Capitulo 35 - Férias
...
Daniel:
Estranho. Foi exatamente assim que me senti ao vê-la pela primeira vez. Eu já tinha ouvido as histórias que o Bernardo contou sobre ela, e confesso que cheguei a sentir raiva mesmo sem conhecê-la. Imaginava uma mulher descontrolada, alcoólatra, que machucava o próprio filho sem motivo — uma versão feminina do meu pai, que apontou uma arma para minha cabeça e inferniza a vida do Théo.
Mas ali estava ela: gentil, sorridente, brincando com meu namorado de um jeito que eu jamais teria imaginado. Conversavam como se a internação nunca tivesse acontecido, como se ele tivesse apenas passado a semana na escola. Bernardo falava das aulas, dos professores, dos amigos... mas omitia, claro, a traição e a tentativa de abuso por parte de Nick. Era o tipo de coisa que nenhum filho contaria.
Ela ficou visivelmente feliz ao saber que ele estava indo bem nas provas e com boas notas. E aos poucos, aquela imagem monstruosa que eu criei sobre ela foi se desfazendo — e isso, pra minha surpresa, era bom.
Na hora do jantar, ela se dirigiu a mim:
– Em que ano você está na escola? – perguntou de forma simpática, me pegando de surpresa.
– Estou no terceiro ano – respondi um pouco sem jeito.
– Então você se forma agora em dezembro? – disse, cortando um pedaço do frango – Já sabe o que vai fazer depois?
Essa era uma pergunta pra qual eu não tinha resposta.
– Na verdade, não – respondi, corando ligeiramente – Estou pensando em tirar um ano pra me encontrar.
– Isso não é ruim – ela disse, me surpreendendo – Antes de fazer jornalismo, pedi ao meu pai um tempo pra descobrir o que eu realmente queria. Pedi um ano e acabei levando três... Mas pelo menos tive certeza da minha escolha.
Ela sorriu gentilmente pra mim.
– E depois virou corretora de imóveis – brincou o pai do Bernardo com um sorriso leve.
– Sim – ela respondeu com humor – Mas só depois de trabalhar como jornalista por oito anos. Ser corretora foi uma virada inesperada nos meus planos.
– E como isso aconteceu? – perguntei, sinceramente interessado.
Cristina pareceu animada com meu interesse, e Bernardo me lançou um sorriso como quem aprovava a conversa. Dava pra ver que ela gostava de atenção.
– Trabalhei na RBS, cheguei a ser âncora do Jornal do Almoço nos finais de semana... mas ainda assim, sentia que algo faltava. Uma amiga minha herdou um condomínio e precisava de ajuda na administração, já que era solteira. Me ofereci pra ajudar nas horas vagas, e fui me apaixonando por aquilo. O negócio cresceu, compramos outros imóveis, e logo percebi que precisaria me dedicar integralmente. Conversei com minha chefia, deixei as portas abertas... e estou nisso há dez anos.
– E nunca pensou em voltar ao jornalismo? – perguntei, bebendo um gole da minha Coca-Cola.
– Já pensei, sim – respondeu com um sorriso nostálgico – De vez em quando faço alguma matéria pra Globo, só pra não perder o ritmo. Mas a verdade é que ganho mais na imobiliária. Não que dinheiro seja tudo... mas descobri que sou feliz assim. Gosto de não ter chefe – disse, rindo.
– Isso é bem interessante – falei, retribuindo o sorriso – Espero ser bem-sucedido como a senhora um dia.
– Acho que você tem tudo pra ser, Daniel – ela disse, antes de beber um gole do refrigerante – Me parece um garoto responsável. O que você gosta de fazer?
– Nadar – respondi com sinceridade – Faço parte do time de natação da escola.
– Ele nada muito bem, mãe – Bernardo disse animado – Tão bem que acho que ele vai representar a escola no estadual.
– Sério? – Cristina parecia dividir da empolgação – Já pensou em investir nisso? Sempre tem olheiros em campeonatos assim, procurando talentos. Pena que o Colégio Imperial só tem natação...
– Esse ano criaram também um time de judô e corrida – comentei.
– Jura? – Bernardo disse surpreso – Não sabia disso!
– Os treinos começam depois das férias – expliquei – Mas nunca pensei em seguir carreira. Quando era mais novo, cheguei a competir e até ganhei algumas medalhas, mas fiquei parado por um bom tempo. Só voltei agora... Nem sei se tenho nível pra chamar atenção de alguém.
– Claro que tem – Bernardo disse, convicto.
– Se meu filho diz que tem, eu acredito – completou Cristina com um sorriso caloroso.
Retribui o sorriso. Continuamos jantando e conversando sobre assuntos leves. E, naquele momento, percebi que algo tinha mudado em mim. Cristina não era o monstro que eu imaginei. Era apenas uma mulher que passou por uma fase ruim — e agora, tentava ser melhor.
No dia seguinte, pegamos um táxi e fomos para o aeroporto, passando antes na minha casa para pegar uma mala que eu havia pedido para minha mãe preparar para a viagem. Bernardo foi dormindo durante todo o trajeto, com a cabeça apoiada no meu ombro e segurando minha mão com carinho. Notei que Cristina nos observava, provavelmente achando aquela cena um pouco desconfortável, mas fez o possível para não demonstrar. Ela devia amar muito o Bernardo para engolir os próprios preconceitos. Gostaria que meu pai, também gay, fosse assim... Mas nem sempre temos aquilo que queremos.
Nosso voo atrasou, e Bernardo continuou dormindo na sala de embarque. Pelo visto, ele definitivamente não nasceu para acordar às três da manhã — assim como seu pai, que também dormia num dos bancos, deixando apenas eu e Cristina acordados.
Ela lia um livro intitulado The Catcher in the Rye. Eu já tinha ouvido falar. Contava a história de um garoto chamado Holden Caulfield, um adolescente sarcástico que sofria com a morte do irmão mais velho. Ele fugia da escola interna depois de uma briga com o colega de quarto e embarcava em uma jornada de autoconhecimento. Era um desses livros que sempre aparecem em listas do tipo “100 livros para ler antes de morrer” — e que dizem que só dá pra entender de verdade se lido no momento certo da vida.
— Já leu este livro? — Cristina perguntou, percebendo que eu a observava.
— Não sou muito de ler — respondi, corando um pouco ao me sentir intrometido. — Li alguns de Harry Potter e As Vantagens de Ser Invisível, mas confesso que não tenho muita paciência pra leitura.
— Nem o Bernardo, ultimamente — ela comentou, olhando para o filho adormecido, deitado em dois bancos com a cabeça encostada em mim. — Mas ele costumava ler bastante... Fui eu quem o incentivou, na verdade. Desde junho do ano passado, não o vi mais pegar um livro. Acho que ele andava triste, sem ânimo pra nada. Só o via ir pra escola e depois se trancar no quarto. Dormia quase o dia todo ou assistia Dexter na Netflix. Isso me preocupava, mas eu não sabia como ajudá-lo.
— A senhora não sabia — falei com cuidado — e, com certeza, devia ter muita coisa na cabeça também.
Ela assentiu, fechando o livro com o dedo entre as páginas para não perder o ponto.
— Realmente, tinha — admitiu com pesar. — As vendas da imobiliária caíram, o dinheiro ficou curto. Estávamos à beira da falência... e eu comecei a beber demais. A ponto de perder o controle. Vou te dizer a verdade, Daniel. Eu nunca fui muito fã de relacionamentos homossexuais. E, com toda certeza, não queria que meu filho fosse gay. Em um almoço com antigos colegas jornalistas, uma amiga — que tem um filho na mesma escola que vocês — contou que o menino mandou uma mensagem dizendo que havia acontecido uma confusão: uma garota bateu em um menino, acusando-o de roubar o namorado dela. Nós rimos da história e dissemos que daríamos uma surra nos nossos filhos se algo assim acontecesse. Mas, naquela mesma noite, recebi uma ligação da escola. O garoto da história era o Bernardo. Meu mundo caiu. Fui pra casa e liguei para o Miguel, que disse que já sabia — mas que o próprio Bernardo havia contado. Ele foi até lá, conversamos sobre o filho... Eu sabia que precisava tentar aceitá-lo, mas foi muito difícil. Quando ele chegou com o Miguel e me contou, oficialmente, que era gay, tive que me segurar pra não virar as costas. Mas me mantive firme. Dei apoio.
— Mas não conseguiu se manter firme nos dias que vieram depois — completei, com delicadeza. — Uma noite, bebeu mais do que de costume e falou coisas horríveis para o Bernardo. Miguel ficou do lado dele, e a senhora foi internada numa clínica de reabilitação.
— Vejo que conhece a história — disse ela, passando a mão pelos cabelos castanhos, colocando as mechas atrás da orelha.
— Bernardo me contou — expliquei. — Também disse que a senhora não queria vê-lo. Confesso que senti raiva pelo que ele me dizia.
Cristina sorriu de forma amarga, e seus olhos verdes — idênticos aos de Bernardo — me fitaram com tristeza.
— Sei como pode ter parecido, mas eu não queria vê-lo antes de estar pronta. Não queria magoá-lo ainda mais.
— E agora... a senhora está pronta? — perguntei, acariciando os cabelos do Bernardo, que ainda dormia.
Ela olhou para a cena, respirou fundo.
— Não é fácil... — respondeu, com uma lágrima escorrendo pelo rosto. — Mas eu quero vê-lo feliz. Não estava esperando que ele estivesse com alguém. Recebi alta na sexta-feira e quis fazer uma surpresa. Sabia que ele não estava namorando mais, então achei que seria mais fácil não ter que lidar com isso tão cedo. Quando Miguel ligou no domingo e perguntou se você poderia vir, eu precisei respirar fundo e dizer a ele que aceitasse. Tive que me preparar muito antes de Bernardo chegar. E quando o vi com você... foi difícil manter o sorriso. Mas você me ajudou bastante. Achei que você fosse um daqueles meninos arrogantes, mas me enganei. Você parece um rapaz decente. De boa família.
Engoli em seco ao ouvir aquilo: “de boa família”. A verdade era que minha família era um desastre. Um pai homofóbico, apesar de ser gay. Que batia e humilhava os filhos por quem eles eram. Uma mãe que fechava os olhos pra tudo, que se calou quando o Théo mais precisava... Que me virou as costas quando me viu beijando um garoto — e logo após eu ter sido atropelado.
— O Bernardo sentiu muito a sua falta — foi só o que consegui dizer.
— E eu senti falta dele — ela respondeu, emocionada.
Foi então que anunciaram nosso voo, e finalmente embarcamos.
Nos hospedamos em um hotel de frente para o mar em Salvador. Miguel pediu dois quartos interligados. O que ele e Cristina ocupariam tinha uma cama de casal enorme, enquanto o que eu dividiria com Bernardo tinha duas camas de solteiro — uma escolha nada sutil para deixar claro que esperavam apenas sono da nossa parte. Bernardo riu assim que viu a arrumação.
— Como se isso fosse nos impedir — disse, me puxando para um beijo. — Mesmo que estivéssemos em quartos separados.
— Mesmo que estivéssemos em hotéis diferentes — rebati, rindo, antes de empurrá-lo para a cama e me deitar sobre ele.
Beijei-o com intensidade, descendo os lábios pelo seu pescoço, enquanto suas mãos passeavam pelo meu corpo, apertando minha cintura com desejo.
— Vamos para a praia, meninos? — Miguel surgiu no quarto sem bater.
O susto foi tanto que pulei da cama e caí no chão com um baque.
— Pai! Dá pra bater antes de entrar?! — Bernardo protestou, cobrindo a cabeça com o travesseiro, visivelmente constrangido.
— Isso também não foi a melhor parte do meu dia — murmurou Miguel, revirando os olhos. — Acho melhor considerar colocar vocês em quartos separados mesmo!
— Bater antes de entrar teria resolvido — respondeu Bernardo. — Quartos separados, não.
— Cala a boca, Bernardo — murmurei, corado de vergonha. — Me desculpa, Miguel.
— Tá, mas por favor, tranquem essa porta da próxima vez! — disse, saindo do quarto. — Se arrumem logo, estamos indo pra praia.
Obedecemos, embora eu mal conseguisse encarar Miguel depois da cena. Ainda bem que não tinha sido Cristina a entrar. Ela estava indo bem no processo de aceitação, mas não sei como teria reagido àquilo.
Na areia, me perdi admirando Bernardo em sua sunga preta quando ele bufou, mexendo no celular.
— Ele realmente não tem vergonha — comentou, virando o celular para mim.
Era uma mensagem de Nick.
"Me desculpa por aquela noite. Eu estava bêbado e fiz besteira. Sei que você me odeia, mas me avisa se tiver notícias do Gabriel."
— Mesmo se eu soubesse de algo, não diria nada — disse Bernardo, bloqueando e apagando a mensagem.
— Acho que ele quer outro soco na cara — falei, com raiva.
— Provavelmente — disse ele, recostando-se na espreguiçadeira para tomar sol.
Passamos o dia na praia e à noite fomos jantar num restaurante em frente ao hotel. Cristina estava encantada com tudo: a praia, a comida, o tempero. Era bom vê-la assim, leve.
— Não precisa se arrumar demais — disse Bernardo, saindo do banho com um roupão azul — só não vá de bermuda.
— Eu não vou, mas vontade não falta de arrancar esse roupão de você — brinquei com um sorriso malicioso.
— Eu também quero, mas a gente se atrasa — ele disse, me dando um selinho.
— Só uma rapidinha?
— Você é impossível! Vai tomar banho logo — disse ele, gargalhando.
Fui, contrariado. Tomei uma ducha quente, coloquei a calça, mas dispensei a camisa. O olhar de desejo que Bernardo lançou foi uma pequena recompensa. Estava calçando os tênis quando meu celular tocou. Era um número desconhecido.
— Alô?
— Sei que sou a última pessoa com quem você quer falar, mas me escuta, por favor!
— Vai se foder, Nick — desliguei na hora.
Ele ainda tentou ligar mais algumas vezes antes de desistir. Bernardo, ao ver meu rosto, já sabia quem era.
— Esse cara é um idiota.
Concordei em silêncio e finalizei de me arrumar.
Dizer que nos divertimos seria pouco. Aqueles dias foram mágicos. Esqueci que existia uma vida além de Bernardo. Visitamos praias, pontos turísticos, comemos comidas típicas. À noite, fazíamos amor com intensidade e carinho. E a cada dia, Cristina parecia mais à vontade. Chegou até a presenciar um beijo nosso e não reagiu com desconforto — apenas seguiu o jantar normalmente. Sabia que não era o futuro que sonhou para o filho, mas estava disposta a abrir mão de seus planos por sua felicidade. Isso era amor de verdade. Meu pai poderia aprender muito com ela.
Na última noite, Bernardo dormia profundamente, mas eu estava desperto. Não queria que aquilo acabasse. Fui até a sacada e vi Cristina na varanda ao lado. Ela me viu e sorriu.
— Sem sono?
— Não queria que a viagem acabasse — confessei.
— Eu também não — ela respondeu. — Posso ir até aí? Gosto de conversar com você.
— Claro, a porta está aberta.
Ela entrou, olhou Bernardo dormindo e sorriu.
— Ele parece um anjo. Quando era pequeno, eu sempre lia pra ele dormir. Depois dava um beijo na testa.
— Que bonito — falei. — Minha mãe não era assim. Era tudo muito rígido.
Cristina se aproximou e deu um beijo na testa de Bernardo.
— Fico triste por ouvir isso — disse, sentando-se ao meu lado na sacada. — Seus pais te aceitam?
Respirei fundo. Não queria reviver aquilo, mas Cristina havia sido honesta comigo. Eu devia o mesmo a ela.
Contei tudo: sobre Théo, sobre meu pai e sua violência, sobre minha mãe e sua ausência. Ela se emocionou, especialmente com a surra em Théo e as ameaças que sofri.
— Sua história é muito triste, Daniel — disse ela, emocionada — mas você é um menino bom. E merece ser feliz.
— E eu encontrei essa felicidade no seu filho. Bernardo é a melhor coisa que já me aconteceu.
— Você o ama?
— Com todo meu coração.
— E sei que ele também te ama. Sempre desejei que Bernardo encontrasse alguém assim. Só não imaginei que seria outro garoto.
— Sei que ainda é difícil pra você.
— Já foi mais. Mas ver o quanto ele está feliz me ajuda a entender. Obrigada por cuidar dele.
A abracei com carinho, e ela retribuiu. Ficamos ali até o despertador tocar, às quatro da manhã.
...
Bernardo:
— O que você e minha mãe estavam conversando quando acordei? — perguntei no avião.
— Que não queríamos que a viagem acabasse — Daniel respondeu com um sorriso.
— Fico feliz que vocês se entenderam.
— Eu também. Eu tinha uma imagem muito ruim dela. Ainda bem que me provou o contrário.
— Minha mãe é uma boa pessoa. Só precisava se reencontrar. Estou feliz por ela ter voltado a ser quem era.
De volta a Porto Alegre, deixamos Daniel em casa e fomos para nosso apartamento. Mamãe ficou radiante por estar de volta — ainda mais com o almoço pronto feito por Mirian. Passamos o dia rindo, lembrando dos melhores momentos da viagem. Eu sabia que aquelas lembranças ficariam comigo para sempre.
À noite, meu celular tocou. Era Gabriel.
— Está tudo bem?
— Posso ir até sua casa? — ele parecia aflito.
— O que houve, Gabriel? Gustavo te fez algo?
— Te explico pessoalmente, por favor.
Passei o endereço. Cerca de duas horas depois, o porteiro interfonou. Autorizei a entrada e logo a campainha tocou.
Quando abri a porta, meu coração parou. Gabriel estava destruído: o lábio cortado, o olho roxo, o braço engessado e trincado. Ao seu lado, um garoto de cabelo cacheado se escondia atrás dele, assustado.
— O que aconteceu com você?! Esse é o Pedrinho?
Antes que pudesse responder, Gabriel desabou no chão, desacordado. O garoto correu até ele, desesperado.
— Gabriel, acorda! Acorda, por favor!Continua...