DSAFIO DA CASA DOS CONTOS: “Eu me apaixonei pela pessoa errada” pode significar muitas coisas: alguém que não corresponde, que chega no tempo errado, que desperta feridas em vez de curá-las. Mas, no fundo, a pessoa errada não é só quem nos causa dor, é também quem nos ensina — porque o erro, quando não vira prisão, se transforma em aprendizado. Amar o “errado” revela tanto sobre quem foi o outro quanto sobre quem somos nós quando amamos demais.
Caro leitor, você já amou alguém tanto, mas tanto, que chegava a doer? Se sim, seja bem-vindo e bem-vinda à história de como me apaixonei pela pessoa errada.
Nós somos moradores da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Para quem não sabe onde fica, a Baixada é considerada até pior do que as favelas do Rio, onde reinam a pobreza e a desigualdade. Nossas casas ficavam à beira de um valão, por onde o esgoto corria.
Em resumo, éramos muito pobres. Mas quem somos? Eu me chamo Vicente, João Vicente. E ela? Tina, apelido de Maria Cristina. Dona Judite, mãe dela, era uma senhora muito devota. Colocou o nome inspirado em Nossa Senhora e em Jesus Cristo. Como “Maria Jesus” ou “Maria Cristo” soava estranho, decidiu por Maria Cristina. Eu, ainda criança, sem conseguir pronunciar “Cristina”, chamei— a de Tina. E até hoje todos a conhecem assim.
Tina é uma mulher linda: pele branca queimada de sol, magrinha de seios grandes e cara de sapeca. Tem uma pinta preta pequena na bochecha e, quando ri, aparecem covinhas. Cabelos pretos, lisos, com uma franja que cobria a testa — que, por implicância, eu chamava de “cabeçuda”.
Eu? Bom, eu sou um perdedor, e vocês vão descobrir isso ao longo deste relato. Só peço paciência. Nem tudo será como parece — ou talvez seja exatamente como parece. Vocês vão descobrir.
Sou um cara comum, pardo, nem gordo nem magro. O que Deus não me deu em beleza, me deu em inteligência. Tenho duas habilidades que acredito terem vindo do tempo em que precisei compensar outras limitações: sinto cheiros de muito longe e escuto tudo muito bem. Um médico me disse que era meu corpo compensando a visão fraca. Ele chamou de “praticidade cerebral”. Eu sabia que a chuva vinha de longe pelo cheiro, identificava baratas, mofo… e o cheiro da Tina. Flor de tangerina. Na casa dela havia um pé de tangerina que vivíamos subindo. Dona Judite fazia chá, doce da casca, suco, bolo — de tudo.
Eu queria dizer a vocês quando foi que me apaixonei pela Tina. Não sei se foi quando riu de uma piada ruim, quando assistimos ao primeiro filme juntos, quando me defendeu pela primeira vez ou quando dormiu ao meu lado. Sinceramente não sei. Mas estou aqui, há pelo menos 18 anos fingindo que não sinto o que sinto.
A primeira vez que chorei pela Tina foi quando arranjou o primeiro namorado. E a primeira vez que fiquei feliz foi quando terminou. Ela ia pulando de relação em relação, e eu servia de escudo para suas crises emocionais.
É sobre essas crises que vou contar a vocês, e como cada uma delas me destruiu.
Tina era afim de um rapaz da igreja que frequentávamos. Ele era guitarrista, se chamava Samuel, usava boina, alto e magro. Ela só podia sair de casa se fosse comigo, e eu tinha que acompanhá-la nessas aventuras.
— Ei, Vicente, vamos comer alguma coisa depois da igreja?
— Tô sem grana, Tina, não sei se vai rolar.
— Vamos, a gente divide o lanche.
Dei de ombros. Não era a primeira vez que saíamos sem dinheiro para mais de um lanche.
Saímos da igreja e Samuel apareceu com uma flor para ela.
— Uma flor para uma bela moça.
— Obrigada, moço.
Ele sequer me cumprimentou. Não fiz questão de cumprimentar também.
Fomos caminhando, e os dois conversavam animadamente. Eu fiquei esquecido, atrás deles, observando triste. Em algum momento, Tina percebeu minha presença.
— Ei, Vicente, está bem?
Não sei por que ela sempre dizia “ei” antes de me chamar.
— Estou sim, tudo bem.
— Por que tá aí atrás?
— Eu me distrai, foi nada demais
— Então vem com a gente
Ela enrolou o braço no meu e a gente foi caminhando, eles falavam de coisas da Igreja e sorriam e eu fui em silêncio. Até chegar na lanchonete.
— Quanto você tem ? — Ela perguntou baixinho
— Três reais
— Da para um sanduíche com guaravita
— Pode pedir eu não estou com fome, comi antes de ir para a Igreja
Menti, estava morrendo de fome
— Obrigada — disse ela alegre e me abraçando
Os dois comiam e eu observava, não era a primeira vez que isso acontecia.
Na hora de ir embora a casa do Samuel era perto da Tina e longe da minha, chegamos primeiro na dele, e ele convidou ela para ver uma coisa lá dentro.
— Ei Vicente, você me espera aqui, só vou ao banheiro, não vou demorar
— Tudo bem
Ela entrou com ele na casa, era tarde e ela demorou uns 20 minutos lá dentro. Meio descabelada e sorridente.
— Vamos!
Deixei ela em casa
— Ei Vicente, obrigada
— De nada
Fui para casa dormir triste, era a rotina na minha vida imaginar o que Tina teria feito naqueles 20 minutos, transaram? Não importa, o fato é que ela dar atenção a ele me machucava e eu não conseguia me afastar.
Tina tinha mania de me abraçar por trás, e ficar abraçada com a cabeça no meu ombro, estávamos assim e Samuel chegou.
— E aí cara, beleza?
— Tranquilo
— Tina, final de semana de Rosa de Saron, vamos ?
Rosa de Saron era uma banda gospel da época que fazia muito sucesso entre os jovens
— Minha mãe nunca vai me deixar ir, só se o Vicente pedir
— Eu estou sem grana Tina, você sabe
— Isso não é problema eu pago a passagem de vocês, só leva alguma coisa para comer
— Vamos Vicente, por favor
Dei de ombros
E lá estava eu, nem da banda eu gostava, num show no centro da cidade sem um puto no bolso (gíria para sem dinheiro).
Os dois curtiam como namorados, era um campo aberto, e só a parte show era iluminada, os dois sumiram e fiquei andando para achar eles, e escutei de longe o riso da Tina em uma área escura perto dos banheiros químicos.
Me aproximei para chamar eles mas escutei ele falando.
— Vai Tina, só um pouquinho
— Não, alguém pode pegar a gente
— Olha como eu estou durão
Eu consegui ver ele puxando ela pela nuca e ela engolindo o pau dele.
— Isso safada, que boca gostosa
Tina mamava gemendo, huum, huum
— Mama rápido antes que alguém nos veja
Ele segurou na cabeça dela e começou a meter.
— Vou gozarrrr
Ela empurrou ele para não gozar nela e ele gozou no chão
— Porra Tina, você é perfeita
Ainda vi ela limpando o canto da boca e corri chorando pro meio do show no palco a banda tocava uma música triste.
"Minha vida, minha história
Só fez sentido, quando te conheci
Seus olhos, sua face,
Me levam além do que pensei
Se às vezes me escondo, em Você me acho
Nem dá para disfarçar
Preciso dizer você faz muita falta
Não há como explicar"
Eu me misturei a multidão e todos acharam que eu chorava por causa da música, que era mais um fã no meio deles, era só eu sendo patético, não os vi mais naquele show, esqueceram de mim e fui para casa andando.
Andei cerca de três horas, meus pés tiveram bolhas, eu não fui a Igreja naquele final de semana e a minha mãe disse que Tina perguntou sobre mim.
A missa era 8h da manhã, acabava 10h e meio dia Tina estava entrando no meu quarto enquanto eu estava deitado ouvindo Legião Urbana de olhos fechados.
"De tarde eu quero descansar
Chegar até a praia e ver
Se o vento ainda está forte, vai
Ser bom subir nas pedras, sei
Que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora"
Ela puxou meus fones
— Ei Vicente
— Oi Tina
— Você está bem?
— Estou sim
— Vacilei contigo não foi?
— Está tudo bem Tina
— Sua mãe me contou que você chegou pela manhã do show, você deve ter vindo a pé, a gente te procurou e não te achou, achamos que você tinha vindo de carona com alguém
— Está tudo bem, não foi nada demais
— Não está nada demais, você está chateado comigo
— Não estou Tina, sério
— O Samuel convidou a gente para a festa de aniversário dele
— Eu tenho certeza que ele convidou só você Tina
— Não, sério, ele te convidou também
— Eu não vou Tina, ele não gosta de mim, isso está muito claro, e depois do show acho que você também não gosta, é melhor me deixar quieto
— Como é Vicente? Repete o que você falou sobre mim
— Não vou repetir
— Repete Vicente, que eu vou jogar um balde de água
— Você não é maluca Tina
Ela saiu e voltou com o balde e do nada jogou em mim molhando toda a cama
— Caralho Tina! Que merda você fez?
— Repete o que disse
— Não vou repetir porra nenhuma
Ela voltou com outro balde para jogar em mim
— Para! Vai molhar tudo, eu repito, você e o Samuel não gostam de mim, é isso
Ela apertou minhas bochechas
— Eu te amo Vicente, e não vou te forçar a ir nessa festa, me desculpa pelo show, eu nunca iria embora sem você, nunca!
Ela me abraçou e me ganhou como sempre, eu nunca sei se ela me manipula ou se fala a verdade.
Eu não fui a festa, mas ela disse para dona Judth que tinha ido com ela, mentira burra, bastou dona Judith ver minha mãe na rua para comentar sobre a festa e pronto.
— Vicente, filho? Vem cá
— Oi mãe, o que foi?
— Que festa é essa que a Cristina foi com você? A mãe dela tá desesperada atrás dela e disse que vai busca-lá de vara de goiaba.
— Mãe preciso avisar a Tina, imagina a vergonha?
— Corre que eu acoberto vocês
Fui correndo até a casa do Samuel, e me falaram que ela estava no quarto dele a porta entre aberta ouvi gemidos e pela frecha vi Tina cavalgando nele, era uma visão linda e perturbadora, ela de vestido vermelho, esses que não tem dificuldade para transar, basta afastar a calcinha e pronto.
Eu ouvi os gemidos de Tina an, an, aiii aiii
Eu não sabia o que fazer, precisava avisar ela oi deixava a dona Judith pegar ela no flagra
Me afastei uns passos e gritei
— TINA! TINA! TINA!
Ela saiu do quarto assustada, atrás dela Samuel Colocava as calças
— O que foi Vicente caralho?
— Empata foda do cacete, que moleque otário
— Sua mãe tá vindo aí te pegar, precisamos ir, anda, se recomponha
— Puta que Paril, puta que paril, puta que paril
— Vem Tina, vamos para minha casa
— Gata a gente termina depois o que começou
Ele deu um beijo nela e saímos correndo, ela se arrumou na minha casa e fingimos ver um filme
— Maria Cristina cadê você garota?
— Estou aqui mãe, o que foi?
— Você não ia para uma festa?
— Ia dona Judith, mas eu passei mal e ela ficou aqui
— É verdade Judith eu só sou e quando cheguei em casa — respondeu minha mãe
— Garota, garota, eu não nasci ontem, vamos para casa
Dona Judith se virou para mim
— Meu filho, você é um bom amigo para ela, eu agradeço a Deus por ela ter você, e só por isso ela não vai tomar uma surra, aquele garoto estranho não demorou um segundo para entregar vocês.
Tina ficou de castigo por uma semana, fui ver ela quando dona Judith deixou
— E aí? Como você tá depois de estar encarcerada?
— Aquele filho da puta me entregou, que desgraçado
— Talvez não tenha sido como dona Judith contou
— Vem comigo Vicente
E lá fui eu acompanhando ela até a casa do Samuel, quando ele nos viu já provocou
— Lá vem o empata foda
— Porque você me entregou para minha mãe?
— Eu não sabia que era segredo gata, foi mal
— E pode parando de tratar o Vicente assim
— Claro gata, estamos bem né cara?
Balancei a cabeça afirmando
— Querem entrar?
— A gente precisa ir
Ela beijou ele, terminou tudo e saímos, era normal ela fazer isso no caminho ela foi para casa e eu fui ao mercado, na volta Samuel e os amigos me viram
— E aí cara, chega aí
Ele me abraçou pelos ombros e me levou para perto dos caras.
— Fala a real aqui para gente, você é viado?
— Não sou
— Então porque não deixa minha mina em paz
— Nós somos amigos
— Amigo de cu é rola, você vai para de empatar nossa foda entendeu?
— Eu só fui ajudar ela, nada demais
— Você precisa é de um pau nesse cu, seu viadinho do caralho
Com a cabeça baixa quase chorando um deles me deu um tapa na bunda
— Até que ele tem uma bundinha gostosa
Eu ameacei correr e um deles me deu uma banda, e começaram a me chutar.
— Na cabeça não galera, na cabeça não.
— Você vai sumir da vida dela seu viado otário
Com muito custo eu levantei e fui embora sentindo muita dor e me tranquei em casa, no meu quarto. Tina tentava contato, mas não conseguia.
— Por favor Vicente abre essa porta e me diz o que aconteceu
Eu não respondia, queria sumir, alguns dias depois ela bate na porta de novo
— Vicente abre por favor
Ela começou a chorar
— Eu preciso de você, do meu amigo, me conta o que está acontecendo
Ouvir ela chorar era demais para mim, abri a porta e ela pulou em mim chorando e ficou abraçada um tempo
— Sem mentir Vicente, o que aconteceu?
— Nada Tina, nada
Com o abraço a camisa levantou e ela viu o roxo dos chutes
— Que isso Vicente!
— Nada Tina, me deixa
Ela foi levantando minha camisa e estava cheio de hematomas
— Quem fez isso? Fala senão eu chamo sua mãe aqui
— Samuel e os amigos, com ciúmes de você
Ela abaixou colocando as mãos no rosto
— Eu resolvo
— Não Tina, melhor não
Tina tem três irmãos mais velhos, bem mais velhos que me amavam, a família dela toda me amava, mas eles não moram aqui, tem suas famílias, não sei como, mas ela reuniu todos eles e eu. Marcio, Marcos e Mário, são conhecidos como 3Ms na área, cresceram ali e eram respeitados.
— Vamos Vicente, mostra quem são os caras
— Do Samuel cuido eu — Disse a Tina
Ela bateu na porta dele, e quando ele saiu ela mandou
— Que porra é essa de você e seus amigos baterem no Vicente?
— Calma gata, vamos entrar que eu explico
Ela deu um tapa na cara dele que estalou e ficou a marca da mão
Ele ameaçou revidar mas viu os três atrás dela, ele correu trancando a porta e ela pegou uma barra de ferro de um dos irmãos e bateu no portão até quebrar, era aqueles de alumínio.
Os outros tomaram o apavoro dos 3Ms e depois a gente foi comer, e eles foram para as suas famílias, mas deixaram claro para a comunidade que ninguém podia mexer com a gente, talvez por isso Tina fosse desse jeito, meio menino, que briga e grita.
Tina estava calada aí meu lado na minha cama, ela foi se esgueirando até colocar a cabeça no meu peito.
— Eu te amo Vicente, sempre foram nós dois contra mundo, Você é a minha pessoa
— Também te amo Tina, você é a minha pessoa
— Me perdoa por isso
— Eu nunca te culpei
Essa foi uma das vezes que Tina me colocou em furada e no final resolveu e acreditem, tem muitas outras. Como quando virei chacota porque ela me arrumou um encontro duplo.
NOTAS DO AUTOR: A história e baseada em fatos reais, vivida por esse que vos escreve com tons de ficção, escrever tudo como de fato aconteceu não empolgaria tanto quanto a maneira como eu vi a situação. A Tina não é uma pessoa que amei, mas três que idealizei a personagem e a história, poderia ter 30 partes ou mais, só não queria tornar tudo muito repetitivo.
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