A cidade pulsava como uma criatura inquieta, suas veias de asfalto rachado e luzes de neon vibrando com vida. Daniel encostou-se à grade lascada da varanda de seu apartamento, o cigarro entre os dedos brilhando tenuemente contra o crepúsculo. Lá embaixo, o mundo seguia seu ritmo frenético — carros buzinavam, vendedores ambulantes gritavam, e o zumbido distante da vida urbana ecoava sem pausa. Mas para Daniel, o tempo parecia arrastar-se, cada segundo carregado com o peso da desconfiança.
Simone, esse era o nome da tempestade que rugia em seu peito. Ela era uma visão, não por sua beleza física, pois ela tinha seus defeitinhos, mas ela sempre teve uma presença que fazia os homens perderem o rumo. Sua pele morena reluzia como bronze aquecido pelo sol e suas curvas, algumas nem tão acentuadas assim, eram um risco constante de derrapagem. Os cabelos longos, negros e encaracolados caíam como uma cascata sobre os ombros, emoldurando aqueles olhos negros que guardavam segredos que ele jamais conseguia decifrar. Seus quadris moviam-se com um ritmo que parecia zombar do caos do mundo que ela deixava para trás e sua risada... Ah, meu Deus, a risada dela... podia desarmá-lo em um instante.
Por dois anos, ela havia sido dele, ou pelo menos era o que ele pensava. Nos últimos meses, porém, algo havia mudado. O calor de Simone esfriara, seus sorrisos tornaram-se raros e fugazes. Antes, ela se aninhava contra ele no sofá, a cabeça repousando em seu peito enquanto assistiam a filmes antigos de Charles Chaplin, rindo das cenas simples e sem malícia. Agora, ela parecia distante, seus pensamentos vagando por lugares que ele não podia alcançar. O celular, outrora um mero acessório, agora era um companheiro constante, a tela acendendo com mensagens que ela lia rápido e apagava mais rápido ainda. Daniel não era tolo. Já vira esses sinais antes com Isabel, outra mulher, uma traição, e, por isso, lhe doía tanto acreditar que tudo estivesse se repetindo novamente. Mas Simone era diferente. Tinha que ser.
Ele apagou o cigarro, o gosto amargo da fumaça ainda preso na garganta:
- Ela não é assim, não a Simone... - Murmurou para si mesmo, mas as palavras soavam vazias.
A dúvida havia se enraizado, espalhando-se como um incêndio. Ele tentara conversar com ela, tentar atravessar o abismo que crescia entre eles, mas as respostas dela eram vagas, os olhos esquivos. “O trabalho tá uma loucura”, dizia ela, ou “Tô só cansada, Daniel, só isso”. Mas ele sabia que havia mais. A intuição de um homem, pensou com amargura, era tão afiada quanto a de uma mulher quando se tratava de traição.
Naquela noite, enquanto o sol mergulhava abaixo do horizonte, tingindo o céu de tons arroxeados, Daniel tomou uma decisão. Não podia mais ficar parado, deixando seus medos apodrecerem dentro dele. Precisava de respostas. Pegou emprestada a moto de seu amigo Gilmar na indústria em que trabalhavam, uma Yamaha velha, com um ronco gutural, e partiu para seguir Simone. Ela trabalhava numa boutique no centro, uma loja chique que vendia vestidos caros para mulheres que queriam se sentir outra pessoa. O turno dela acabava às seis, e Daniel estaria lá, escondido nas sombras, observando.
A viagem até a boutique foi um borrão de adrenalina e pavor. O vento chicoteava seu rosto, trazendo o cheiro de gasolina e poeira urbana. Ele estacionou a um quarteirão de distância, tirou o capacete e deixou os olhos varrerem a rua. A vitrine de vidro da boutique brilhava sob as luzes dos postes, as manequins posando com uma graça elegante e inatingível. Simone estava lá dentro, sua silhueta movendo-se dentro da loja, os gestos fluidos e confiantes. Mesmo de longe, ela era magnética.
Às seis em ponto, ela saiu, fechando a porta atrás de si. O coração de Daniel disparou enquanto a observava parar na calçada, bem na esquina a uns bons metros da loja, olhando para os lados, como se procurasse alguém. Ela vestia um vestido preto justo que abraçava seu corpo, os cabelos soltos brilhando sob a luz dos postes. Por um momento, ele se permitiu ter esperança, talvez ela estivesse esperando uma amiga, talvez uma carona, talvez tivesse mudado de ideia e fosse preparar um jantar para eles. Mas então um sedã preto reluzente encostou e um homem desceu. O estômago de Daniel se contorceu. Era Victor, o chefe dela.
Victor era tudo o que Daniel não era, polido, confiante, com o tipo de charme que vinha do dinheiro e do poder. Tinha pouco mais de quarenta anos, com cabelos grisalhos nas têmporas e sempre usava um terno sob medida que gritava riqueza, ele se movia como alguém que sabia que podia ter qualquer coisa que quisesse, e aparentemente, até mesmo Simone. Daniel apertou o guidão da moto com força enquanto os via trocar algumas palavras, a risada de Simone cortando o ar do fim de tarde como uma faca. Eles entraram no carro, e Daniel os seguiu, mantendo distância, o motor da Yamaha rugindo baixo sob ele.
O sedã serpenteou pela cidade, passando por bares lotados e ruas iluminadas por neon até se afastar rumo à periferia. Daniel mantinha os olhos fixos no carro, o coração batendo em um ritmo que parecia ecoar o ronco da moto. Eles finalmente pararam em frente ao portão de um barracão velho de uma tecelagem. Ele desceu, abriu o portão e entrou com o carro, manobrando-o para os fundos, escondido entre as sombras do muro e da estrutura decadente.
Daniel desligou a moto, o silêncio súbito quase ensurdecedor, e desceu, movendo-se com cuidado, pé ante pé. Pulou o muro com a agilidade de alguém movido pela raiva e pelo medo, e se manteve escondido nas sombras, os olhos fixos no carro já não tão distante. Quando finalmente chegou perto, o banco do passageiro já estava reclinado. Victor, com a cabeça inclinada, lambia os seios fartos de Simone, que segurava a nuca dele com as mãos, guiando-o com uma intimidade que fez o sangue de Daniel borbulhar. Ela tirou o próprio vestido, ficando apenas de calcinha. Seus movimentos eram lentos, deliberados, como se estivesse saboreando cada segundo. Victor chupava seus seios com uma fome que parecia insaciável, enquanto sua mão descia, explorando a pele entre as coxas dela. Simone movia os quadris devagar, acompanhando o ritmo da mão dele, seus gemidos suaves ecoando no ar.
Então, Victor voltou ao banco do motorista, abrindo o zíper da calça e puxando um pau que não devia ser maior que o de Daniel, só era diferente. Simone se inclinou, seus lábios envolvendo-o com uma mistura de ternura e voracidade. Ela lambia com cuidado, subindo e descendo, massageando-o com as mãos, batendo levemente contra o próprio rosto.
Daniel a poucos metros de distância, escondido nas sombras, sentia uma mistura de fúria e desejo, o corpo traindo-o com uma ereção que o envergonhava. Ele queria odiá-la, mas a visão dela, tão confiante, tão viva, o prendia.
Minutos depois, Victor a puxou pelos braços, trazendo-a para cima dele. Daniel estava tão perto que podia ouvir os sons abafados pela carroceria do carro. Ele se escondia às vezes, temendo ser visto, mas não conseguia desviar os olhos. Simone posicionou-se sobre Victor, guiando o pau dele com as mãos, seus gemidos crescendo enquanto ela se movia, rebolando com uma ousadia que partia o coração de Daniel. Era ela quem tomava a iniciativa, quem controlava o ritmo, quem puxava a cabeça de Victor para seus seios, exigindo mais.
Depois, ela mudou de posição, indo para o banco do passageiro. Ficou de joelhos, de costas, apoiando-se no encosto, a bunda empinada em um convite descarado. Daniel sentiu um aperto no peito, mas também um desejo ardente, uma vontade de estar lá, de ser ele a tocar aquela pele. Victor segurou-se com uma mão, apontando para ela, e entrou lentamente, centímetro por centímetro, e um grito agudo dela denunciou uma dupla traição:
- Ai! Devagar com o meu rabo, amor. Devagar, deixa eu me acostumar...
Victor a esta penetrando no rabo, no fiofó, no anus, no cu, um lugar nunca permitido à Daniel. Essa foi a primeira, mas a que mais doeu foi ouvi-la chama-lo de amor, essa sim foi a traição que mais o magoou. Ela ia e vinha, os quadris dançando, os gemidos abafados mostrando um prazer que Daniel nunca havia provocado ou sentido. Não demorou muito para Victor gozar, estrebuchando enquanto a preenchia com sua porra.
Daniel pensou em confrontá-los, mas de que adiantaria? Saiu correndo, o coração disparado, a mente um turbilhão de raiva, humilhação e desejo. Voltou para casa e lá ficou esperando por ela. As imagens do que vira no carro de Victor giravam em sua mente como um filme cruel, cada quadro gravado em sua memória: os gemidos dela, a forma como ela se movia, a entrega total que ele nunca conseguira despertar. Era um veneno que corroía suas entranhas, misturando raiva, humilhação e um desejo que ele se recusava a nomear.
Daniel não era um homem violento, mas naquela noite, enquanto esperava, sentiu algo sombrio crescer dentro de si. Não era só a traição de Simone; era o que ela representava, a promessa de uma vida melhor, de um amor que o fazia sentir-se mais do que um operário cansado, preso a turnos intermináveis em uma fábrica que cheirava a óleo e metal, e foi ali, perdido em pensamentos que se pegou pensando no começo deles.
Ele a conhecera dois anos antes, em um bar lotado onde ela servia drinks com um sorriso que iluminava o ambiente. Simone era diferente das mulheres que ele conhecia, era confiante, vibrante, com uma energia que parecia desafiar as regras do mundo. Naquela noite, ela riu de suas piadas ruins, deixou-o pagar sua cerveja no fim do turno e, semanas depois, estava em sua cama, os corpos entrelaçados como se fossem feitos um para o outro. Mas agora, tudo isso parecia uma mentira, ou talvez não. Talvez o erro tivesse sido dele, acreditando que poderia segurar alguém como ela. “Mulher bonita é foda”, ele murmurou para si mesmo, ecoando o pensamento que o perseguia desde o início. Mas não era só a beleza de Simone que o prendia; era a forma como ela o fazia sentir vivo, como se o mundo tivesse mais cores quando ela estava por perto.
O som da chave girando na fechadura o catapultou de seus pensamentos jogando-o contra a parede dura da realidade. A porta se abriu e lá estava ela. Simone entrou com o mesmo vestido preto que usara no trabalho, os cabelos um pouco desgrenhados, o batom levemente borrado. Ela parou ao vê-lo, os olhos arregalando-se por uma fração de segundo antes de se esconderem atrás de um sorriso tão conhecido:
- Oi, amor. – Disse ela, jogando a bolsa no sofá: - Desculpa a demora. Já tomou banho?
Daniel sentiu a raiva subir, quente e afiada, mas segurou-a com força em seu peito: - Onde você tava, Simone?
Sua voz saiu baixa, controlada, mas carregada de algo perigoso que ela entendeu de imediato. Simone hesitou, apenas por um instante, antes de responder:
- Ué!? No trabalho. Tive que ficar até mais tarde, fechar o caixa. Você sabe como é...
A mentira foi como um tapa. Daniel se levantou, os punhos cerrados ao lado do corpo e de dirigiu até ela, ficando a um metro de distância, olhos nos olhos:
- Não minta pra mim! – Falou, cada palavra cortando o ar: - Eu vi você... no carro... com ele!
O rosto de Simone mudou para algo mais complexo, surpresa, talvez misturada com uma ponta de culpa, mas com um inegável brilho de desafio. Ela cruzou os braços, inclinando a cabeça, como se estivesse avaliando o que dizer:
- Então você me seguiu... Que feio, hein, Daniel!? Espionando sua noiva...
- Não muda o assunto, porra! Eu vi tudo, Simone. Você com o Victor, no banco daquele carro, como se o mundo não importasse. Como... Como se esses dois anos não tivessem significado nada!
Ela não recuou. Pelo contrário, endireitou-se, os olhos faiscando:
- E o que você vai fazer, me bater? Bater no Victor?
Suas palavras o acertaram como uma luva. A surpresa se estampou em seu rosto. Ela ainda tinha mais para falar:
- O que você esperava, Daniel? Que eu ficasse aqui, esperando você chegar da fábrica com cheiro de graxa, pra viver essa vida medíocre pra sempre? Você acha que isso é suficiente pra mim?
Suas palavras o atingiram como um soco. Ele abriu a boca para responder, mas nada saiu. Era como se o ar tivesse sido sugado do cômodo. Simone aproveitou o silêncio, avançando com uma ferocidade que ele nunca vira antes:
- Você não entende, né? Eu tentei, Daniel. Tentei ser a namorada perfeita, a mulher que te apoia, que te espera. Mas você parou de me ver. Parou de me querer de verdade. Tudo o que você faz é trabalhar, chegar em casa e reclamar da vida. E eu? Eu fico presa, esperando por uma vida melhor que nunca chega.
- E isso é desculpa pra você trepar com o seu chefe? – Disparou ele, a voz tremendo de raiva: - Você acha que eu não te amo? Que eu não passo o dia pensando em você, querendo te dar o mundo? Mas eu não sou como ele, Simone. Não tenho carro de luxo, nem dinheiro pra te levar pra restaurantes chiques.
Simone riu, um som amargo que cortou o ar:
- Você acha que é sobre dinheiro? Não, Daniel, não é! É sobre sentir algo. Sobre me fazer sentir viva. Victor me vê. Ele me faz sentir desejada, como se eu fosse mais do que uma vendedora de loja. Ele me faz querer mais.
Daniel sentiu o chão sumir sob seus pés. Ele queria gritar, quebrar tudo, mas quebrar o pouco que ele tinha não parecia justo e tudo o que conseguiu foi murmurar:
- E eu? O que eu sou pra você, então?
Ela suspirou, encarando-o, os olhos suavizando por um momento, como se estivesse vendo o homem que amara uma vez:
- Você foi tudo, Daniel. Mas agora... agora eu...
O silêncio que se seguiu era insuportável. Daniel queria odiá-la, queria sentir apenas raiva, mas havia algo na vulnerabilidade dela, na honestidade crua de suas palavras, que o desarmava. Ele ainda via nela a mulher do início, que dançava na cozinha enquanto preparava o café da manhã, que o fazia rir com suas imitações ruins de cantores famosos. Ele a amava, mas talvez ela tivesse razão, talvez ele não a amasse da forma correta:
- Então é isso? – Perguntou ele, por fim: - Você quer terminar?
Simone desviou o olhar, respirando em silêncio por um instante. Então, mordeu o lábio, tensa:
- Eu não sei o que quero, Daniel, mas sei que não posso continuar assim.
Ele sentiu as palavras como uma facada, mas também como uma liberação. A raiva ainda estava lá, mas agora misturada com uma tristeza profunda, uma aceitação relutante. Ele pensou em confrontar Victor, talvez expor Simone para seus colegas de trabalho, mas o que isso resolveria? Ele não era esse tipo de homem. Ou talvez fosse, e apenas não quisesse admitir:
- Eu... tenho alguma chance com você? – Daniel insistiu, sem mesmo saber o porquê.
- Quer me disputar com ele? – Perguntou ela sem entender sua intenção.
- Saia. – Disse ele, finalmente, apontando para a porta: - Não quero te disputar com ninguém, eu só queria você de volta. Mas se acha que vou ficar numa queda de braço por você, esqueça!
Ela hesitou, como se quisesse dizer algo mais, mas apenas pegou a bolsa e caminhou até a porta. Antes de sair, virou-se para ele, os olhos brilhando com lágrimas que não caíram:
- Desculpe-me, Daniel. De verdade. – Ela abriu a porta: - Depois eu te ligo, para combinar de eu vir buscar minhas coisas.
Daniel ainda tentou uma última cartada:
- Não vou ficar te esperando, Simone.
Ela deu de ombros e saiu. A porta se fechou e o silêncio voltou, mais pesado do que antes. Daniel caiu na cadeira, o corpo exausto, a mente um caos. Ele pensou em Victor, na forma como foi descartado por ele. A raiva voltou, mas agora era diferente, menos sobre ela, mais sobre si mesmo. Ele não precisava se vingar de Simone ou de Victor. A verdadeira vingança, ele percebeu, seria viver. Viver sem ela, sem o peso de suas expectativas, sem a necessidade de provar algo para o mundo.
Dias depois, Daniel soube que Simone havia pedido demissão da boutique. Alguém disse que ela passara a ser vista com Victor, em restaurantes caros, baladas exclusivas, passeios românticos, mas ele não quis saber mais. Ele rasgou as fotos dela e trocou a fechadura do apartamento. Nem buscar suas coisas ela foi, mas ele as encaixotou todas e despachou para a casa dos pais dela.
Simone saiu do apartamento de Daniel e não sabia para onde ir. Voltar para a casa dos pais estava fora de cogitação, eles a crucificariam. Ligar para uma amiga, também parecia impensável, afinal, ela havia se afastado de todas. Acabou indo até o apartamento de Victor que surpreso, não teve como negar-lhe hospedagem. Entretanto, mesmo ali, quando Victor não estava, o silêncio era opressor. Simone sentava-se no sofá, as pernas dobradas contra o corpo, uma taça de vinho caro na mão. A luz fraca da luminária lançava sombras longas na parede e o vazio da casa parecia criticá-la sempre.
Fazia uma semana desde que ela saíra do apartamento de Daniel. Ela não esperava que doesse tanto. Não era para doer, afinal, fora ela quem escolhera isso, quem decidira que Daniel não era suficiente. Mas naqueles momentos, sozinha, com o gosto amargo do vinho na boca, a culpa a devorava. Ela fechou os olhos, tentando afastar a imagem de Daniel, os olhos cheios de dor, decepção, talvez raiva, a voz tremendo enquanto a confrontava. “Eu vi tudo, Simone.” As palavras ecoavam em sua mente, cada sílaba um lembrete do que ela fizera. Ela não queria machucá-lo. Mas agora, com a poeira assentada, ela se perguntava se valera a pena, e foi assim, perdida em pensamentos, que rememorou o começo de seu relacionamento com Victor.
Era uma tarde abafada de primavera e a boutique estava silenciosa, exceto pelo zumbido suave do ar-condicionado. As funcionárias organizavam a nova coleção, ela mesma, Simone, arrumava uma arara de vestidos, os dedos deslizando pelo tecido sedoso, quando Victor entrou. Ele era o dono da loja, mas raramente aparecia, pois era um homem ocupado, sempre viajando, sempre fechando negócios. Naquele dia, porém, ele parou perto dela, o terno impecável destacando-se contra o caos colorido da boutique. Seus olhos a encontraram imediatamente, e havia algo neles:
- Simone, certo? Você é nova aqui, não é?
Ela sorriu, um pouco nervosa, mas confiante, ousando com uma brincadeira rápida:
- Já faz seis meses, senhor Victor. Não tão nova assim.
- Eita! - Ele riu, um som que parecia encher o espaço: - Seis meses e eu não te conheci direito? Isso é um crime...
Ele se aproximou, fingindo inspecionar os vestidos, mas seus olhos continuavam voltando para ela:
- Parece que você tem jeito com os clientes. Ouvi dizer que eles adoram você. Quem sabe você não sobe na empresa? Gerenciar uma loja, talvez?
A pergunta a pegou desprevenida. Ela estava acostumada a ser vista como a “garota bonita” da boutique, não como alguém com potencial. Daniel nunca falava assim com ela, ele a amava, sim, mas seus elogios eram sobre sua aparência, seu jeito de rir, nunca sobre suas ambições. Victor, por outro lado, parecia enxergar algo maior nela. Ou pelo menos era o que ela queria acreditar.
Os encontros começaram assim, pequenos momentos roubados. Victor passou a aparecer na loja com mais frequência, sempre com um comentário esperto, um elogio que a fazia corar. Ele passou a convidá-la para almoços de “negócios”, onde falavam pouco sobre trabalho e muito sobre a vida. Ele contava histórias de suas viagens, descrevendo restaurantes com nomes que ela mal conseguia pronunciar. E Simone, que crescera em um bairro simples, onde o maior sonho era pagar as contas no fim do mês, sentia-se transportada para um mundo que parecia maior, mais brilhante.
Uma noite, após fechar a loja, Victor a convidou para tomar um drinque em um bar chique no centro. Ela hesitou, pensando em Daniel, que estaria esperando em casa com uma cerveja na mão e um filme na TV. Mas a ideia de dizer não a Victor parecia errada:
- Só um drinque, Victor. Eu preciso voltar para casa. Meu marido... Sabe como é, né?
No bar, sob as luzes suaves e o som de um piano ao fundo, Victor se inclinou sobre a mesa, os olhos fixos nos dela:
- Você é diferente, Simone. Disse ele, a mão roçando a dela de leve: - Você merece mais do que essa cidade te oferece, mais do que qualquer um aqui pode te dar.
As palavras a acertaram como uma corrente elétrica. Ela sabia que ele estava falando de Daniel, mesmo sem dizer o nome. E, naquele momento, com o vinho aquecendo seu sangue e o olhar de Victor prometendo algo que ela não podia nomear, ela se deixou levar. Quando ele a beijou, no estacionamento, com a cidade brilhando ao fundo, ela não resistiu. Era como se estivesse acordando de um sono longo, como se, pela primeira vez em anos, pudesse respirar. Ele a levou para casa logo depois desse e de outros beijos. Os encontros continuaram, os beijos evoluíram, os toques se intensificaram, e logo eles já transavam loucamente em motéis, em seu apartamento, mas principalmente em locais públicos, um fetiche de Victor que ela adorava realizar.
De volta ao presente, Simone tomou um gole de vinho, o líquido azedo descendo pela garganta. Ela queria odiar Victor, culpar ele por tudo, mas sabia que a escolha fora dela. Cada toque, cada encontro, ela escolhera isso. No começo, era sobre desejo, sobre sentir-se viva. Victor a fazia rir, a fazia sentir-se poderosa, como se pudesse ser mais do que a noiva de um operário, mais do que uma vendedora de loja. Mas agora, com Daniel fora de sua vida, ela via as rachaduras. Victor não era o cavaleiro que ela imaginara; ele era um predador, um homem que colecionava conquistas como troféus.
Ela se lembrou de uma noite, semanas antes do confronto com Daniel, quando Victor a levou para seu apartamento de cobertura. A vista era de tirar o fôlego, a cidade espalhada como um tapete de luzes aos pés deles. Ele a puxou para si, os lábios famintos, as mãos exigentes. Foi uma noite tórrida, uma transa em que ela se entregou de corpo e alma, Mas depois, enquanto ela se vestia, ele já estava ao telefone, falando de negócios, como se ela não estivesse ali:
- Você foi incrível. – Ele dissera ao notar sua indelicadeza, fazendo outra ainda pior: - Toma! R$ 500,00 para você comprar uma roupa
Ela percebeu, então, que não era tão especial assim como imaginava para ele. Era apenas mais uma, mas ainda assim ela sentia que podia ser a única dali por diante e foi o que ela tentou, com garras e dentes, e ousadia.
A culpa a engolia agora porque ela sabia que Daniel, com todos os seus defeitos, a amara de verdade. Ele não era perfeito, era teimoso, às vezes distante, preso em suas próprias inseguranças, mas ele era dela e ela sabia disso. E ela o jogara fora por um homem que a descartaria assim que se cansasse.
Simone se jogou de cabeça na relação com Victor. Ela pediu demissão da boutique, incapaz de enfrentar os olhares das colegas de trabalho e Victor a convidou para trabalhar em uma de suas outras lojas, uma flagship em um bairro mais sofisticado. “Um novo começo,” ele disse, com aquele sorriso que a fazia derreter. Ela aceitou, acreditando que era o início de algo maior, talvez uma vida ao lado dele.
Por algumas semanas, tudo pareceu perfeito. Victor a levava para jantares caros, a presenteava com joias que ela nunca sonhara em ter. As noites eram intensas, cheias de paixão, os corpos deles se encontrando em hotéis de luxo ou no banco traseiro de seu carro. Mas havia algo frio nos olhos dele, uma distância que crescia a cada encontro. Ele nunca falava de um futuro juntos, nunca a apresentava aos amigos ou à família. Quando ela tentava tocar no assunto, ele mudava de conversa, distraindo-a com um beijo ou uma promessa vaga.
Um mês depois, tudo desmoronou. Simone estava no apartamento dele, esperando-o para um jantar que planejara com cuidado. Ela usava um vestido novo, comprado com o salário da nova loja e acendera velas, espalhara perfume, querendo criar algo especial. Victor chegou tarde, o terno amassado, o olhar distante:
- Não posso ficar, anjo. – Disse ele, sem nem olhar para a mesa posta: - Tenho uma viagem amanhã cedo. Negócios...
- Não pode ficar!? Mas é a sua casa. Para onde você vai?
- Ah é... – Ele sorriu, encabulado: - Vou tomar um banho. Já nos falamos, pode ser?
- Mas... Mas... Victor, espera. - Ela disse, a voz tremendo: - O que tá acontecendo? Você tá diferente.
Ele suspirou, passando a mão pelos cabelos:
- Simone, vamos ser honestos... Isso foi divertido, mas não sou homem de compromissos. Você sabia disso desde o começo.
As palavras foram como um tapa em seu rosto, tanto que ela corou, de raiva:
- Divertido!? Co-Como assim? Você me fez acreditar que... que eu era importante.
Ele deu de ombros, um gesto cruel em sua indiferença:
- Você é linda, Simone. Gostosa pra caralho e trepa como uma puta, mas eu não prometi nada além do que tivemos. Vamos manter isso “de boa”, tá?
Ele foi para o banho e ela para seu quarto, onde reuniu suas joias, perfumes, algumas roupas numa mala e saiu do apartamento, o coração em pedaços. Na rua, sob a chuva fina que começava a cair, ela percebeu o tamanho do erro que cometera. Daniel a amara, com todos os seus defeitos, e ela o trocara por um homem que a via como um passatempo. O arrependimento agora era uma faca, cortando fundo na alma.
Meses depois, Simone estava diferente. O brilho em seus olhos havia diminuído, substituído por uma melancolia que ela tentava esconder com maquiagem e sorrisos forçados. Ela conseguira um emprego em uma cafeteria, um trabalho simples que a mantinha ocupada, mas não preenchia o vazio. Pensava em Daniel constantemente, nas noites em que ele a fazia rir, nos momentos em que ele a segurava como se ela fosse o centro do universo. Ela sabia que não merecia uma segunda chance, mas não conseguia parar de se perguntar: e se? Uma noite, após reunir coragem, ela foi até o apartamento dele apenas para saber que ele havia se mudado recentemente. Tentou obter informação com o porteiro, mas este não sabia para onde ele havia se mudado.
Teve que se socorrer a amigos em comuns, os mesmos de quem ela havia se afastado após toda a história de sua traição vazar. Um, apiedado de sua condição, lhe deu a informação, sob a promessa de anonimato.
Num fim de tarde de sábado, ela foi até seu novo endereço. A rua estava quieta, o ar frio de outono mordendo sua pele. Ela apertou o número no interfone, o coração disparado, sem saber o que esperar. Quando Daniel atendeu, ela quase não conseguiu falar:
- Quem!? – Ele perguntou, surpreso.
- Simone. Faz tanto tempo assim, Dani?
- O que você tá fazendo aqui?
Ela engoliu em seco, as palavras que ensaiara sumindo:
Eu... Eu precisava te ver. Será que eu posso entrar?
Ele hesitou, mas autorizou sua entrada. O apartamento era diferente, mais organizado, com alguns móveis novos, como se ele estivesse reconstruindo sua vida. Eles se sentaram no sofá, um espaço desconfortável entre eles:
- Eu estraguei tudo, Dani... - Ela começou, a voz tremendo: - Eu fui uma idiota. Ele... Ele não era quem eu pensava. Ele me usou e eu percebi tarde demais que o que eu tinha com você era real.
Daniel a observou em silêncio, os olhos fixos nos dela. Ele não parecia com raiva, mas também não parecia acolhedor:
- Você me machucou pra caralho, Simone. Eu te dei tudo o que eu tinha, e você jogou fora e por que? Porque você não achou suficiente. Talvez não fosse mesmo, mas você não precisava ter me traído.
- Será que... Será que você não me daria outra chance? – Perguntou, enfim, com a voz baixa, tímida, constrangida de si mesma.
- Por que eu deveria te dar outra chance?
Ela sentiu as lágrimas queimarem, mas as segurou:
- Porque eu te amo. Porque eu sei que errei e estou disposta a fazer o que for preciso pra te provar isso.
Ele se levantou, caminhando até a janela, de costas para ela:
- Amor não é só dizer, Simone, é fazer, é se sacrificar, às vezes, é até sofrer junto. E você escolheu outro caminho, o mais fácil, que, no final, acabou sendo o mais difícil.
O silêncio que se seguiu era pesado, cheio de possibilidades impossíveis. Simone queria tocar nele, puxá-lo para si, mas sabia que o abismo entre eles era grande demais:
- Eu não espero que você me perdoe agora. – Ela disse, se levantando e deixando um bilhete com o número de seu celular: - Mas vou estar sempre lá se você mudar de ideia.
Ela saiu, deixando a porta aberta por um instante, como se esperasse que ele a chamasse de volta. Ele foi até ela, acendendo seu coração, mas ao invés de chama-la, apenas fez um meneio de cabeça e fechou a porta.
Daniel ficou parado por um instante, olhando para a porta fechada. Parte dele queria correr atrás dela, perdoá-la, abraçá-la. Mas outra parte, mais forte, lembrava a dor da traição, a imagem dela com Victor. Ele havia começado a reconstruir sua vida com novas amizades, um curso noturno que lhe rendera uma promoção na fábrica. Ele estava reaprendendo a viver sem ela. Mas será que poderia amá-la de novo? Ou será que Simone, com seu arrependimento, poderia ser somente uma armadilha, uma sombra de um tempo que já passou?
Na rua, Simone caminhava sob as luzes da cidade, o coração apertado, mas ainda com um fio de esperança. Ela sabia que reconquistar Daniel seria difícil, talvez impossível. Mas, pela primeira vez, estava disposta a lutar por algo real e isso a fez sorrir em meio às lágrimas.
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO SÃO FICTÍCIOS, E OS FATOS MENCIONADOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL SÃO MERA COINCIDÊNCIA.
FICA PROIBIDA A CÓPIA, REPRODUÇÃO E/OU EXIBIÇÃO FORA DO “CASA DOS CONTOS” SEM A EXPRESSA PERMISSÃO DOS AUTORES, SOB AS PENAS DA LEI.