✧ Absolvição ✧
(Lucas)
A lâmina fria tremia em minha mão, um espelho irregular que refletia um monstro. O aço, com o cheiro de chuva e sangue futuro, pairava a meros centímetros de rasgar meu peito e silenciar a agonia que rugia dentro de mim. O mundo inteiro havia se contraído àquele ponto de aço polido e à promessa da escuridão que eu tanto merecia. Contudo, antes que a vontade se convertesse em ato, uma onda de poder emanou do corpo caído de Tiago. Não era a barreira defensiva que me repelira antes, nem a rajada de energia curativa. Era algo mais sutil e infinitamente mais invasivo: uma maré de energia calmante, um oceano de esmeralda morno e silencioso que me engoliu por inteiro.
A fúria cáustica, o autodesprezo que corroía minha alma, a angústia que me estrangulava… tudo se dissolveu como sal naquela paz imensa e verdejante. Meus músculos, traindo meu desespero, relaxaram contra a minha vontade. A espada escapou de meus dedos com um retinir metálico na terra limpa, um som final e patético. Meus olhos pesaram, e a escuridão que veio não foi a do esquecimento da morte, mas a de um sono profundo e sem sonhos — um alívio forçado que meu corpo exausto aceitou com uma gratidão humilhante.
(Tiago)
Acordei com um sobressalto, o ar frio um choque em meus pulmões, impregnado pelo cheiro forte de ozônio e terra úmida. Acima, a lua cheia era um olho prateado e indiferente, derramando uma luz fantasmagórica que transformava as árvores do pântano em espectros retorcidos. A última coisa de que me lembrava era o chão correndo ao meu encontro, a escuridão me tragando.
Olhei ao redor, a mente um nevoeiro, e então meu coração parou. A poucos metros, Lucas dormia, seu peito subindo e descendo num ritmo tão sereno que parecia uma mentira. Ao seu lado, cravada na terra como uma lápide, estava a espada que eu lhe dera. Por quê? Um resquício da minha própria magia ainda pairava no ar, uma ressonância familiar que vibrava em minhas veias e tinha gosto de tempestade passada. Foi então que as peças se encaixaram com um clique terrível. Eu não havia apenas desmaiado. Meu poder, agindo por um instinto primitivo de autopreservação, fizera algo mais. Ele nos protegera. E, ao olhar para a paz forçada no rosto de Lucas e para a arma abandonada ao seu lado, comecei a suspeitar que ele o havia protegido dele mesmo.
(Lucas)
A frieza cruel do anoitecer me arrancou da inconsciência. A umidade do solo gelava meus ossos, mas foi a lembrança do que eu quase fiz que me atingiu como um raio. A memória da lâmina contra minha pele, da intenção sombria, foi tão visceral que engasguei, o ar se recusando a entrar. Meu corpo inteiro se arrepiou, não de frio, mas de uma onda de pura e absoluta repulsa por mim mesmo.
Sentei-me bruscamente e vi Tiago. Ele já estava acordado, observando-me com uma expressão que eu não conseguia decifrar. Seus olhos, que antes haviam refletido medo e depois determinação, agora continham uma espécie de curiosidade cautelosa, uma quietude interrogativa que era, de alguma forma, pior do que a condenação.
Incapaz de suportar seu olhar — o olhar de quem eu quase profanei — arrastei-me para trás como uma criatura ferida, a lama sujando minhas calças, colocando o máximo de distância possível entre nós. A vergonha era um veneno espesso em minha garganta. Ele sabia. Não precisava de palavras para entender o quão perto eu cheguei de destruir tudo. Cada centímetro que me afastava era um grito silencioso: “Fique longe de mim, sou uma praga!”.
(Tiago)
Sua reação me feriu mais do que qualquer golpe físico poderia. Ele se afastava como se eu fosse a fonte de sua dor, o monstro no pântano e não o contrário. Seus olhos, que eu vira arder com o fogo da arrogância e do poder, agora estavam turvos, afogados em medo e autoaversão. Era como observar um falcão magnífico quebrar a própria asa. Levantei-me lentamente, mantendo as mãos abertas e visíveis, o mesmo gesto que usaria para acalmar um animal assustado.
“Lucas”, chamei, e minha voz saiu mais suave do que eu pretendia, quase um sussurro na quietude do pântano.
Ele se encolheu como se a palavra fosse uma chibatada. Ignorei seu tremor e a barreira de medo que ele erguia entre nós, diminuindo a distância.
“O que aconteceu depois que eu desmaiei?”, perguntei, ajoelhando-me à sua frente. “Por que a espada estava ao seu lado?”
Eu precisava saber. Precisava olhar para a escuridão que o consumia, que o fazia me encarar como se eu devesse odiá-lo, e entender seu nome.
(Lucas)
“Não chegue perto!”, rosnei, a voz um som rasgado e animalesco que mal reconheci como meu.
Mas ele não ouviu, ou escolheu não ouvir. Ele se ajoelhou na minha frente, seu rosto muito próximo, sua presença uma acusação silenciosa de tudo o que eu era. As palavras para responder à sua pergunta se formaram, mas morreram em minha garganta, um nó de veneno e verdade. Como eu poderia dizer: “A voz do Necromante dentro de mim, a fonte da minha danação, me ordenou que te tomasse, que te quebrasse, e por um instante terrível, eu quase obedeci?”. Como admitir uma fraqueza tão abjeta, uma corrupção tão profunda?
Lágrimas de frustração e ódio de mim mesmo brotaram quentes em meus olhos, turvando sua imagem. Desviei o rosto, incapaz de encará-lo. Foi então que ele fez o impensável. Sua mão segurou meu queixo, e seu toque não foi violento nem exigente, mas de uma gentileza que queimava como brasa. Ele virou meu rosto para o dele, forçando-me a encará-lo. E então, ele me beijou. Não foi um beijo de paixão ou de desejo carnal, mas de algo que eu não tinha nome para descrever. Foi suave, questionador e, de uma forma aterrorizante e milagrosa, pareceu um ato de absolvição.
(Tiago)
No instante em que nossos lábios se tocaram, foi como se eu tivesse colocado a mão sobre um coração exposto e frenético. Senti o mundo interior dele ruir, a tempestade de ódio, vergonha e confusão se acalmar sob o meu toque, não por magia, mas por um simples ato de conexão. Foi um impulso, o mesmo instinto que me fez curá-lo, que nos envolveu na onda de calma. Vendo sua dor tão nua, meu único desejo era pará-la, silenciá-la.
Afastei-me devagar, deixando que o silêncio denso do pântano se instalasse entre nós. A expressão em seu rosto era de puro choque, como se eu tivesse reescrito as leis fundamentais do universo que ele conhecia. Por um longo momento, ele apenas me encarou, seus lábios entreabertos, seus olhos espelhos de uma realidade fraturada. Então, sem uma palavra, ele se levantou com uma rigidez controlada, pegou seu odre, e começou a juntar lenha. Seus movimentos eram mecânicos, precisos e focados — um homem se agarrando a tarefas simples para não se afogar na complexidade de suas emoções.
Naquela noite, sentados ao redor do fogo que ele construiu, um pequeno bastião de calor e luz na imensidão escura, nós conversamos. Não sobre poder, Malakor ou o que quase aconteceu. Falamos sobre nossos gostos. Sobre o amor que eu tinha pelos livros e pela obsessão dele por doces. Trivialidades que nos despiram de nossos papéis e nos tornaram, pela primeira vez, apenas dois homens em um pântano, e não o Escolhido e seu Guardião.
(Lucas)
Amanheceu, e a luz pálida parecia lavar o mundo. A tensão da noite anterior havia se dissipado, substituída por uma estranha e frágil calma. Depois de um café da manhã silencioso com algumas maçãs e pêras, Tiago se virou para mim.
“Seu poder… ele está corrompido. Malakor é o culpado.”
Não era uma pergunta, mas uma afirmação tranquila, como se declarasse a cor do céu.
“Mostre-me”, disse ele.
Hesitante, sentindo-me exposto, estendi a mão. Uma fumaça avermelhada e acinzentada se materializou em minha palma, a energia do Necromante fria e predatória.
“É maligna”, admiti, a voz pouco mais que um sussurro.
Tiago estendeu sua própria mão, da qual brotou uma luz verde-esmeralda, uma miniatura de sol que irradiava calor e vida.
“Todo poder é apenas energia”, disse ele, sua voz firme. “É a intenção que o molda. Tente sentir a sua energia, a assinatura da sua própria alma, sob o grito dele.”
Naquele dia, e no seguinte, ele me ensinou. Não a usar sua magia de vida, mas a entender a minha. A mergulhar sob a superfície poluída e encontrar o núcleo puro dela, a sentir sua forma original antes da corrupção. Foi frustrante, exaustivo, mas pela primeira vez em anos, senti que talvez eu não estivesse irremediavelmente quebrado.
(Tiago)
Caminhamos por três dias, numa peregrinação silenciosa que nos transformava a cada passo. Sentia Lucas mudar. A arrogância predatória que era sua armadura estava se desfazendo, dando lugar a uma confiança silenciosa, enraizada em si mesmo e não no poder que empunhava. Ele não me olhava mais como um quebra-cabeça a ser resolvido ou uma fonte de poder a ser conquistada, mas como um igual.
A dinâmica entre nós se inverteu e se equilibrou. Ele começou a apontar trilhas que eu não via, a ler os sinais do vento; eu lhe mostrava quais plantas eram comestíveis, como encontrar água potável. Compartilhávamos nossas rações e nossas histórias, confidências sussurradas ao pé da fogueira. Ele me falou sobre a pressão esmagadora de sua linhagem nobre, que exigia que ele fosse uma arma implacável, e eu lhe falei da minha vida simples no vilarejo, descobrindo minha magia por acidente ao fazer uma flor desabrochar no inverno. O Guardião ensinava o Escolhido a se guardar de si mesmo. O pântano, que quase se tornara nosso túmulo, estava, na verdade, nos refazendo.
(Lucas)
Na terceira noite, eles atacaram. Uma matilha de lobos-do-pântano, sombras fluidas que se moveram pela névoa, maiores e mais velozes que os normais, com olhos que brilhavam como brasas verdes de uma inteligência faminta. O antigo eu teria incinerado a todos com uma explosão de fogo sombrio, um ato de aniquilação impaciente. Mas, lembrando das palavras de Tiago, fiz algo diferente. Estendi as mãos e, em vez de atacar, teci as sombras do chão. Não como armas, mas como laços. A escuridão ergueu-se, sólida e maleável, prendendo as patas dos lobos, criando barreiras de negridão que os confundiam e os separavam. Eu era um maestro da escuridão, não uma tempestade.
Enquanto eu os controlava, Tiago se movia entre eles, um borrão de energia verde, um poema de misericórdia em meio ao caos. Ele não os matava. Um toque suave em suas testas, e os animais colossais caíam em um sono profundo. Trabalhamos em perfeita sincronia, um balé de controle e pacificação. Quando o último lobo adormeceu, estávamos ofegantes, lado a lado, a adrenalina cantando em nosso sangue. Ele me salvara de mim mesmo. Desta vez, eu o ajudei a nos salvar.
(Tiago)
O alívio e a exaustão da batalha nos deixaram trêmulos, sentados perto da fogueira, a respiração ainda ofegante em um dueto irregular. Olhei para Lucas. O brilho da vitória estava em seus olhos, mas havia algo mais profundo: um respeito recém-descoberto e uma vulnerabilidade que ele não tentava mais esconder. O beijo, a conversa, o treinamento, a batalha… tudo havia construído um novo tipo de tensão entre nós. Não mais o fio da animosidade, mas um fio esticado e vibrante de intimidade crua, inegável.
Impelido por um desejo que parecia emanar tanto dele quanto de mim, aproximei-me e me ajoelhei diante dele na terra macia. Ele prendeu a respiração, seus olhos se arregalaram em surpresa e, em seguida, em uma compreensão lenta e atordoada, quando minhas mãos foram para o fecho de suas calças. Não houve palavras. Nenhuma era necessária no idioma que estávamos construindo. Enquanto eu o despia, vi a última de suas muralhas desmoronar em seu rosto, a rendição final não a um poder maior, mas a um sentimento que ele nunca se permitira ter.
Continua…