A porta bateu com força. Otaviano entrou em casa esbravejando, com o rosto vermelho de raiva.
— Que vergonha, Jonas! — Gritou, a voz ecoando pelos corredores.
Jonas apareceu cambaleando na sala, ainda com o hálito do álcool e o calor do momento estampado nas bochechas. Tentou disfarçar o nervosismo com uma expressão de quem não via grande coisa no que fizera.
— Qual é, pai... foi só um beijo. — Jonas tentou soar calmo, mas a fúria no olhar do pai deixava claro que nada o convenceria.
Otaviano se aproximou com os punhos cerrados, fervendo.
— Logo com o filho daquela "sol da meia-noite"...
— Raio de sol. — Corrigiu Jonas, num tom quase provocativo.
O tapa na orelha foi rápido. Nada violento, mas o bastante para lembrar quem mandava ali.
— Garoto atrevido! Sabe o que te faltou? Umas boas palmadas quando era pequeno.
Jonas tentou se esquivar.
— Para, pai. O senhor tá fazendo uma tempestade em copo d'água...
Mas a tempestade já havia se formado.
— É isso. Vou pedir demissão do Caprichoso. Depois dessa vergonha, vou sumir de Parintins. Rosa, cadê o meu remédio da pressão? Eu preciso sentar... É isso, eu tô tendo um infarto. O meu filho se agarrando com o filho daquela cantorazinha medíocre...
Enquanto o pai fazia drama, Jonas revivia os flashes da noite. Ainda um pouco embriagado, recordava os rostos no público, os celulares levantados, os olhares em choque. O beijo com Cauê — intenso, verdadeiro, inevitável — havia explodido em manchetes, fofocas e julgamentos. O amor deles, que até então existia nos bastidores, agora era espetáculo.
Na casa dos Alencar, o clima não era muito diferente. Havia silêncio, tensão e cuidado. Milena havia acabado de tirar seus adereços e biojoias. Deixou tudo sobre a mesa e encarou o filho com serenidade.
— Eu não sei quais vão ser as consequências do beijo, mas tu precisa estar preparado, — disse.
Cauê assentiu, com os olhos úmidos. O nervosismo da exposição pública já havia sido substituído por uma angústia silenciosa.
— Eu sei, mãe... desculpa, — murmurou, cabisbaixo.
Eron, até então em silêncio, se aproximou e se sentou diante do filho.
— Você tem certeza que ama esse garoto, né?
Cauê respirou fundo. Não havia dúvidas, só a coragem para assumir.
— Amo, pai. Eu amo o Jonas como nunca amei outra pessoa na minha vida. Vocês sabem, sempre fui focado nos estudos, na música... Mas algo naquele idiota me fez ficar de quatro.
Eron sorriu, mesmo sem querer.
— Escolha errada de palavras, filho... — brincou, passando a mão pelos cabelos do rapaz e puxando Milena para um abraço carinhoso. — Vamos dormir? Estou acabado e tenho aula cedo.
— Vamos. — respondeu Milena. Antes de subir, lançou um último olhar ao filho, cheio de ternura e força.
— Seja fiel a si mesmo, Cauê.
E o jovem ficou ali por alguns minutos, na sala, envolto em pensamentos e lembranças, sentindo que, apesar da tempestade, o amor que carregava era mais verdadeiro do que qualquer regra imposta por tradição ou medo.
— O que eu faço, Repolho? — Questionou para o pequeno pinscher, que apenas latiu e lambeu seu rosto.
— Eu gosto dele.
— Caramba! — Exclamou Cauê assustando, mas percebeu que era o seu irmão. Repolho soltou do colo do músico e correu para os braços de César.
— Eu gosto do Jonas. Ele parece um cara legal e é rico. — Brincou o adolescente, enquanto acariciava o cachorro. — Sabia que o pai dele tem lancha? A gente podia dar uma volta e...
— Vai dormir, César. — Cauê levantou do sofá e subiu para o quarto.
***
Na manhã seguinte, Parintins parecia menor. As ruas ecoavam burburinhos, e os grupos das redes sociais estavam fervendo. Em cada esquina, em cada conversa à meia-voz, um nome se repetia com insistência: Cauê Alencar. Mas ele não vinha sozinho. Ao seu lado, sempre que mencionado, aparecia Jonas Benevides. Não era o fato de serem dois homens que gerava tanta comoção — afinal, Parintins, apesar das tradições, conhecia outros amores como aquele. O escândalo vinha de outro lugar: um filho do Garantido e outro do Caprichoso, apaixonados, trocando beijos longe dos olhos do público, mas não o suficiente.
Em qualquer outro contexto, seria apenas mais um romance entre bastidores. Mas Jonas era filho do presidente do Caprichoso. Cauê, filho da Levantadora de Toadas do Garantido. E, no calor que antecedia o Festival, os dois lados estavam com os nervos à flor da pele.
Naquela tarde abafada, Cauê chegou mais cedo ao galpão de ensaio. Carregava o violão como quem segura um escudo. O lugar, que nos últimos meses tinha se tornado um refúgio, agora parecia apertado, observador, quase hostil. Os colegas começaram a chegar, um a um. Muitos desviaram os olhos, alguns sussurraram entre si. Apenas William, como sempre, rompeu o silêncio.
— E aí, curumim? Se estrupiou todo, hein. — Disse o veterano, afinando sua guitarra com a calma de quem já tinha visto de tudo.
William era o tipo de homem que impunha respeito sem levantar a voz. Na casa dos cinquenta, ostentava cabelos grisalhos cuidadosamente presos em um coque samurai, braços cobertos por tatuagens que contavam histórias e um porte físico de quem não abandonava a academia. Para Cauê, ele era mais que um músico experiente — era uma espécie de mentor, quase um pai improvisado entre instrumentos e cachaças depois do ensaio.
— A situação é ruim. Caramba, eu vou ser demitido, né? — Desabafou Cauê, segurando o violão no colo como se buscasse abrigo.
— Só Deus sabe como o Ribeiro vai reagir. Ontem ele pediu pra ficar sozinho depois de ver os vídeos. Tu tá lascado, isso é certeza. — William respondeu com sinceridade, mas sem crueldade. — Ei, galera! — Chamou a atenção dos outros músicos. — O garoto aqui meteu os pés pelas mãos, mas temos um festival pra botar no Bumbódromo. Quero união, porra!
O silêncio que seguiu foi tenso, mas alguns assentiram. Ninguém ali queria perder o foco, apesar das fofocas.
Foi quando Alexandra apareceu, rompendo o clima carregado com um chamado direto:
— Com licença. Cauê, o chefe está chamando.
Alexandra era da produção. Jovem, com traços indígenas marcantes, os cabelos negros escorrendo até a cintura, era respeitada por todos no grupo. Ao longo dos meses, ela e Cauê tinham construído uma amizade discreta, mas sincera.
Enquanto caminhavam juntos pelos corredores em direção ao escritório de Ribeiro, ela lançou o olhar curioso que vinha segurando.
— Vai, pergunta. — Disse Cauê, exausto de fingir que não notava.
— O Jonas? Sério? — Ela balançou a cabeça, incrédula. — Tinha tanto bofe menos problemático nessa cidade, garoto.
— Eu o amo. E o Jonas não tem nada de complicado, Alexandra. — Respondeu Cauê, firme, mesmo que sua voz denunciasse o peso que carregava. — Então, como amiga, te peço apoio. Já não bastam os comentários nas redes.
Alexandra suspirou, olhando para ele com ternura.
— Ei, se tu ama o boy, quem sou eu pra dizer alguma coisa? Só... podia ter contado, né?
— Os meninos estão bravos? — Perguntou Cauê, receoso.
— Estão tranquilos, só chateados. Te consideram da família, Cauê. Esconder isso doeu mais do que o beijo no nosso rival.
Ele assentiu, cabisbaixo. O corredor estreito parecia um túnel, e o fim dele, o escritório de Ribeiro, uma sentença.
Não era a primeira vez que Cauê pisava ali, mas era, sem dúvida, a mais difícil. O calor na nuca, o suor nas mãos e o aperto no peito denunciavam seu medo. Não por estar apaixonado — disso ele não se arrependia —, mas por ter deixado o momento atropelar o que viria depois.
Ele parou em frente à porta de madeira escura. Bateu duas vezes. A espera durou segundos, mas pareceram eternos. Quando a maçaneta girou, Cauê respirou fundo. Estava pronto para encarar as consequências, fosse qual fosse o castigo.
Cauê entrou no escritório de Ribeiro, o presidente do Boi Garantido, sentindo imediatamente o peso da história que impregnava o ambiente. O piso em preto e branco reluzia sob a luz natural que atravessava a parede de vidro ao fundo, e o aroma leve de madeira encerada se misturava ao silêncio respeitoso que o espaço impunha.
As paredes estavam repletas de fotografias antigas, emolduradas com cuidado, que contavam em imagens a evolução do Boi Garantido e do próprio Festival Folclórico de Parintins. Rostos de antigos levantadores de toada, cenas épicas do bumbódromo e retratos em preto e branco de apresentações memoráveis preenchiam cada centímetro do espaço visual. Era como caminhar por um museu particular da cultura amazônica.
Entre os quadros e fotografias, se destacavam peças decorativas inspiradas no boi vermelho. Esculturas, pinturas abstratas com traços do boi e até uma espiral metálica no centro da sala evocavam o movimento e a energia do festival. Um tapete trabalhado com padrões regionais aquecia o ambiente sob os quatro sofás de couro preto que delimitavam um espaço de reuniões.
Sobre um aparador antigo repousavam miniaturas de alegorias e troféus de edições passadas, como relíquias de batalhas artísticas vencidas com suor e paixão. Ao lado, um grande relógio de madeira antiga marcava o tempo com dignidade, enquanto jarros de porcelana azul remetiam ao intercâmbio cultural do boi com outras regiões e tradições.
Ribeiro, sentado à frente de uma antiga escrivaninha de madeira maciça, levantou o olhar quando Cauê entrou. O jovem músicose sentiu pequeno diante da grandiosidade daquele espaço — não apenas pela estética, mas pelo simbolismo. Ali, não se tratava apenas de um escritório, mas de um santuário da memória do Garantido.
***
Desde a morte de Rafael, os olhos da cidade de Parintins haviam se voltado para Jonas. Ele já não se incomodava com os olhares, com os cochichos nas esquinas ou com os comentários disfarçados de preocupação. O que lhe tirava o sono agora era Cauê. Tinha medo de que a pressão da rivalidade entre Caprichoso e Garantido engolisse o rapaz como uma correnteza bravia. Cauê não era acostumado com a intensidade daquela guerra simbólica, que muitas vezes ultrapassava os limites da arena e invadia o íntimo das pessoas.
Naquele dia, Jonas enviou várias mensagens para Cauê. Nenhuma resposta. Tentou se convencer de que o namorado estava apenas resolvendo as próprias pendências — talvez explicações, talvez cobranças. Almoçou sozinho em casa; Otaviano, o pai, sequer deu sinal de vida. O silêncio pesava mais do que qualquer conversa atravessada.
Já no Curral do Caprichoso, Jonas encontrou Vlavlau revisando documentos de compras para o festival. Ao lado dele, Marcilio se debruçava sobre o extenso roteiro da apresentação.
— Boa tarde, queridos. — Saudou Jonas, com leveza forçada.
— Ah, cara. Sem tempo pra molecagem. —Resmungou Marcilio, sem levantar os olhos, deixando Vlavlau e Jonas surpresos.
— Como é?
— Isso que tu ouviu, cara. Porra, a gente tá há semanas nesse roteiro. O que tu contou pro Cauê?
— Cara, que loucura é essa? Eu não falei nada pra ele. A nossa relação não tem nada a ver com bumbá. Ele nunca me perguntou do Caprichoso, e eu nunca perguntei do Garantido. — Explicou Jonas, tentando manter a calma.
— Como se tua palavra ainda valesse alguma coisa. Eu tentei ignorar os comentários sobre você, mas agora? Agora eu vejo que enfiaste uma adaga nas minhas costas! — Gritou Marcilio, levantando-se e indo na direção de Jonas, olhos faiscando.
— Tu tá ficando maluco, Marcilio! Eu não contei nada, porra!
— Ei, ei! — Vlavlau interveio, ergueu as mãos. Olhares de outros membros do bumbá já estavam voltados para o trio, atentos, como urubus farejando carniça.
O clima azedou de vez. Jonas, mesmo ferido pelo ataque injusto, respirou fundo e seguiu para o ensaio dos itens, que acontecia na área externa. Lá, o ambiente também não era melhor. Os olhares carregavam julgamento e desdém. Ainda havia quem o culpasse pela tragédia com Rafael, e agora, com a revelação de seu namoro com o filho da levantadora de toadas do Garantido, virou motivo de escárnio.
Conversas sussurradas se multiplicavam ao seu redor. Os risos abafados e os olhares enviesados pareciam pregos invisíveis cravando sua pele. Mesmo assim, Jonas tentou se concentrar. Anotava sua participação, prestava atenção às marcações. Estava ali para trabalhar, apesar de tudo.
Foi quando ouviu:
— Larissa, — Chamou Cinthia, a sinhazinha do Caprichoso, segurando o riso — amiga, eu já ri tanto com essa postagem!
— Puta que pariu. — Pensou Jonas, cerrando os punhos, o rosto pegando fogo.
A tensão acumulada por dias explodiu. Subiu no palco, arrancou o microfone das mãos de Sérgio Queiroz, o Levantador de Toadas, e sua voz ecoou potente pelo Curral:
— É o seguinte!
Um silêncio espesso tomou o lugar.
— Sim, eu estou namorando o Cauê Alencar. E não, vocês não têm nada a ver com a minha vida. Tive um ótimo relacionamento com o Rafael, e Deus sabe disso. Mas ele não está mais entre nós. E o que vocês pensam não muda o que eu sinto. Eu amei o Rafael até o último segundo, mas também tenho o direito de seguir em frente. Tenho o direito de amar de novo. Se isso agrada vocês ou não, não é problema meu. Eu não posso controlar o sentimento da nação azul e branca. Mas posso controlar o meu.
Devolveu o microfone nas mãos de Sérgio, sem dizer mais nada.
E saiu do Curral, com a cabeça erguida e o peito em chamas — não de vergonha, mas de dignidade.
***
Sabe quem deixou a dignidade de lado? Cauê Alencar. De joelhos no chão frio do escritório, o músico implorava por perdão com a voz trêmula, os olhos marejados e o orgulho esquecido em algum canto da alma. Ribeiro, presidente do Garantido, arregalou os olhos, surpreso com a cena inusitada. Estava acostumado a receber pedidos de aumento, mudanças de coreografia, até intrigas entre itens... mas aquilo?
— Levante-se, rapaz. Se recomponha. — Mandou, cerrando o cenho, sem esconder o desconforto.
Cauê se ergueu devagar, limpando as mãos suadas na calça jeans. Tinha demorado muito para encontrar seu lugar. Vinha de uma trajetória incerta, cheia de dúvidas, até que a música nortista o acolheu como uma mãe que recebe um filho desgarrado. Ali, na batida do tambor e no som das toadas, ele se descobriu inteiro. E mais: se entregou de corpo e alma ao Boi Garantido, encantado pela força cultural e emocional daquele símbolo.
— Te demitir,quem falou isso? — Questionou Ribeiro, folheando alguns papéis sobre a mesa, ainda tentando entender a preocupação do jovem.
— A lógica. — Respondeu Cauê, baixo, com um meio sorriso triste.
— Rapaz, não te aperreia. Senta aí. — Ribeiro apontou para a cadeira à frente. — Tu sabia que hate também é audiência? As nossas redes sociais ganharam mais de 10 mil seguidores na última noite. Todo mundo quer saber quem é o músico que desafiou a tradição pra ficar com alguém do outro bumbá. Temos que surfar nesta pororoca.
Cauê franziu a testa.
— Surfar onde?
— Na pororoca que é o amor de vocês! — Exclamou Ribeiro, tirando os óculos com teatralidade e deixando escapar uma gargalhada debochada. — O William me contou que tu tá escrevendo uma toada. É sobre esse rapaz?
— Bem... acho que é. Mas... — Titubeou.
— Nada de "mas"! Quero essa toada no Festival. O Otaviano vai morrer! — Celebrou,, entre risos zombeteiros, referindo-se ao pai de Jonas.
Cauê tentou argumentar.
— Com todo respeito, senhor, o meu relacionamento é algo privado e...
— Privado? — Interrompeu Ribeiro, entregandoo celular na direção de Cau,ê. Na tela, o vídeo do beijo entre ele e Jonas se repetia em loop, compartilhado em centenas de perfis. — Isso aí já tá mais público que apito de árbitro no Bumbódromo.
O músico engoliu em seco.
— Rapaz, pense grande! Viralize! A equipe de mídia e assessoria vai cuidar de tudo. Juntos, vamos fazer uma tucupi dessa mandioca. — Declarou Ribeiro, com um sorriso visionário, como quem enxerga adiante da curva.
Cauê sentiu o coração apertar. Amar Jonas era simples. Amar Jonas em silêncio era um conforto. Mas transformar esse amor em melodia, se entregar em letra e voz para o mundo ouvir... era se despir por inteiro. Mais do que mostrar um namoro, seria expor sua alma. E essa ideia, ainda que tentadora, lhe causava um medo quase paralisante.
Mas também havia uma certeza: sua música era verdadeira. E, no fundo, talvez não houvesse pororoca mais forte do que aquela que nascia entre eles.