Eu, o estivador e o filósofo

Um conto erótico de Pil.lo
Categoria: Gay
Contém 1332 palavras
Data: 18/09/2025 08:00:09
Última revisão: 19/09/2025 19:56:58

Cais do Porto de Todos os Santos, tarde.

O cheiro de sal e ferrugem me acompanha como sempre. O capote grosso pesa nos ombros, suado do dia inteiro de carga. Meus braços ainda latejam do esforço, mas é um cansaço bom, viril. O cigarro de palha se acende entre os dedos calejados — fino, firme, quente. Faço questão de deixá-lo pendurado no canto da boca, como aviso, como falo em brasa. Sopro a fumaça devagar, vendo ela se perder no ar cor de cobre.

E então ele aparece.

“Antônio”.

Mesmo sem saber o nome dele, o batizo assim, sem querer. É instantâneo.

Ele vem com um grupo de jovens, rindo alto, como se o mundo fosse leve. E talvez seja, pra quem tem aquele corpo — definido, mas solto, como se dançasse mesmo parado. Camiseta branca, colada no peito, solta na cintura. Short azul claro, marcado. Tênis gasto. O sol bate nas pernas dele e parece que o mundo inteiro se curva pra ver.

Eu fico parado. Só observo.

Ele não me vê. Nem imagina que sou um homem de carne e desejo a espreitá-lo. Que por trás do capote sujo e da barba cerrada sou um vulcão. Que cada passo dele me acende. Que cada riso me provoca. Que cada fio de cabelo ao vento me faz querer agarrar, puxar, prender.

Quero que ele erga os olhos e me enxergue. Só uma vez. Que veja o cigarro, a fumaça, o meu peito largo. Que sinta o peso do meu olhar. Mas ele passa. Rindo. Falando de Sartre ou sei lá o quê. Poeta, filósofo, músico. Um corpo delgado e bonito, feito pra ser tocado com palavras e mãos.

Eu fico. Ele vai.

O sol se despede atrás dos guindastes. A luz se esfarela nas águas sujas do porto. O cigarro termina. Fica o gosto dele na boca. E o gosto de Antônio, mesmo sem nunca ter tocado. Um sentimento bom. Mas também é perda. Como se o tivesse amado por um instante. E perdido pra sempre...

Armazém Sant’Anna. Fim de tarde.

O chão de tábuas, gastas pelo tempo e tráfico, range sob minhas botas. O cheiro de fumo em corda me invade antes mesmo de eu chegar ao balcão. Escolho o mais grosso, o mais forte. Um litro de cachaça escura, de garrafa sem rótulo, me acompanha. Peso, cheiro, calor. Tudo em mim é bruto.

O capote ainda está sobre os ombros, mesmo com o sol se pondo. A camisa de flanela, aberta no peito, revela os pelos e o suor seco do dia. O cigarro de palha, sempre ele, pendurado nos dedos como extensão da minha vontade. A brasa arde, mas não mais que o que vem a seguir.

Ele entra.

Antônio.

Perfume amadeirado. Leve, mas marcante. Camiseta fina, quase transparente sob a luz dourada. Short de algodão, tênis branco encardido. Barba rala e encaracolada. O cabelo bagunçado, a pele limpa. Quase um anjo. Um corpo que não carrega peso nem pelos, mas carregado do meu desejo.

Mas ele parece não me ver.

Se aproxima. Olha o fumo. Olha a bebida. Sinto-me sombra. Um objeto a mais entre tantos do armazém.

E então, sem aviso, sem palavras, sem querer, talvez armadilha ou jogo do destino ou dos deuses, nossas mãos se tocam.

Ele pega o mesmo fumo. Nossos dedos se encontram. Um toque. Um segundo. Um universo. Sem carícias. Apenas toque.

A pele dele é quente. Macia. Jovem. A minha, calejada, dura, marcada. Fria. Mas naquele instante, não há diferença. Há fogo. Há silêncio. Há tudo.

Antônio nada diz. Eu menos digo. Os olhos dele se perdem por um instante nos meus. Um leve tremor nos lábios. Um respiro mais suave. E então ele se afasta. Sai... Vai embora.

Mas não vai.

Fica.

Fica no cheiro. Fica no toque. Fica no desejo.

Eu fico parado. Com o fumo na mão. Com a bebida no braço. Com o cigarro queimando entre os dentes. Em fumaça. E com a alma em brasas.

Sinto culpa. Sinto perda. Sinto que talvez eu seja velho demais, bruto demais, diferente demais.

Mas também sinto que, por um instante, ainda que um átimo de segundo, sou visto. Sou desejado. Sou tocado.

E isso... arde mais que qualquer coisa ou cigarro...

Bar de Santo Antônio, noite.

A noite cai com cheiro de flores e cerveja. Primavera recém-nascida, ainda tímida, mas já quente. A rua pulsa — turistas, risos, estivadores largados em cadeiras de plástico, corpos suados, vozes roucas. Música ao fundo, entre samba e bolero.

Estou sentado, como quem não espera nada. Capote pesado, camisa aberta, cigarro de palha aceso. Sou sombra.

Ele aparece como luz.

Antônio.

Camiseta preta justa, short de linho, perfume amadeirado que se mistura ao aroma da noite. Ele me vê. Sorri. Se aproxima. Sem medo. Sem dúvida.

— Qual seu nome? — pergunta, direto, com voz baixa.

— Asgard — respondo, como quem entrega um segredo.

O nome paira no ar como promessa.

Antônio toca meu braço. Toque leve, mas firme. Intencional. Nossos olhos se encontram. Há silêncio. Tensão. Desejo.

A noite se desenrola em passos lentos. Antônio me conduz. E eu o sigo.

Eu, estivador, acostumado a portar o peso do mundo, me deixo guiar pela leveza do poeta.

Chegamos ao quarto. Pequeno, simples, lençóis brancos. A porta se fecha com som seco. O mundo fica lá fora.

Antônio me olha como quem lê um poema proibido. Eu, feito de ferro e silêncio, estremeco e derreto. Medo, encanto, expectativa.

Ele toma o controle, se aproxima decidido. O perfume dele agora se mistura ao cheiro da cachaça ainda em minha pele. A camiseta já não cobre nada. O short cai com um gesto. E eu, com capote jogado no chão, corpo exposto, me deixo ficar.

Não há palavras. Quando ele me toca, ainda de pé, o calor vira febre. Antônio tem firmeza que não vem da força, mas da certeza. Ele sabe o que quer. E eu, pela primeira vez, quero o que ele quer.

Me deita com cuidado, como quem prepara um altar. Lençol frio vira palco. Meu corpo, sempre ferramenta, é território. Ele, explorador.

Então, me toca como quem conhece o caminho. Mãos firmes, mas suaves. Beijos que não pedem licença. Me domina com a leveza de quem sabe que o poder não está na força, mas na intenção.

Ele é fome. Sou objeto e comida. Ele me toma e possui. Quase selvagem. E eu, dominador, agora sou dominado.

Cada entrada é comando. Cada gesto, ordem que meu corpo obedece sem resistência. Ele me vira, me revira, penetra mais fundo, lugar onde ninguém ousou ir, risco de morte. Sou dele.

Respiração firme. Posse, não com violência, mas precisão. Como encaixar nota perfeita num acorde. Como saber que o corpo também é música.

Sinto tudo. Cada avanço, pausa, nervura, centímetro. Mundo inteiro se concentra naquele movimento. Vai e vem. Meu corpo arqueia, se abre, se entrega. E ele me preenche com carne, fogo, ardor, presença, desejo, cuidado.

Não há palavras. Só sons. Baixos, secos, roucos, entrecortados. Ritmo tenso, depois lento, depois urgente. Eu, estivador, que sempre sou o que carrega e segura, me deixo ir. Me deixo ser. Estivado.

Gozo vem como maré alta. Não é explosão. É inundação. Calor sobe da base da coluna até o último fio de cabelo. Tremor que não se vê, mas se sente. Grito que não sai, mas ecoa por dentro.

Antônio me segura. Me olha. Me acolhe. Me envolve.

Eu, nu, suado, marcado, sei que sou dele. Inteiro. Mais homem por me deixar ser tomado.

Fumaça do cigarro no cinzeiro ainda sobe. Como lembrança. Como símbolo. Falo apagado, mas presente.

Ali, entre lençóis e silêncio, sei: o cais nunca me toca como ele.

Noite longa. Sem descanso, sem sono, sem calmaria. Só entrega. Só desejo. Só paixão.

Pensão de Santa Maria, manhã.

E quando o sol começa a nascer, ele dorme ao meu lado. Corpo leve, respiração calma. Eu o olho, fumando um último cigarro de palha.

Estou ali — nu, molhado, marcado. Mas não quebrado. Pela primeira vez, inteiro.

E agora?

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