HOSPITALIDADE AFRICANA PT 6

Um conto erótico de GABRIEL SILVA
Categoria: Heterossexual
Contém 4170 palavras
Data: 11/08/2025 12:44:06

O sol já descia no horizonte, tingindo o céu de Nhambane com tons de laranja e roxo, quando iniciamos a volta da cachoeira. O sedã preto sacudia na estrada de terra, o cheiro de suor e água do lago ainda impregnado nos bancos, misturado ao perfume doce de Zuri, que permanecia no ar como um lembrete da cena intensa que acabáramos de vivenciar. Meu corpo estava exausto, o peso do sexo grupal – os gemidos de Zuri, a sincronia dos corpos, o estourar da camisinha – ainda pulsando nas minhas veias, mas minha mente era um turbilhão de culpa. Beyya, o beijo, a promessa de algo puro, parecia distante, manchada pela minha incapacidade de resistir às tentações da vila.

No banco de trás, Luki e Baga conversavam alto, rindo sobre a cachoeira, os corpos relaxados, as camisetas molhadas coladas à pele. Faraji, ao meu lado no banco da frente, tamborilava no painel, cantarolando uma música local, alheio à tempestade dentro de mim. Zuri, no meio do banco de trás, estava quieta, a bolsa preta no colo, a calça legging e a regata coladas ao corpo curvilíneo, o cabelo liso caindo sobre os ombros. Deixei Luki em sua casa primeiro, uma construção grande perto da prefeitura, onde ele desceu com um aceno arrogante. Baga foi o próximo, saindo numa rua comercial, o mercado do pai dele visível ao fundo.

Faraji olhou para Zuri pelo retrovisor. “Deixa eu em casa primeiro, Mayer,” disse, o tom casual, mas com um toque de urgência. “Depois pode deixar a Zuri no bar.” Ela assentiu, os olhos fixos na janela, o rosto impassível. Dirigi até a casa de Faraji, a poucos quarteirões, e ele desceu, batendo no capô do carro como despedida. “Valeu, branco. Até amanhã,” disse, o sorriso travesso, antes de desaparecer pela porta. Agora, éramos só eu e Zuri, o silêncio no carro pesado, carregado com a memória do que acontecera na cachoeira. Ajustei o retrovisor, o olhar dela encontrando o meu por um instante, um brilho provocador que me fez desviar. “Por que você faz isso, Zuri?” perguntei, a voz saindo mais baixa do que pretendia, as palavras pesadas com uma mistura de curiosidade e julgamento. Ela riu, um som curto, quase amargo, e se recostou no banco, as pernas cruzadas, a regata apertada destacando os seios. “Por dinheiro, Mayer,” respondeu, direta, sem rodeios. “Hoje ganhei dinheiro. E levei muita rola gostosa.” Ela fez uma pausa, o sorriso malicioso voltando. “Mas relaxa, não vou contar pra Beyya.”

As palavras dela me acertaram como um soco, a menção a Beyya trazendo uma onda de culpa que queimava o peito. “Você não entende,” comecei, mas ela me cortou, inclinando-se para a frente, o perfume doce invadindo meu espaço. “Mayer, sei que você é diferente desses meninos,” disse, a voz suavizando, quase carinhosa. “Dá pra perceber. Eles só querem sexo. Você… sei lá, parece ter uma alma.” Ela riu, o som leve, mas com um toque de sinceridade que me pegou desprevenido. “Você gosta dela, né? Da Beyya. É bonito de ver.”

Fiquei em silêncio, as mãos apertando o volante. “É,” murmurei, finalmente. “Eu gosto dela.” Zuri assentiu, como se entendesse, e voltou a olhar pela janela. “Então cuida dela, Mayer. Ela não é como eu.” O tom dela era sério, e por um momento, vi uma vulnerabilidade que ela escondia sob a fachada provocadora. Chegamos ao bar, uma construção de madeira com luzes neon piscando, o som de kizomba vazando para a rua. Zuri desceu, a bolsa balançando no ombro, e me lançou um último olhar. “Até, Mayer,” disse, antes de desaparecer entre as pessoas na entrada. Continuei dirigindo, o céu agora quase escuro, as estrelas começando a pontilhar o horizonte. A culpa ainda pesava, mas a ideia de ver Beyya às seis me dava um fio de esperança, algo para segurar em meio ao caos que Nhambane parecia jogar sobre mim. Na estrada, avistei uma figura familiar caminhando, a silhueta curvada sob o peso de uma bolsa de pano. Era Fátima, a mãe de Beyya, o rosto marcado pela exaustão, o vestido florido esvoaçante na brisa. Parei o carro ao lado dela, abaixando o vidro. “Dona Fátima, quer uma carona?” perguntei, tentando soar leve.

Ela olhou para mim, surpresa, e depois sorriu, o rosto cansado iluminando-se por um instante. “Mayer, que Deus te abençoe,” disse, entrando no banco do passageiro, a bolsa no colo. O cheiro de sabonete caseiro e poeira a acompanhava, e ela ajustou o lenço na cabeça, suspirando. “Me leva até em casa, por favor.” Coloquei o carro em movimento, a estrada agora iluminada apenas pelos faróis, o silêncio entre nós confortável, mas carregado. “Como tá o João?” perguntei, lembrando do estado frágil do pai de Beyya.

Fátima baixou os olhos, as mãos apertando a bolsa. “Ele caiu hoje de manhã,” disse, a voz tremendo, como se segurasse lágrimas. “Não tá bem, Mayer. Não tá nada bem.” O tom dela era pesado, e senti um aperto no peito, a imagem de João – magro, tossindo,voltando à minha mente. “Ele vai melhorar,” disse, mais para confortá-la do que por convicção, mas Fátima apenas balançou a cabeça, os olhos fixos na estrada. “Deus sabe o que faz,” murmurou, e o silêncio caiu novamente, interrompido apenas pelo ronco do motor. Chegamos à casa de Fátima, uma construção simples de alvenaria, a luz fraca de uma lâmpada na varanda iluminando o quintal. Antes mesmo de descermos do carro, ouvi um som que fez meu sangue gelar – um choro baixo, gutural, vindo de dentro da casa. Fátima franziu o cenho, o rosto se contorcendo de preocupação, e correu para a porta, a bolsa caindo no chão. Segui-a, o coração disparado, um pressentimento terrível crescendo no peito.

Ao entrar, a cena me atingiu como um golpe. Beyya estava no chão, ao lado da cama, o rosto enterrado nas mãos, o corpo sacudindo com soluços tão intensos que pareciam rasgá-la por dentro. Na cama, João estava deitado, imóvel, os olhos fechados, a pele pálida e acinzentada, a boca entreaberta num silêncio que gritava a verdade. Fátima soltou um grito, um som primal que ecoou pelas paredes, e caiu de joelhos ao lado da filha, abraçando-a com força. “Meu João! Meu João!” ela gritava, as lágrimas escorrendo pelo rosto, o lenço caindo da cabeça, o cabelo grisalho solto em desordem.

Me aproximei, as pernas trêmulas, o ar pesado com o cheiro de remédios e morte. João estava morto, o corpo magro envolto num lençol fino, as mãos cruzadas sobre o peito, como se alguém já tivesse tentado dar-lhe dignidade na partida. Beyya levantou o rosto, os olhos vermelhos, inchados, as lágrimas manchando o vestido simples que usava. “Mayer,” ela sussurrou, a voz quebrada, e se jogou nos meus braços, o corpo frágil tremendo contra o meu. Abracei-a, as mãos acariciando as costas dela, o cabelo liso molhado de lágrimas contra meu peito. “Ele se foi,” ela murmurou, os soluços voltando, cada um cortando-me como uma faca.

Fátima, ainda de joelhos, segurava a mão de João, murmurando preces entre lágrimas, o rosto contorcido de dor. “Ele caiu hoje… tentou se levantar, quis ir até o quintal… não aguentou,” ela disse, a voz falhando, como se tentasse explicar o inexplicável. “Eu não tava aqui, Mayer. Não tava aqui pra ele.” A culpa na voz dela era um eco da minha própria culpa, a culpa por Zuri, por Amara, por todas as escolhas que me afastavam da pessoa que eu queria ser para Beyya.

Fiquei ali, segurando Beyya, o choro dela abafado contra meu peito, o peso da tragédia nos envolvendo como uma névoa. A casa parecia pequena, sufocante, as paredes carregadas com a dor de uma família que lutava para sobreviver. Olhei para João, o rosto sereno na morte, e senti uma onda de tristeza por um homem que eu mal conhecia, mas que era o mundo para Beyya e Fátima. “Eu tô aqui,” murmurei para Beyya, as palavras frágeis, insuficientes, mas tudo que eu podia oferecer. Ela apertou minha mão, os dedos entrelaçados com os meus, e por um momento, no meio da dor, senti a conexão que nos unia, uma promessa de que, talvez, eu pudesse ser mais do que as tentações de Nhambane.

O velório de João foi um ritual silencioso, carregado de uma dor que parecia sufocar o ar. A pequena capela da vila, uma construção de alvenaria com paredes descascadas e um crucifixo de madeira acima do altar, estava quase vazia. Apenas eu, Fátima, Zuri e Beyya estávamos lá, além de um velho pastor local que murmurava preces em changana, a voz rouca ecoando no espaço frio. Nem Faraji, com sua energia incansável, apareceu – um sinal de respeito, talvez, ou apenas da indiferença que a vila às vezes reservava aos seus próprios dramas. O corpo de João, envolto num lençol branco, jazia num caixão simples de madeira, o rosto sereno, mas magro, marcado pela doença que o consumira. A luz fraca de uma única lâmpada pendia do teto, lançando sombras longas sobre o chão de cimento, e o cheiro de incenso misturava-se ao odor de flores murchas, trazidas por vizinhos que já haviam partido.

Fátima estava sentada numa cadeira de plástico ao lado do caixão, o lenço na cabeça desfeito, o cabelo grisalho caindo em mechas desordenadas sobre os ombros. Seus olhos, vermelhos de tanto chorar, fixavam-se em João, como se ela pudesse, com a força do olhar, trazê-lo de volta. “Meu amor, meu João,” ela murmurava, as mãos apertando um rosário de contas escuras, as lágrimas escorrendo pelo rosto enrugado antes do tempo. Zuri, ao lado, usava um vestido preto simples, sem o decote ou a sensualidade que marcavam suas roupas habituais. Estava quieta, o rosto rígido, os olhos secos, mas com uma dor silenciosa que parecia mais pesada que lágrimas. Beyya, ao meu lado, segurava minha mão com força, o vestido azul que eu comprara manchado de lágrimas, o corpo tremendo a cada soluço contido. O colar de prata com a pedra azul brilhava no pescoço dela, um contraste cruel com a tristeza que a consumia.

Eu permanecia em pé, o coração apertado, a culpa das minhas ações na cachoeira e com Amara misturando-se à tristeza pela perda de João. Ele era mais que um homem doente para elas – era o pilar, a memória de dias melhores, o pescador forte que outrora sustentava a família. O pastor terminou as preces, e o silêncio caiu, quebrado apenas pelos soluços abafados de Beyya. Fátima se levantou, trêmula, e tocou o rosto de João, os dedos acariciando a pele fria, um gesto final de despedida. “Você foi tudo pra mim,” sussurrou, antes de desabar novamente na cadeira, o corpo curvado como se carregasse o peso do mundo.

O enterro foi rápido, numa cova simples no cemitério da vila, sob um céu cinzento que ameaçava chuva. Não havia multidão, apenas nós quatro, o pastor, e dois coveiros que jogavam terra sobre o caixão com pás gastas. Beyya se agarrou a mim, o rosto enterrado no meu peito, e eu a abracei, sentindo o calor do corpo dela contra o meu, a fragilidade que escondia uma força que eu admirava. Zuri ficou ao lado de Fátima, segurando a mão da mãe, o rosto ainda rígido, como se guardasse a dor para si mesma. Quando a última pá de terra caiu, Fátima soltou um grito baixo, um lamento que parecia arrancado da alma, e Beyya apertou minha mão com mais força, as unhas cravando na minha pele. Após o enterro, acompanhei Fátima, Zuri e Beyya até a casa delas, a poucos quarteirões da capela. O sedã preto parecia fora de lugar na rua de terra, o motor ronronando suavemente enquanto estacionava em frente à casa simples, com suas paredes de alvenaria rachadas e o telhado de zinco que rangia ao vento. O quintal estava silencioso, exceto pelo canto distante de um galo, e o cheiro de terra úmida pairava no ar, como se a vila soubesse do luto que a casa carregava. Entramos, e o peso da ausência de João era palpável – a cama onde ele jazia, agora vazia, ainda cheirava a remédios, e um par de chinelos velhos ao lado parecia esperar por pés que nunca voltariam.

Fátima caiu no sofá, o rosto enterrado nas mãos, o corpo sacudindo com soluços silenciosos. “A vida acabou, Mayer,” disse, a voz rouca, quase inaudível. “Não temos mais nada. O João era tudo. A aposentadoria dele pagava o aluguel, a comida… agora, o credor tá cobrando o atrasado. Não sei o que vamos fazer.” As palavras dela eram um peso, cada uma caindo como uma pedra no meu peito. Zuri, sentada numa cadeira ao lado, olhava para o chão, o vestido preto amarrotado, a bolsa no colo. “Eu não fui trabalhar hoje,” murmurou, a voz baixa. “Por respeito ao papai. Mas o que eu ganho… não é suficiente. Nunca foi.”

Beyya estava de pé, os olhos vermelhos, o cabelo liso caindo sobre o rosto. “A gente vai dar um jeito, mãe,” disse, mas a voz tremia, sem convicção. Fátima balançou a cabeça, o rosário ainda nas mãos. “Não tem jeito, filha. já estava atrazado. Se não pagarmos, sairemos da casa. E depois… depois não sei.” O desespero na voz dela era uma faca, cortando o ar, e eu senti uma impotência que me sufocava. Queria prometer algo, oferecer dinheiro, soluções, mas as palavras não vinham. Tudo que eu podia fazer era estar ali, testemunhando a dor de uma família que lutava contra um destino cruel.

Sentei no sofá, o tecido áspero roçando contra minhas pernas, e Beyya veio até mim, os olhos inchados, o rosto marcado pela tristeza. Ela se sentou ao meu lado, e, sem dizer nada, deitou a cabeça no meu ombro, o corpo tremendo. Passei o braço ao redor dela, acariciando o cabelo liso, os dedos traçando as costas dela, um gesto de consolo que parecia pequeno diante da magnitude da perda. “Tô aqui, Beyya,” sussurrei, e ela assentiu, o rosto encostado no meu peito. O calor do corpo dela, o peso da cabeça no meu ombro, era um lembrete da conexão que crescia entre nós, mesmo no meio da dor. Ficamos assim, em silêncio, e aos poucos o cansaço nos venceu. Deitamos no sofá, os braços dela envolvendo minha cintura, e adormecemos, o mundo desaparecendo por um momento, como se o luto pudesse ser suspenso.

Fátima e Zuri se levantaram, os rostos cansados, e foram para o quarto, murmurando algo sobre descansar. O silêncio da casa era opressivo, quebrado apenas pelo tique-taque de um relógio velho na parede. Quando a noite caiu, o céu agora escuro, percebi que precisava voltar. Beyya ainda dormia, o rosto sereno pela primeira vez naquele dia, o colar brilhando no pescoço. Levantei-me com cuidado, cobrindo-a com um pano que encontrei no sofá, e saí, o coração pesado, a imagem dela chorando gravada na minha mente. Fechei a porta com cuidado, o som da tranca ecoando na noite silenciosa, e entrei no carro, a vila parecendo mais escura, mais cruel. Cheguei à casa de Doge, o sedã estacionado na frente, o motor ainda quente. Faraji estava na varanda, fumando um cigarro, a brasa brilhando na escuridão. “E aí, Mayer, bora numa parada?” perguntou, o sorriso travesso de sempre, como se o mundo não tivesse mudado. Balancei a cabeça, exausto. “Hoje não, Faraji. O dia não tá bom.” Ele franziu o cenho, apagando o cigarro no corrimão. “Tá com cara de enterro. O que houve?” Insistiu, e eu suspirei, a dor voltando. “O João morreu. O pai da Beyya.”

Faraji ficou em silêncio por um momento, o rosto sério, algo raro nele. “Fiquei sabendo agora,” disse, a voz baixa. “Elas tão ferradas, Mayer. A Fátima tem uns 30 dias de luto, pela tradição. Depois disso, ela vai ter que casar com alguém. Caso contrário, vai pro prostíbulo, junto com a Zuri. E a Beyya… sem a casa, sem dinheiro, ela também vai acabar indo. Não vai ter onde morar.” As palavras dele foram um soco, a realidade crua da vila se revelando em toda a sua brutalidade. “Não vou permitir isso,” disse, a voz firme, mas tremendo com a impotência que sentia.

Faraji riu, um som sem humor, e acendeu outro cigarro. “Então torça pra ela conseguir alguém, branco. Porque a vida não perdoa.” Ele deu uma tragada, o fumo subindo na noite, e me olhou, os olhos estreitos. “Você gosta dela, né? Da Beyya. Mas aqui, amor não paga as contas.” Ele se virou, entrando na casa, deixando-me na varanda, o peso das palavras dele me esmagando. A imagem de Beyya chorando, Fátima desolada, e a ameaça do prostíbulo pairavam como uma nuvem negra. Nhambane, com seus costumes e suas crueldades, parecia um monstro que devorava tudo que eu tentava proteger, e eu sabia que, para salvar Beyya, precisaria enfrentar mais do que minha própria culpa – precisaria enfrentar a vila inteira. Na manhã seguinte ao velório, o peso da morte de João ainda pairava sobre mim como uma sombra densa. O sol de Nhambane entrava pelas frestas da janela do quarto, o calor já sufocante, misturado ao cheiro de café que vinha da cozinha de Doge. A leveza do beijo com Beyya parecia distante, ofuscada pela dor dela e pela revelação cruel de Faraji sobre o futuro de Fátima e suas filhas. Não podia deixar Beyya cair no mesmo destino de Zuri, nem permitir que Fátima enfrentasse a humilhação do prostíbulo. Decidi ir à casa delas, determinado a entender a situação e encontrar uma solução, mesmo que ainda não soubesse qual.

Caminhei pelas ruas de terra, o sedã preto estacionado na frente da casa de Doge, mas optei por ir a pé, precisando do tempo para organizar os pensamentos. O ar estava carregado com o cheiro de poeira e lenha queimada, e o som de crianças brincando ao longe contrastava com a gravidade do que eu carregava. Cheguei à casa de Fátima, a mesma construção simples de alvenaria, agora ainda mais silenciosa, como se a ausência de João tivesse roubado a vida do lugar. Bati na porta, e Beyya abriu, os olhos ainda vermelhos, o cabelo liso preso numa trança frouxa, o vestido amarrotado. “Mayer,” disse, surpresa, mas com um leve sorriso que aqueceu meu peito. “Entra.”

Dentro, Fátima estava sentada no sofá, o rosário nas mãos, o rosto cansado, as rugas mais profundas sob a luz fraca da sala. Zuri não estava lá, provavelmente ainda dormindo ou lidando com a própria dor. Sentei-me numa cadeira de madeira, o assento rangendo sob meu peso, e fui direto ao ponto. “Fátima, Beyya, quero entender essa história da tradição que foquei sabendo. O que Faraji disse… sobre você ter que casar, ou… o prostíbulo. É verdade?” Minha voz saiu hesitante, o peso da pergunta me sufocando.

Fátima suspirou, os olhos fixos no rosário, as contas clicando entre seus dedos. “Não é bem tradição, Mayer,” começou, a voz rouca, carregada de cansaço. “É necessidade. Sem o João, não temos sustento. A aposentadoria dele pagava o aluguel, a comida, as contas. Agora, o credor tá cobrando o aluguel atrasado, e o que a Zuri ganha… não é suficiente pra tudo.” Ela fez uma pausa, o rosto endurecendo. “Eu já tô velha, Mayer. O cabelo tá ficando branco, não tenho mais a disposição de antes. Homem nenhum olha pra mim como olhava há dez anos. Quem vai querer sustentar uma mulher como eu?”

Beyya, ao lado, apenas me olhava, os olhos castanhos brilhando com uma mistura de tristeza e vergonha. “Mãe, para,” murmurou, mas Fátima balançou a cabeça. “É a verdade, filha. Sem um homem pra sustentar a casa, não temos como ficar aqui.” O desespero na voz dela era uma faca, cortando o silêncio da sala, e senti uma raiva impotente contra o mundo que as colocava naquela posição.

Olhei para Beyya, o colar de prata reluzindo no pescoço dela, e tomei coragem. “Beyya, se eu ajudar com as contas, se eu… me casar com você, isso resolve?” As palavras saíram antes que eu pudesse pensar, movidas por um impulso que misturava amor e desespero. Beyya arregalou os olhos, surpresa, e riu, um som leve, mas triste. “Mayer, você é louco,” disse, balançando a cabeça. “Não quero que você faça algo que vai se arrepender depois. Não é assim que funciona.”

“Eu gosto de você, Beyya,” insisti, a voz firme, mesmo com o coração acelerado. “De verdade. Não é só por pena, é porque… você é diferente. Quero estar com você.” Ela baixou os olhos, os dedos brincando com o colar, e por um momento vi um brilho de esperança, mas também dúvida. “Pra isso, a mãe tem que estar casada primeiro,” disse, a voz baixa. “Se não, eu seria uma moça desonrada. A vila não aceita.” Fátima assentiu, o rosto sério. “É assim, Mayer. Primeiro, eu preciso de um homem. Só depois a Beyya pode pensar em casamento.”

Senti um nó no estômago, a responsabilidade pesando como nunca. “Então eu ajudo,” disse, decidido. “Vou encontrar alguém pra você, Fátima. Alguém bom, que sustente a casa, que respeite vocês.” Beyya me olhou, os olhos marejados, e segurou minha mão, os dedos quentes contra os meus. “Você é bom, Mayer,” sussurrou, e por um instante, o peso da vila pareceu mais leve. Mas a tarefa que eu me propusera – encontrar um padrasto para Beyya – era uma montanha que eu não sabia como escalar. Saí da casa de Fátima com a mente girando, sem ideia de onde começar. A vila de Nhambane, com suas ruas de terra e suas regras cruéis, parecia um labirinto impossível. Pensei em ir à empresa, a fábrica onde minha mãe trabalhava, onde talvez eu pudesse conversar com homens que conhecia – Doge, Digo, outros funcionários – e avaliar suas índoles, sem revelar meu propósito. Dirigi o sedã preto pelas estradas esburacadas, o sol escaldante refletindo no capô, o cheiro de diesel e poeira invadindo as janelas abertas. Cheguei à fábrica, o complexo de concreto e máquinas barulhentas, o pátio cheio de trabalhadores carregando minério, o som de britadeiras ecoando como um coração pulsante.

Entrei sem avisar, o ar-condicionado da sala de administração um alívio contra o calor. Conversei com alguns homens no refeitório, tentando sondar suas personalidades. Havia o José, um operador de máquinas, que falava alto e fazia piadas grosseiras, os olhos sempre vagando para as mulheres que passavam. Havia o Paulo, um supervisor, que parecia sério, mas tinha um tom arrogante, como se a vila lhe devesse algo. Nenhum deles me parecia certo – eram estranhos, movidos por interesses que eu não confiava. Minha busca por um padrasto para Beyya parecia fadada ao fracasso antes mesmo de começar.

Rose me viu no corredor, a blusa branca impecável, o cabelo loiro preso num coque, o rosto sem nenhum traço da cena que testemunhei na festa. “Que bom te ver aqui, Mayer,” disse, a voz firme, mas com um toque de surpresa. “Já que tá aqui, dá uma força. Tô com problemas num software. Os números da produção não batem, e não sei o que tá acontecendo. Pode dar uma olhada?” Assenti, aliviado por ter algo concreto para fazer. “Tá bom, mãe,” respondi, seguindo-a até a sala de informática, onde Lúcia, a filha de Digo, já estava, os óculos refletindo a luz dos monitores. Sentei-me diante do computador, o ar-condicionado zumbindo, o cheiro de plástico quente dos equipamentos enchendo a sala. Revirei a base do software de gerenciamento , os códigos que eu já conhecia de cor. Os números da produção – quantidade de minério processado, custos, lucros – deveriam estar alinhados, mas algo estava errado. Passei horas analisando linhas de código, verificando logs, cruzando dados. Tudo parecia tecnicamente correto, nenhum bug evidente, mas os relatórios financeiros mostravam discrepâncias. Era como se uma pequena fração do dinheiro estivesse sumindo, um desvio sutil, quase imperceptível diante do valor total, mas real.

Decidi investigar mais a fundo, acessando os registros de transações financeiras, algo que Rose me autorizara a fazer. Meu coração acelerou quando encontrei uma conta secundária, uma movimentação que não aparecia nos relatórios principais. Segui o rastro, os dedos tremendo no teclado, o monitor iluminando meu rosto na sala escura. Então, vi o nome ligado à conta: Digo. O mesmo Digo que comandava a gerencia ao lado de Rose, que participara da cena na festa, que recebia ordens dela na cama. O desvio era pequeno, mas constante – dinheiro sendo transferido para uma conta pessoal, disfarçado como “despesas operacionais”. Não disse nada, o choque me mantendo em silêncio. Olhei para Lúcia, que digitava em outro computador, alheia, e para Rose, que conversava com um funcionário na porta. Aquilo era maior do que eu podia processar.

Fechei o programa, o coração disparado, a mente girando com perguntas. Digo estava roubando ? Rose sabia? E como isso se conectava à minha busca por um padrasto para Beyya, à minha culpa com Zuri e Amara, à minha promessa de salvar a família de Beyya? Nhambane, com seus segredos e suas traições, parecia me puxar cada vez mais fundo, e agora, com o nome de Digo na tela, eu sabia que estava diante de algo que podia mudar tudo.

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Comentários

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Eita ,eita ! O Mayer arrumou mais um abacaxi para descansar 🤔🤔😑🫢🫢.

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