✧ Dívida Esmeralda ✧
(Tiago)
O ar, espesso e metálico, cheirava a ozônio, sangue derramado e ao almíscar úmido de pavor. Cada inspiração parecia arranhar meus pulmões. O silêncio que se instalou sobre a carcaça fumegante do grifo era uma mortalha, mais opressiva e ensurdecedora do que os seus grasnidos de agonia. A torrente de adrenalina que me transformara num borrão de aço e fúria recuou como uma maré, deixando para trás uma praia de exaustão e ossos moídos. Meus olhos encontraram os de Lucas. Ele era uma figura patética, coberto por uma segunda pele de lama escura, seu corpo sacudido por tremores incontroláveis de choque e frio. A vida se agarrava a ele por um fio tênue e puído.
Com a mão que ainda obedecia, ofereci-lhe a sua espada. Por um instante eterno, o antigo predador hesitou. Seus olhos azuis, antes chamas de arrogância, eram agora como gelo rachado, registrando o abalo sísmico que subitamente redefinira o nosso universo. Por fim, ele a pegou, os dedos fracos e enlameados mal conseguindo se fechar ao redor do cabo que eu estendia. Vendo aquela fragilidade abjeta, um novo instinto, mais profundo e calmo que a fúria da batalha, floresceu em meu peito. Aproximei-me e, sem hesitar, coloquei minha mão livre sobre seu esterno. A mesma energia verde-esmeralda que soldara as feridas em minhas costas fluiu de mim, uma cascata de calor e vida pura que se derramou nele, silenciando seus tremores e devolvendo a cor à sua pele mortalmente pálida.
(Lucas)
O calor se espalhou por meu peito não como vinho, mas como o primeiro sol da primavera derretendo um inverno de gelo. Expulsou o frio mortal da lama e o cansaço que se infiltrara até a medula de meus ossos. Era uma sensação pura, revitalizante, a antítese absoluta de toda magia que eu já conjurara. A minha era um pacto, uma barganha com sombras que sempre exigiam um preço. A de Tiago era um presente, incondicional e absoluto, como a própria vida. Ele me curou, me restaurou, desfazendo o dano que meu próprio orgulho arrogante havia causado.
Abri a boca para falar — para agradecer, para ordenar, para ameaçar, qualquer coisa para retomar o controle — mas as palavras se dissolveram na minha garganta. Eram inadequadas, ridículas. O garoto que eu desprezava, a ferramenta que eu pretendia quebrar, acabara de salvar minha vida duas vezes. Primeiro, com uma violência primal que eu secretamente invejava; agora, com uma gentileza que minha mente não conseguia processar. O mundo não estava de cabeça para baixo; ele havia sido virado do avesso, e eu estava nu no epicentro do terremoto, despido de meu poder, de meu propósito e de minha arrogante certeza.
(Tiago)
Quando senti a pulsação sob minha palma se firmar, transformando-se de um tambor frenético em um ritmo constante e forte, afastei minha mão. O poder recuou, mas deixou um zumbido vibrante em minhas veias, como o eco de um sino de cristal.
Olhei para nós dois: espectros de lama e sangue, profanados pela sujeira do pântano e pela carnificina da batalha. A visão era… errada. Impura. O mesmo impulso que me compeliu a curá-lo agora exigia que eu limpasse aquela mancha. Estendi as mãos, não em direção a ele, mas para o ar estagnado ao nosso redor. Fechei os olhos e me concentrei na imagem de nós dois antes de pisarmos neste charco amaldiçoado, na memória de roupas limpas e pele sem mácula. Um brilho suave, da cor de musgo ao amanhecer, emanou de mim. E então, como se o próprio tempo estivesse sendo gentilmente rebobinado, a lama se desprendeu de nós em nuvens de poeira, o sangue seco do grifo se desfez em pó escarlate e desapareceu, e o fedor acre da morte foi substituído pelo perfume limpo de terra úmida e folhas verdes.
O esforço, contudo, foi a gota que transbordou o cálice. O zumbido em minhas veias escalou para um grito agudo dentro do meu crânio, a escuridão devorou as bordas da minha visão e minhas pernas se transformaram em corda molhada. A última coisa que vi, antes que o chão viesse de encontro a mim, foi a imagem nítida de Lucas, agora limpo e inteiro, embainhando a sua espada em seu cinto. Um ato de aceitação.
(Lucas)
Eu o observei realizar aquele ato de magia purificadora com uma mistura azeda de assombro e ressentimento. Era tão casual, tão sem esforço, um gesto que me custaria dias de estudo e um preço em energia. E então, ele caiu. Desabou como uma marionete cujos fios foram subitamente cortados, de bruços na terra agora imaculada.
Fiquei paralisado por uma batida de coração, e então uma onda de frustração tão avassaladora me atingiu que soquei o chão com um grunhido, sentindo a dor subir pelo meu braço. A raiva era um fogo cáustico em meu estômago. Ele era forte, terrivelmente, inimaginavelmente forte, e ainda assim era frágil. Ele me salvou, mas agora jazia indefeso a meus pés. Ele me tornara seu devedor, e eu odiava essa sensação mais do que odiara a impotência na areia movediça.
Lágrimas quentes e amargas brotaram em meus olhos — não de gratidão, mas de pura e humilhante fúria por minha própria impotência. Eu, Lucas, o predador, reduzido a um protegido, chorando sobre o corpo inconsciente da minha antiga presa. Foi nesse momento de fraqueza absoluta, uma tempestade de raiva e confusão, que a voz sussurrou. Não era um som que meus ouvidos captavam, mas um pensamento que se infiltrava em minha mente como uma mancha de óleo em água limpa: escuro, sedoso e terrivelmente familiar.
“Patético”, sibilou a presença de Malakor, meu pior inimigo. “Chorando como uma criança por aquele que deveria ser sua ferramenta. Você o queria quebrado, não é? Olhe para ele.”
Sua voz, um veneno destilado, enrolou-se em minha consciência como uma serpente.
“Ele está aí, indefeso. Toda aquela força, toda aquela pureza… à sua mercê. Pegue-a. Mostre a ele quem ainda detém o verdadeiro controle, guerreiro!”
Uma imagem vil floresceu em minha mente, plantada pela semente de Malakor: Tiago, inconsciente, sob meu domínio total, de uma forma que transcendia a simples subjugação física. Uma forma de profanar o poder que ele usara para me salvar, de marcá-lo como meu de uma maneira tão irrevogável que quebraria seu espírito para sempre.
“Estupre-o.”
A sugestão era tão repulsiva, tão fundamentalmente errada, que um calafrio de horror glacial percorreu minha espinha. Meu primeiro instinto foi de negação visceral. Arrastei-me para trás, afastando-me do corpo de Tiago como se ele estivesse em chamas.
“Não”, murmurei para o nada, para o demônio em minha cabeça. “Não farei isso.”
Eu era um monstro para o Escolhido, sim, mas havia limites!
“Limites, Guardião?”
Malakor riu dentro do meu crânio, um som sem alegria que fez meus dentes rangerem.
“Você, que se deleita em subjugar os fracos, acha que ainda existem limetes para você, pequeno Lucas? Faça. E eu lhe darei poderes com os quais você apenas sonhou. Prove-o. Tome-o. Dobre-o à sua vontade até que ele não seja nada além de um eco da sua.”
A influência de Malakor não era mais um sussurro; era um comando, uma onda de energia escura e pulsante que inundou meu corpo. Uma febre doentia tomou conta de mim, uma luxúria profana que não tinha nada a ver com desejo e tudo a ver com dominação e corrupção. Minhas mãos tremiam, meu coração batia descontrolado, e a lógica, a razão, o resquício de decência que eu possuía, tudo foi varrido por aquela compulsão avassaladora e nojenta.
Levantei-me, meus movimentos rígidos, robóticos, como um autômato de carne e osso. Minha própria vontade era um passageiro aterrorizado em meu corpo, gritando em um vácuo. Caminhei de volta até Tiago, a sombra de meu corpo caindo sobre o seu como um presságio. Seus traços estavam relaxados no sono exausto, a vulnerabilidade em seu rosto um convite obsceno para a escuridão que agora me consumia. Aquele rosto… o mesmo que me olhou com desafio, com medo, e finalmente, com a determinação feroz que me salvou. A memória lutou contra a compulsão, um farol fraco em meio a um furacão, mas a maré de Malakor era forte demais.
Inclinei-me sobre ele, o calor doentio em minhas entranhas se intensificando, e as palavras saíram dos meus lábios, roucas e possessivas, um som estranho e monstruoso. “Você é meu.”
Minha mão desceu em direção ao seu ombro, não para confortar, mas para prender. Para iniciar o ato hediondo que Malakor exigia. Mas antes que meus dedos pudessem sequer roçar sua pele, uma irrupção ofuscante de luz verde-esmeralda, a mesma da cura, explodiu da forma inconsciente de Tiago. Uma barreira de energia translúcida e zumbinte, vibrando com um som que era ao mesmo tempo harmônico e dissonante, materializou-se, repelindo minha mão com uma força que me jogou para trás, arrancando o ar de meus pulmões.
O contato com aquela magia pura foi como um choque de água gelada na alma, quebrando o feitiço de Malakor instantaneamente. A luxúria profana se desfez, deixando para trás uma náusea e um horror tão profundos que o bile subiu pela minha garganta. Olhei para minha mão trêmula, depois para a cúpula protetora que envolvia Tiago como o abraço de um anjo, e a verdade me atingiu como um malho. Eu quase… O monstro… era eu. Um soluço seco rasgou minha garganta, e as lágrimas que vieram desta vez não eram de raiva, mas de puro e absoluto autodesprezo.
Eu era um veneno. Uma corrupção ambulante. Perto de mim, até a pureza se tornava um alvo. Ele me salvou, e minha primeira reação, sob a influência do nosso pior inimigo, foi tentar destruí-lo da maneira mais vil possível. E mesmo inconsciente, esgotado, seu poder o protegia de mim.
Olhei para a espada que ele havia me devolvido, sua lâmina limpa brilhando suavemente na luz fraca. Era o símbolo da minha dívida, um favor que eu quase paguei com a mais abjeta das traições. Não havia redenção para o que eu quase fiz. Não havia como encarar aqueles olhos novamente, sabendo do monstro que habitava em minha alma. Peguei a lâmina, o aço frio e pesado uma âncora para minha vergonha. Havia apenas uma maneira de garantir que eu nunca mais o machucaria, que a minha escuridão nunca mais tocaria sua luz.
Com um grito de angústia silenciosa que rasgou meu ser, virei a ponta da espada para meu próprio peito e a ergui, pronto para apagar a mancha que eu era da face do mundo.
Continua…