✧ Velocidade Impossível ✧
(Lucas)
O beijo terminou, mas sua essência permaneceu, uma corrente crepitante no ar rarefeito do labirinto. A eletricidade entre nós zumbia mais alto que qualquer magia que eu já sentira, um eco silencioso do trovão que havíamos nos tornado. Mantive o rosto dele entre minhas mãos por um instante a mais, um gesto desesperado para ancorar aquele momento na realidade. Eu precisava sentir a solidez dele sob meus dedos: o pó de pedra em seus cabelos negros, o cheiro agudo de ozônio e chuva que pairava sobre ele como uma aura, a força contida de seus ombros. Era real.
Quando finalmente nos afastamos, meu olhar foi atraído pela escala da destruição que ele causara. E foi então que eu vi uma entrada secreta. Quebrei a parede com a minha magia e, em meio ao pó dos escombros, algo brilhava com uma luz intermitente, um brilho familiar em cima de um pedestal. O par. A outra Bota Relâmpago. Eu a peguei, o couro ainda quente ao toque, vibrando com uma energia contida.
“Tiago”, eu disse, a voz rouca, rachada pela emoção acumulada. “É sua. Você é ‘gorduchinho’ e o poder deste calçado o ajudará a ter mais agilidade.”
(Tiago)
O apelido, dito com aquela delicadeza, enviou um calor por meu pescoço que nada tinha a ver com a magia que fervia sob minha pele. Peguei a bota de sua mão, sentindo a magia ressoar na minha, uma promessa de poder que não me pertencia. Com um suspiro, eu a devolvi.
“Não, Lucas.”
Minha voz saiu firme, carregada com uma certeza que me surpreendeu.
“Minha força é a magia bruta, o poder explosivo que vem das minhas emoções. A sua força…”, eu disse, baixando o olhar para seus pés e depois o erguendo para encontrar seus olhos, “…é a agilidade, uma velocidade que desafia a própria percepção. Uma bota te torna rápido. Duas…”
A imagem se formou em minha mente, clara e avassaladora. “…te tornam um relâmpago encarnado. Um raio que ninguém pode prever ou deter. Com esse poder, você pode nos proteger, abrir caminho para nós dois. Por favor. Use-as.”
Minha lógica era irrefutável, um pilar de gelo no caos de nossas emoções. Potencializar nossa maior vantagem era a única escolha tática inteligente. E ele sabia disso.
(Lucas)
Ele estava certo. A lógica dele era tão clara e cortante quanto um caco de gelo, e a confiança inabalável em seus olhos era um peso bem-vindo em meus ombros. Assenti, um nó se formando em minha garganta. Sentei-me em um bloco de pedra lascada e desamarrei a bota mundana que me restava, substituindo-a pela sua contraparte mágica.
O momento em que a segunda fivela se fechou foi transformador. Não era mais um zumbido localizado; era um circuito fechado, uma sinfonia de poder. Uma torrente de energia subiu por minhas pernas, percorreu minha espinha como um raio líquido e fez cada fio de cabelo em meu corpo se arrepiar. Eu me sentia absurdamente leve, como se a gravidade tivesse se tornado uma sugestão que eu poderia educadamente recusar. O mundo ao meu redor parecia ter diminuído a velocidade em uma fração de segundo. Olhei para Tiago, que me observava com um misto de orgulho exausto e fascínio.
“Tudo bem, mago pesado”, eu disse, um sorriso confiante se espalhando em meu rosto. “Se vou ser o transporte, então vamos fazer isso direito.” Virei-me e me agachei, oferecendo minhas costas. “Sobe aí.”
(Tiago)
Hesitei por menos de uma batida de coração antes de envolver meus braços em seu pescoço e me acomodar em suas costas. A familiaridade daquele contato era um bálsamo, mas o que se seguiu foi tudo, menos familiar.
Com um zumbido baixo que escalou para um trovão contido, Lucas disparou. O mundo se dissolveu. O labirinto deixou de ser um lugar de pedra e sombra e se tornou um borrão de estrias cinzentas e rastros de luz das tochas. O vento chicoteava meu rosto com uma força brutal, roubando o ar de meus pulmões e o substituindo por pura velocidade.
Agarrei-me a ele, o som do meu riso sendo arrancado de minha garganta e se perdendo no vórtice que criávamos. Éramos um cometa humano, uma anomalia em movimento, deixando para trás armadilhas esquecidas, corredores sem saída e o fantasma opressivo da solidão. Pela primeira vez em dias que pareceram séculos, o medo era uma memória distante, afogado pela alegria pura e inebriante da liberdade e da certeza de estar com ele.
(Lucas)
Saímos do labirinto não como quem encontra uma saída, mas como uma flecha disparada da escuridão, irrompendo sob um céu vasto e cinzento. O ar frio e limpo da altitude encheu meus pulmões, um alívio agudo após o ar viciado das profundezas. Estávamos em um platô rochoso, varrido por um vento constante que assobiava entre as pedras. A entrada do labirinto, atrás de nós, era agora um mero buraco escuro, desprovido de seu poder.
Com um cuidado que contrastava com nossa saída violenta, coloquei Tiago no chão. Enquanto ele recuperava o fôlego, o rosto corado pelo vento, saquei o Mapa Sussurrante. O pergaminho se desenrolou em minhas mãos e, como se sentisse nossa vitória sobre a terra, começou a brilhar intensamente. As linhas de tinta que mapeavam os túneis subterrâneos se dissolveram, e novas linhas de luz dourada serpentearam pela superfície, reorganizando-se como constelações líquidas. Elas traçaram um caminho ascendente, em direção a uma série de picos pontiagudos que rasgavam as nuvens, interligados por estruturas frágeis que pareciam teias de aranha de pedra e corda. Uma voz, antiga como o próprio vento, sussurrou um nome em minha mente: “Os Pináculos Desfiados”.
(Tiago)
Enquanto eu observava a imagem etérea se formar no mapa, ela se sobrepôs a outra em minha mente, uma visão súbita, violenta e avassaladora. Não era uma imagem, era uma sensação. O uivo do vento se tornou ensurdecedor, a sensação de vertigem me puxou para baixo, para uma queda infinita em um abismo sem fundo. E lá, por um instante ofuscante, o brilho azul-celeste de um cristal pulsando, preso a uma corda que balançava sobre o nada. O Fragmento Astral do Ar. A certeza era absoluta, mas veio escoltada por um terror primordial, um nó de gelo que se formou em meu estômago e subiu pela minha espinha. O platô rochoso pareceu inclinar-se sob meus pés. Tive que me apoiar em Lucas, minha respiração subitamente curta e irregular.
“Lucas…”, murmurei, o rosto subitamente pálido, drenado de cor. “Eu sei o que está lá. O Fragmento do Ar. Mas… eu não posso. O pavor de altura me consome.”
(Lucas)
Antes que eu pudesse formular uma resposta, para dizer a ele que estava tudo bem, que daríamos um jeito, que eu o carregaria por cada ponte se fosse preciso, um movimento na periferia de minha visão, aguçada pela magia das botas, me colocou em alerta. Duas sombras se desprenderam das rochas ao nosso redor, movendo-se com uma sincronia fluida e antinatural. Eram gêmeos, idênticos em cada detalhe sombrio, desde os cabelos prateados trançados com fios de couro até as armaduras de couro escuro, justas e silenciosas. As lâminas curvas que empunhavam pareciam beber a luz ambiente. Seus olhos, da cor de um céu de inverno, eram frios, vazios de qualquer coisa que não fosse um propósito letal.
“As Botas Relâmpago…”, disse um deles, a voz um silvo desprovido de emoção. “…Malakor as quer”, completou o outro, terminando a frase do irmão como se compartilhassem uma única mente, uma única intenção. E sem mais palavras, eles atacaram.
(Tiago)
Não houve aviso, apenas um borrão de movimento coordenado. Eles não eram dois inimigos; eram um único predador com quatro braços e duas lâminas, uma dança letal e calculada. Lucas, impulsionado pelas botas, tornou-se um raio de eletricidade crepitante, empurrando-me para trás no mesmo instante em que suas adagas surgiram em suas mãos. Mas os gêmeos eram diferentes. Cada finta de Lucas era antecipada. Cada golpe era bloqueado não por um, mas por dois oponentes que se moviam como um reflexo perfeito um do outro.
Enquanto Lucas os mantinha ocupados com sua velocidade impossível, uma tarefa que o forçava a estar puramente na defensiva, eu concentrei minha magia. Ergui um vórtice sibilante de água ao nosso redor, puxando a umidade do ar. O escudo desviou um golpe de lâmina que teria decapitado Lucas, a água chiando em vapor onde o aço a tocou. Os mercenários não vacilaram. Suas lâminas cortavam o escudo, que se refez instantaneamente. Eram implacáveis, uma máquina de matar perfeitamente sincronizada.
(Lucas)
Eu era mais rápido, um cometa de fúria e aço, mas eles eram um sistema. Lutavam como um organismo único. Se eu avançava contra um, o outro já estava lá, a lâmina em posição para interceptar, para contra-atacar. Eram um quebra-cabeça mortal feito de reflexos e aço, e a frustração começou a queimar em meu peito. Eu não conseguia encontrar uma brecha. Então, em meio a um ziguezague desesperado, eu vi. Uma falha minúscula, um detalhe na coreografia. Quando um atacava, o outro se movia para cobrir sua retaguarda. Perfeito. Simétrico. Previsível. A sincronia era sua maior força e sua única, e fatal, fraqueza.
“Tiago!”, gritei por cima do choque do metal. “Preciso que você os separe! Apenas por um segundo!”
Sem esperar por uma resposta, mudei de tática. Parei de atacar e comecei a correr, um alvo elétrico e errático, tecendo uma teia de movimentos entre eles, forçando-os a quebrar sua formação perfeita para me seguir. Por um instante precioso, eles se viraram um para o outro, suas costas desprotegidas para o meu mago.
(Tiago)
O grito de Lucas foi o meu gatilho. A abertura era minúscula, mas era tudo que eu precisava. Estendi as duas mãos, puxando a umidade do ar e a minha própria energia em duas manifestações distintas de poder. Minha mão esquerda golpeou o chão, conjurando um gêiser de água pressurizada que explodiu aos pés de um dos gêmeos. A coluna de fúria líquida o desequilibrou, forçando-o a saltar para trás e quebrando completamente a conexão espacial com seu irmão.
Simultaneamente, minha mão direita moldou um projétil de gelo maciço — não uma lança afiada, mas um malho de inverno, rombudo e pesado. Ele se chocou contra o peito do segundo mercenário com uma força esmagadora. O impacto o arremessou contra a parede de rocha com um baque surdo e doentio. Ele deslizou para o chão, inconsciente. O primeiro, agora sozinho, exposto e vulnerável, viu seu irmão caído. Seu rosto, antes uma máscara inexpressiva, se contorceu em algo que se assemelhava a fúria. Mas era tarde demais. Lucas já estava sobre ele, um borrão finalizado com a ponta de uma adaga em sua garganta. A luta havia acabado. Juntos, havíamos desfeito o nó.
Olhei para os picos distantes, o medo ainda um nó gelado em meu estômago, mas agora ele estava misturado com algo novo, algo forjado no fogo e no gelo: determinação. Primeiro, uma parede. Agora, o céu. Nada iria nos parar.
Continua…