
— Não... Acabei de dizer que não vou mais atrás e eu nem sei o que falar, você sempre sabe. Vai!!! — Juh disse, me empurrando com toda a força na direção do quarto da minha cunhada.
— Ok, eu vou... — aceitei, rendida.
Entrei lá e eles estavam abraçados, os dois choravam e tentavam adivinhar o que realmente tinha acontecido.
— A culpa é minha, eu que pedi para me devolverem — Iury disparou, em um tom um pouco mais alto do que estavam falando.
— Não, não... Eu não sei o que está acontecendo, mas tenho certeza de que ninguém pediu para devolver vocês. Nós somos uma família, e não dá para devolver um membro, porque já faz parte de nós. Seus pais te amam, sua irmã também... Logo alguém vem aqui explicar, mas tirem isso da cabeça, vocês não são objetos para serem devolvidos — falei, fazendo um sutil carinho nos dois.
Logo a porta se abriu. Obviamente, ela não ia aguentar ficar do lado de fora. Eu sabia disso e já esperava a entrada do meu amorzinho. Ela chegou bem devagar e agachou, ficando na altura do joelho deles. Não estava mais chorando, mas seu rostinho mostrava que, a qualquer momento, poderia voltar.
— Eu não vou deixar nada de ruim acontecer com vocês — Juh falou e os abraçou de uma só vez.
Saí devagarinho do quarto, fechando a porta com cuidado para deixá-los juntos. Queria dar espaço para que Juh tivesse aquele momento sem mais da minha interferência.
Enquanto descia o corredor, tentando assimilar tudo, uma lembrança me veio à cabeça como um estalo: em alguns casos de adoção, existe uma visita facultativa, feita dentro do primeiro ano, justamente para verificar se a adaptação está correndo bem.
Abri a porta novamente, sem fazer barulho demais. Júlia ainda estava abraçada com os dois, os três encolhidos em lágrimas.
— Ei, lembrei de uma coisa agora... Em alguns processos de adoção, a Vara da Infância manda alguém visitar depois de um tempo, só para saber se está tudo certo. Pode ser isso, não devolução nem nada parecido — falei, querendo tranquilizá-los.
— Teve isso na de Kaká? — Iury perguntou, com um tom de voz dengoso.
— Não, mas nos avisaram que poderia acontecer — expliquei.
Eles não pareciam exatamente tranquilos, porém, menos aflitos do que minutos atrás.
Não quis alongar mais. Toquei o ombro da minha gatinha e saí de novo, dessa vez indo até a pousada.
Encontrei Kaique e Milena parados na janela do quarto, as mochilas intactas no chão, ainda bagunçadas. Os dois espiavam com um ar curioso, tentando entender a cena na varanda.
— Mãe… quem é aquela mulher? — Kaique perguntou, sem tirar os olhos da figura de blazer claro que conversava com os avós, gesticulando com uma prancheta na mão.
— É… parece alguém importante… Não pode hóspede ainda, né? — Mih questionou, intrigada.
Me aproximei deles e abracei os dois pela cintura, puxando-os um pouco para longe da janela.
— Não, meu amor… ela não é hóspede. Está conversando com seus avós sobre algo da família — falei.
Eles se entreolharam, claramente cheios de perguntas, e eu mesma estava tentando juntar as peças daquele quebra-cabeça.
— Mas por que ela veio? — insistiu Kaique.
— Eu também quero descobrir — respondi, beijando a cabeça dos dois. — Vamos esperar um pouquinho, logo a gente vai saber... E vocês poderiam aproveitar para arrumar essas roupas, não é?
Eles riram e se jogaram juntos contra a cama.
— A gente não pode deixar aqui? — Mih perguntou.
— É... Nós vamos passar uns dias aqui, não vamos, mãe? — Kaique quis saber.
— Larguem de armar, arrumem tudo, e em casa a gente conversa sobre. Ainda tenho que ver com a mamãe de vocês — disse-lhes.
Eles não pareciam satisfeitos, mas fizeram o que eu pedi.
Um tempo depois, eu e meus dois fofoqueiros preferidos estávamos ainda na janela quando vimos meu sogro subir apressado e, pouco depois, descer acompanhado de Juh, Lana e Iury. Antes que eu pudesse segurar, Kaique e Milena dispararam em direção a eles, e claro que eu não tive outra escolha senão ir atrás.
Meus cunhados permaneciam visivelmente tensos, os rostinhos denunciavam o medo de que algo ruim pudesse acontecer. Júlia tentava manter a serenidade; não chorava, não tremia, mas também não largava dos dois, acariciando os braços e ombros deles, querendo passar segurança.
Acabamos nos reunindo ali mesmo, e a assistente social, que sempre foi bastante atenciosa, puxou conversa. Foi um papo bom e acabou dispersando o clima pesado. Ela quis ouvir um pouco de cada um, se mostrou interessada em como estávamos nos organizando como família e, ao notar o quebra-cabeça montado sobre a mesa, deu um sorriso caloroso.
Também percebi o quanto ela ficou encantada ao observar Kaique e Milena interagindo com os tios. Os dois, sem nenhuma cerimônia, conversavam normalmente, faziam piadinhas, puxavam Lana e Iury para perto, e no meio daquela bagunça inocente havia um carinho genuíno que não dava para disfarçar.
— Vamos colocar a última peça juntos? — Juh sugeriu, com aquele jeitinho doce dela.
Os três se inclinaram sobre a mesa e, com as mãos sobrepostas, encaixaram a peça que faltava. Um gesto simples, mas que parecia costurar ali a sensação de pertencimento que todos buscavam.
Quando a assistente social finalmente se despediu, o ar dentro da casa mudou. Era como se todos nós tivéssemos soltado um suspiro longo e necessário e como se um peso imenso saísse dos nossos ombros.
Do nada, Sr. José começou a rir alto e, inicialmente, nos assustou, mas logo todos entramos no mesmo barco. Um riso incontrolável tomou conta da sala. Por mais que eu entendesse que era de alívio, era engraçado a gente não precisar dizer palavra alguma para dar início àquela crise de riso.
Um pouco depois, nos dirigimos para casa. Mih e Kaká não resistiram e dormiram o caminho inteiro, um encostado no outro, enquanto Juh e eu aproveitamos para conversar — afinal, depois eu iria para a filial e só chegaria à noite.
— Amor, você se importa se eu não me envolver mais nessas tretas de vocês? Eu realmente torço para que não aconteça mais nada do tipo, mas eu não quero mais ficar vendo você sofrer com as crueldades que eles aprontam sem poder te defender... Até porque o meu jeito de resolver é diferente do seu — falei, com cuidado.
Ela ficou quieta por um momento, olhando pela janela como se buscasse as palavras certas. Então respirou fundo e sorriu — aquele sorriso animado que sempre iluminava até as conversas difíceis.
— Eu realmente acredito que eles não vão mais fazer essas coisas feias... Hoje nós tomamos um grande susto, mas serviu para que a gente conversasse com sinceridade. Acho que criamos ou reforçamos um laço — Juh respondeu, esperançosa.
Eu não tinha a mesma convicção. Eu conheço minha muiezinha e sei o quanto Júlia é sensível. Eu já me preparava para expor meu receio, mas ela não me deixou terminar.
— Eles disseram que me amam! — exclamou, dando pulinhos no banco.
Era impossível não me contagiar com aquela felicidade pura, mas também impossível ignorar o medo de que, em algum momento, ela pudesse se machucar de novo. Ainda assim, segurei sua mão e sorri. Porque, no fim das contas, se havia alguém capaz de transformar desavenças em laços, era ela.
Chegamos em casa e eu sabia que íamos ficar enrolando para ficarmos mais um tempinho juntas.
— Vai dar tempo de tomar um banho rapidinho comigo antes de ir para o hospital? — Juh perguntou, com um sussurro manhoso, encostando a cabeça no meu ombro.
— Vai dar tempo de eu te encher de beijo antes de sair, banho não sei… — respondi, dando uma risadinha.
Ela bufou, fingindo estar emburrada, mas já me puxava pelo rosto para me beijar. Um beijo demorado, que já me deixou morrendo de saudade.
Fomos até o quarto porque eu precisei organizar algumas coisas na mochila para levar comigo, e ela ficava me seguindo de um lado para o outro, encostando em mim, puxando minha blusa, tentando me distrair — e eu me distraía por livre e espontânea vontade.
— Você parece que vai viajar por um mês, Lore… — disse, com o biquinho mais irresistível do mundo.
— É só até de noite, amorzinho... Quando você menos esperar, já estou de volta, grudada em você... — respondi.
— Não quero que você vá... — Juh falou, se jogando na cama.
Larguei tudo e deitei por cima dela, cobrindo seu rosto de beijinhos rápidos. Ela ria e tentava desviar, mas sempre voltava para me agarrar de novo.
— Você vai me deixar, é? Tem certeza? — murmurou entre risos.
— Nunca, meu amor. Eu só vou trabalhar um pouquinho… e voltar correndo pra você — falei, colando minha testa na dela.
Ela suspirou fundo e me abraçou tão apertado que parecia querer me fundir ao corpo dela.
— Promete que vai voltar cedo? — pediu baixinho.
— Prometo. E vou voltar pronta, só pra você me agarrar do jeito que quiser — provoquei, mordiscando seu lábio.
— Ai, Lore… — ela riu, escondendo o rosto no meu pescoço, sem querer soltar, e depositando vários beijos.
Ficamos ali mais um tempinho, enroladas em carinhos, até que precisei realmente levantar. Juh segurava meu braço toda vez que eu tentava me afastar, e isso me fazia rir.
Deixei um último beijo demorado nela, que me acompanhou até o carro.
Antes de fechar a porta, ainda ouvi sua voz manhosa: — Vai logo, pra voltar logo…
— Claro, minha gatinha... Volto logo pra ti — confirmei.
E saí sorrindo, com o coração quente de tanto chamego.
O dia se transcorreu normalmente. Consegui resolver tudo na filial sem grandes imprevistos, ainda que a saudade me cutucasse de vez em quando, me fazendo olhar o celular só para ver algumas mensagens da minha esposa ao longo da tarde.
Quando anoiteceu, finalizei as pendências e peguei o carro de volta, já imaginando minha gatinha me esperando. Estava cansada, mas com aquela vontade gostosa de chegar em casa e tê-la em meus braços.
Assim que abri o portão, percebi as luzes baixas da varanda. E lá estava Júlia, com uma camisola vermelho-escuro cheia de renda, uma taça de vinho na mão e um sorriso que não deixava dúvida sobre suas intenções.
Eu só pensei uma coisa: aquela noite prometia... 😏🔥