O nome dele era Lucas Tieme Hatada. Filho de japonês com brasileira, dois anos mais novo que eu, olhos pretos grandes como poças de tinta e uma timidez que parecia um casaco velho que ele nunca conseguia tirar. Era o tipo de "nerd" que todo colégio adorava zoar — quieto demais, inteligente demais, bonito demais.
Eu, por outro lado, era o "bad nerd". Camiseta de banda, notas boas, mas fama de marginal. Não que eu tivesse feito nada pra merecer — mas também nunca me esforcei pra desmentir.
Era inverno, um daqueles dias que o vento dói até nos ossos. Vi a cena no pátio: três idiotas fazendo ele de bobo, jogando a touca dele um pro outro como se fosse brinquedo. Ele corria de um lado pro outro, já quase chorando, o rosto vermelho não só pelo frio.
Acho que foi o jeito como ele segurava o choro que me bateu mais fundo. Ou talvez o fato de ele ser lindo, mesmo tremendo, mesmo humilhado. Caminhei até eles sem pressa. Peguei a touca do ar quando um dos idiotas jogou, como quem apanha uma borboleta.
— Toma — disse, entregando pra ele.
Os três já iam protestar, mas bastou um olhar meu. Um deles até engoliu seco. Era assim naquela escola. Eu era o cara com quem não se arrumava briga.
Ele pegou a touca com mãos trêmulas e me olhou como se eu tivesse salvado o mundo. E talvez, só talvez, naquele momento eu tivesse mesmo salvado o dele.
Ele segurava a touca contra o peito como se fosse um amuleto. Os olhos ainda evitavam os meus, mas estavam menos úmidos agora. Menos assustados.
— Obrigado — ele disse, quase num sussurro.
— Tá tudo bem agora — respondi, enfiando as mãos no bolso do moletom. — Você devia parar de correr atrás de quem quer te humilhar.
Ele abaixou os olhos, mexendo nos dedos.
— Eu só… queria minha touca de volta. É da minha mãe.
Fiquei em silêncio por uns segundos, sentindo o peso daquela frase. Ele devia ter apanhado muito mais do que eu imaginava, e ainda assim… continuava gentil.
— Seu nome é Lucas, né? Mas todo mundo te chama de Tieme.
Ele assentiu, tímido.
— Meu pai escolheu esse nome. Significa “abençoado” em japonês.
— Combina com você — falei antes de pensar.
Ele me olhou, surpreso. Foi rápido, mas o olhar durou o bastante pra deixar o silêncio mais pesado. Mais carregado de coisa boa.
— E o seu? — ele perguntou, tentando esconder o rubor nas bochechas. — Qual é mesmo?
— David.
Ele sorriu pela primeira vez. Pequeno, mas real.
— Legal. Nome de rei.
— E você parece um príncipe perdido no colégio errado.
Ele riu. Dessa vez um pouco mais alto. Um som bonito de ouvir, quebrando o ar gelado como se fosse sol.
— Você sempre fala assim?
— Assim como?
— Como se tivesse saído de um filme.
— Só quando eu quero impressionar alguém.
Ele mordeu o lábio e olhou pro chão, depois de volta pra mim.
— E… você tá tentando me impressionar?
— Tô tentando entender por que eu me importei tanto com a sua touca.
Ele ficou em silêncio, depois puxou a touca e a colocou de volta na cabeça.
— Talvez porque... a gente se reconhece. Mesmo sendo diferentes.
Olhei pra ele por um tempo que pareceu mais longo do que foi. E então falei:
— Quer andar comigo até a próxima aula?
— Quero.
Caminhamos juntos durante todo o intervalo. Ele ainda parecia encolhido por dentro, mas aos poucos foi se abrindo. A voz era calma, quase sussurrada, mas firme.
— Tenho uma irmã que mora no Japão. Ela foi estudar lá com os tios. Desde que meu pai morreu, ficou só eu e minha mãe.
Eu olhei pra ele, mas não disse nada. Ele precisava falar.
— Foi infarto. Do nada. Um ano atrás. Minha mãe tenta ser forte, mas… eu ouço ela chorando de noite. Toda noite. Não quero dar mais problema pra ela, sabe? Por isso nunca falo do que acontece na escola.
Fiquei em silêncio por um instante. O vento do inverno passou cortando, mas o que ele disse cortava mais.
— Poxa, cara… que barra.
Ele deu um meio sorriso, sem graça, olhando pro chão.
— Bom — continuei —, quanto à sua mãe… não tem muito que eu possa fazer. Mas com o bullying… deixa comigo.
Ele ergueu o rosto e me olhou. Os olhos negros, brilhantes, refletindo a luz fraca do sol entre as nuvens. E aquele sorriso… sincero, tímido, tão bonito que por pouco eu não me joguei. Sério. Quase beijei ele ali mesmo.
Mas me segurei. Ainda não sabia se ele queria o que eu tinha pra oferecer. E eu já não ficava com ninguém fazia meses. Tava com saudade de sentir uma boca quente, uma respiração entrelaçada na minha. E a dele... era tão beijável. Lábios finos, sorriso suave. Pela etnia, não tinha nem sinal de pelos no rosto. Os cabelos lisos, pretos como tinta de nanquim, espetados pra cima numa tentativa meio tímida de parecer mais radical do que realmente era.
O sinal tocou, e eu o acompanhei até a sala dele. Não só por educação — queria deixar um recado claro: agora ele estava sob minha asa. Quem mexesse com ele, estaria mexendo comigo.
E por mais que eu não fosse nada demais, a galera me respeitava. Minha fama fazia o serviço por mim.
Quando ele foi entrar, parei na porta, dei um meio sorriso e falei alto, pra turma toda ouvir:
— Falou, meu brother! Qualquer um que encher teu saco, você sabe onde é minha sala.
Os olhares se voltaram pra gente. O silêncio inicial foi quebrado por um burburinho inevitável — cochichos, olhares atravessados, alguns espantados. Eu só virei as costas com calma, sem pressa, deixando minha sombra ocupar o corredor por onde passei.
E mesmo sem olhar pra trás, eu sabia que ele ainda estava me observando.
Não vi o Tieme na saída da aula. Imaginei que a mãe dele tivesse vindo buscar de carro, como às vezes fazia nos dias frios. Fui caminhando sozinho pra casa, chutando pedrinhas pelo caminho e pensando em como conquistar aquele garoto. Ele tinha me atravessado de um jeito que eu não esperava — e agora, tudo o que eu queria era vê-lo sorrir mais vezes. De preferência, por minha causa.
No início da minha rua, como sempre, o Edésio estava no bar. Ele já tinha terminado a escola, mas ainda não tinha arrumado emprego. Passava boa parte do dia vadiando, fumando cigarro barato e jogando conversa fora.
— E aí, malandrão — ele disse assim que me viu —, fiquei sabendo, hein.
— Sabendo de quê, Edésio?
— Ah, para, pô. Não pode ver um menininho indefeso que já quer pegar pra criar, né?
— Edésio... não tô gostando do rumo desse papo.
— Calma, mano, tô só brincando. Mas cê segue padrão, viu? Já até definiu o próximo alvo.
Edésio, como contei em outros textos, foi o primeiro a descobrir que eu gostava de meninos. Nunca espalhou pra me ferrar, mas era fofoqueiro de carteirinha.
— Que “alvo”, cara? Não tô entendendo nada.
— Tô falando do mini Bruce Lee que você tá pegando.
— Ah, kkkkk. Não tô pegando ninguém, mano. Mas pqp, tu é rápido, ein? Já tá sabendo?
— Sabendo? O bairro todo já sabe que você adotou o Japinha.
Suspirei fundo. Não era exatamente surpresa. Só não queria que aquilo se voltasse contra o Tieme. Ele já carregava coisa demais.
— Mano, não quero arrumar problema pra ele. Pode dar ruim, igual foi com o Toni...
Falei o nome olhando pro chão. Ainda doía lembrar.
Edésio ficou em silêncio por um momento, depois tentou aliviar o peso:
— Ih, relaxa, mano. O irmão mais velho dele é gay. Deve tá tudo em casa.
— Irmão? — franzi a testa. — Ele só me contou de uma irmã que estuda fora.
— Kkkkk a irmã dele se chama Jairo, meu camarada. O pai mandou pro Japão quando começou a se vestir de mulher. A propósito, todos vocês fazem isso?
Minha expressão fechou na hora. Edésio entendeu o recado e calou a boca.
— Mais um motivo pra eu não dar nenhuma novidade pra ele — murmurei.
— Vou torcer por vocês, mano. Quanto mais gay no bairro, mais mulher sobra pra mim! — disse rindo, como se fosse piada de churrasco.
Edésio era assim: impertinente, sem filtro, às vezes insuportável. Mas era meu amigo. E no fundo, eu sabia que ele não dizia as coisas por mal. Relevei os comentários imbecis e segui pra casa, com a cabeça girando.
Tieme tinha mais camadas do que deixava transparecer. E quanto mais eu descobria, mais eu queria me aproximar. Mas agora, mais do que nunca, sabia que precisava pisar devagar. Proteger ele — até de mim, se fosse preciso.
No dia seguinte, logo na entrada da escola, vejo Tieme vindo na minha direção. Estava com aquele sorriso bobo, aberto, que fazia parecer que o sol tinha dado as caras só pra ele.
— Oi, David!
— Fala, Tieme. Nem te vi na saída ontem.
— É que eu tinha a cerimônia de troca de faixa no dojo. Minha mãe veio me buscar pra eu não me atrasar.
— Troca de faixa?
— Uhum. Eu faço karatê desde pequeno. Ontem seria a cerimônia pra pegar a faixa preta... mas um dos mestres do dojo faleceu, então cancelaram tudo.
— Cara... você luta? E por que não meteu uns hadoukens e shoryukens naqueles otários?
Ele riu, daquele jeito que parecia que não cabia nele mesmo.
— Acho que esses golpes aí não existem de verdade — disse, tímido. — E, além disso... eles não usaram violência. Então eu também não podia.
Fiquei olhando pra ele por um segundo a mais do que devia. Era bonito demais. E agora, ainda por cima, justo.
— Sua força de espírito é maior do que eu pensava.
Ele abaixou um pouco o olhar, envergonhado, mas sorriu. Era o tipo de sorriso que entrava pela fresta da alma e bagunçava tudo por dentro.
— Valeu, David... mas foi você quem me defendeu. Nunca vou esquecer.
— Bom... se você virar faixa preta mesmo, me avisa. Vai que um dia eu precise de um guarda-costas.
— Eu topo, mas só se você me pagar com suco de caixinha.
A campainha tocou, e seguimos juntos até perto da escada. A conversa foi rápida, mas tinha algo ali. Um fio invisível puxando a gente um pro outro.
Eu queria passar mais tempo com ele, mas já era hora da aula.
No intervalo, quando saí da sala, ele já estava lá, parado na porta, me esperando. Na hora, meu coração disparou.
— Aconteceu alguma coisa? Alguém mexeu com você?
— Não. Só queria te ver.
Aquilo me desmontou. No meio da galera, sem receio nenhum. Pensei comigo: não brinca assim, garoto, que eu apaixono. Nem parecia o mesmo Tieme tímido de ontem.
Sorri e saímos juntos, sob os olhares desconfiados dos outros alunos. Tive que me segurar pra não pegar na mão dele ali mesmo, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Queria perguntar sobre a irmã, mas não queria parecer invasivo. Também queria chamar ele pra sair, mas ainda achava cedo. Caminhamos alguns metros em silêncio até que ele falou:
— Minha cerimônia de troca de faixa vai ser sábado. Você quer ir ver?
— Eu quero sim.
— Vai ser bem legal... você gosta de luta?
— Claro, acho dahora. Mas, sendo sincero? Tendo uma desculpa pra te ver, não importa a ocasião. Já é fenomenal.
Ele sorriu, depois ficou sério.
— Posso te perguntar uma coisa meio estranha?
— Acho que já sei o que vai perguntar. E se for o que tô pensando... a resposta é sim.
Ele me lançou um olhar que parecia querer confirmar, mas ainda assim hesitou.
— Eu preciso perguntar. Mesmo. Sou muito literal... preciso que as coisas sejam ditas. Até as óbvias.
— Tá bom. Então pode perguntar o que quiser — falei, firme.
— Ontem eu falei com a minha irmã. Contei sobre você. E ela disse que, pelo jeito das coisas... parece que você gosta de mim.
— É claro que eu gosto de você, Tieme.
— Não, não "gostar" tipo amigo... quero dizer... gostar mesmo.
Respirei fundo, dei um passo em direção a ele. A voz saiu firme, mas o coração batia forte no peito.
— Carinha... vou tentar ser o mais claro que eu puder, ok?
Ele assentiu, quase sem piscar.
— Se você disser que quer... eu beijo sua boca agora e não largo nunca mais.
Os olhos dele se arregalaram. Duas jabuticabas maduras, brilhando no rosto sereno, mesmo com a surpresa. Pela descendência, ele quase não tinha expressão dramática, mas os olhos… os olhos diziam tudo.
— Podemos conversar depois da aula?
— Claro. Cê que manda.
— Tá bom. Eu vou pra minha sala agora.
— Mas o intervalo mal com...
Antes que eu terminasse a frase, ele já tinha desaparecido no meio dos outros alunos.
Fiquei parado ali, no meio do corredor, ouvindo meu próprio coração batendo nos ouvidos. E pensei:
Agora é oito ou oitenta.
Na saída da aula, vi que a mãe do Tieme estava ali, parada no carro, então decidi seguir meu caminho. Não queria invadir, nem causar nenhum tipo de desconforto.
Mas ele me chamou:
— Ei, David!
— Oi! — respondi, tentando parecer natural. — Vi sua mãe, achei que estivessem com pressa.
— Que nada. Entra aí, minha mãe te dá uma carona.
Fiquei um pouco sem jeito, mas entrei. Sentei no banco de trás, ao lado dele, perto o suficiente pra sentir o cheiro de amaciante nas roupas e um perfume suave que não consegui identificar. Como aquele menino era cheiroso...
A mãe dele olhou pelo retrovisor e sorriu.
— Ah, então você é o famoso David? Tem dois dias que só se ouve esse nome lá em casa.
Gelei na hora. Nem sabia o que responder.
— Você ganhou o coração do Tieme — ela disse, como quem solta uma frase qualquer, mas com olhos atentos demais.
Eu só sorri. Não conseguia formular uma frase decente.
— Você namora, David?
— Não, senhora.
Foi tudo o que consegui dizer, travado como se estivesse diante de uma juíza.
— Mas já namorou alguma vez?
Pensei "que conversa estranha é essa?", mas respondi mesmo assim, tentando parecer natural:
— Já sim. Mas já faz um tempo que acabou.
— Sério? Que pena. Por que terminaram?
A pergunta me pegou desprevenido. Respondi sem pensar:
— Ele se mudou.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, e só o som do carro preenchia o espaço. Mas quando olhei de relance pelo retrovisor, percebi. Algo no olhar dela tinha mudado. Antes, doce e gentil. Agora... era mais duro, mais fechado. Um olhar que eu conhecia bem. Mistura de desconfiança e raiva contida.
Senti meu estômago revirar.
Quando o carro parou diante da minha casa, me preparei pra sair rápido. Já tinha visto minha mãe na porta, de braços cruzados, aquele olhar de “explica ou apanha”.
Mas antes que eu abrisse a porta, Lucas me segurou pelo braço com delicadeza e me entregou um papel pequeno, dobrado e enrolado com cuidado.
— Lê em casa — disse, baixo, quase num sussurro.
Assenti, sem saber o que esperar. Saí do carro, e como já era de se esperar, minha mãe já vinha vindo, farejando novidade.
— David, aconteceu alguma coisa?
— Não, mãe. Essa é a dona Débora, mãe do meu amigo Lucas. Ela me deu uma carona.
Dona Débora acenou do volante, educada:
— Ah, a senhora é mãe do David? Ele é um menino esperto.
Entrei antes que as duas pudessem fazer uma fogueira de olhares. Mas soube, pela troca rápida de palavras, que alguma coisa tinha ficado no ar.
Lá dentro, tirei o tênis ainda na porta e nem deu tempo de respirar. Minha mãe veio direto:
— Você tá ficando com esse menino?
— Não, mãe. Ainda não... mas gostaria.
Ela me olhou com olhos de radar.
— Cuidado. Aquela mulher tem alguma coisa que me incomoda.
— É... eu notei isso também.
Fui pro quarto e só então lembrei do papel. Sentei na cama e desenrolei com cuidado. Era só uma palavra, escrita com caneta preta numa letra caprichada, pequena, mas firme:
“Quero.”
Olhei aquela palavra por alguns segundos como se ela tivesse vida própria. E talvez tivesse.
Sorri sozinho, e guardei o papel dentro da capa do meu caderno de história. Sabia que ia reler ele muitas vezes.
E então me lembrei da frase que eu tinha dito mais cedo, olhando nos olhos dele, a voz firme apesar do medo:
“Se você disser que quer, eu beijo sua boca e não te solto nunca mais.”
Agora eu sabia.
Aquela era a resposta.
No sábado, às dez em ponto, ouvi a buzina da dona Débora na frente de casa. Minha mãe me olhou com aquela cara que dizia tudo sem dizer nada: juízo, garoto. Só sorri, dei um tchau e fui.
Entrei no carro. Lucas estava no banco da frente, cheiroso como sempre, sorrindo tanto que até fechava os olhos.
— Oi, campeão — falei, animado —. Vamos dar uma de Daniel San pra cima deles?
Ele riu, daquele jeito que fazia tudo valer a pena. Cumprimentei a dona Débora, que me respondeu com um sorriso meio amarelo, educado demais pra ser verdadeiro.
Seguimos até o tal dojo. No caminho, Lucas não parava de falar. Estava tão ansioso que nem respirava entre uma frase e outra. Contava sobre os treinos, os katas, o tempo que esperou por aquela faixa preta. Eu só ouvia, e dona Débora também — mas ela com um silêncio que dizia mais do que qualquer fala.
Quando chegamos, Lucas foi se trocar e eu subi com a mãe dele pra arquibancada. O ambiente cheirava a tatame limpo e nervosismo. As famílias se espalhavam em pequenos grupos, câmeras descartáveis e olhos orgulhosos em cada canto.
Ela ficou em silêncio por um tempo, depois se virou pra mim.
— David... queria falar contigo a sós.
— Pode falar, dona Débora.
Ela me encarou firme, sem rodeios:
— O que você quer, realmente, com meu filho?
Respirei fundo.
— Sinceramente? Quero namorar ele.
Ela me estudou por um segundo, depois perguntou:
— Sua mãe sabe disso?
— Sabe sim.
— Ela aprova?
— Ela me apoia... mas não sei se aprova. E também não desaprova. Acho que ela entende que é a minha vida.
Houve uma pausa. Os gritos de crianças menores brincando num canto ecoavam pelo espaço. Então ela disse, com a voz um pouco mais baixa:
— Você sabe por que minha filha mora fora do Brasil?
— Ela foi estudar... não é?
Dona Débora balançou a cabeça, devagar. Seus olhos perderam o foco, como se olhassem pra um ponto bem além dali.
— Tiffany sofreu uma tentativa de homicídio por ser trans. Quase morreu. Depois daquilo, mandamos ela pra viver com os tios, no Japão. Era a única forma de mantê-la viva. E segura.
Tiffany.
Era a primeira vez que eu ouvia o nome feminino dela. E, naquele instante, entendi que o silêncio da dona Débora não era só desconfiança. Era medo.
— Dona Débora... — falei com cuidado — sei que o mundo lá fora pode ser cruel. E entendo seu medo, de verdade. Mas... não dá pra deixar de viver por causa disso. A gente não pode parar de ser feliz por medo de viver.
Ela me olhou de novo, como se quisesse encontrar mentira nos meus olhos. Mas, antes que dissesse algo, a música mudou e a cerimônia começou.
Lucas entrou no tatame.
Kimono branco impecável, faixa marrom firme na cintura, expressão de concentração. Era outro ali dentro. Focado, firme, quase adulto.
Eu sorri sem querer. Ele era lindo de qualquer jeito, mas naquele momento... era impossível não se apaixonar mais um pouco.A cerimônia começou com silêncio e respeito. Um a um, os alunos se alinharam no tatame, enfileirados por 4. As luzes brancas do teto deixavam tudo com um brilho limpo e quase solene.
O mestre chamou os nomes. Cada um avançava ao centro, fazia a saudação e executava o kata com precisão. Os mais novos erravam passos e eram aplaudidos com carinho. Os mais antigos mantinham a rigidez e o foco como se o estivesse em jogo.
Quando o nome de Lucas Hatada foi chamado, o silêncio pareceu se aprofundar. Ele caminhou ao centro com uma postura impecável, reverenciou o mestre e depois a arquibancada. Por um instante, seus olhos buscaram os meus — e encontraram. Eu sorri. Ele respirou fundo e começou.
Cada movimento era firme, preciso, quase poético. Não era só técnica. Era memória, dor, esforço e disciplina. E era bonito ver tudo isso vindo de um garoto que ainda sorria com os olhos fechados.
Ao fim do kata, o mestre o chamou novamente. Houve um momento de pausa, e então, com as duas mãos, o sensei entregou a faixa preta.
Houve palmas. Algumas tímidas, outras calorosas. Lucas reverenciou novamente, primeiro ao mestre, depois à bandeira, depois ao chão. E quando se virou, ainda ajoelhado, olhou de novo pra arquibancada. E pra mim.
O olhar dele dizia tudo: viu? Eu consegui.
Assim que a cerimônia terminou, Lucas veio correndo em minha direção, eufórico. Os olhos brilhavam como nunca, a faixa preta presa firme na cintura, o corpo vibrando de orgulho.
Eu estava ali na arquibancada, ao lado da mãe dele. Sentado. Tenso. Cheio de um sentimento que não cabia mais no peito.
Quando ele subiu os degraus e chegou perto, sorrindo feito criança, eu não consegui mais me conter.
Levantei num impulso, puxei ele pela gola do kimono, e beijei.
Beijei sem medo. Sem pensar. Sem medir.
Beijo de cinema.
Beijo suado, nervoso, apaixonado.
Beijo que veio de longe, de dentro, de dias guardado.
Por um momento, era só ele.
Só aquele sorriso colado no meu.
Só a certeza de que aquilo não era mais um sonho.
Mas o mundo não parou com a gente.
Houve um estalo de choque na arquibancada. Silêncio por um segundo.
E então os sons começaram.
— Ei, que porra é essa?! — gritou um pai, indignado.
— Falta de respeito com as crianças! — resmungou uma senhora.
— Isso aqui é lugar de família!
Mas junto vieram outros sons.
Vozes mais jovens, mais firmes:
— Lindos!
— Boa, moleque!
— Beijo é amor, não vergonha!
— É sobre isso!
A arquibancada virou um campo dividido. Metade indignada, metade encantada.
Quando o beijo terminou, Lucas não disse nada. Só encostou a testa na minha, rindo baixo, ainda sem fôlego. Os olhos brilhando mais do que nunca.
E então, só então, percebi a presença da dona Débora ao meu lado. Ainda sentada. Imóvel. Com os olhos fixos na gente.
Ela não disse uma palavra.
Mas seu rosto era um campo de batalha silencioso entre o choque, o medo... e alguma ponta de entendimento.
Talvez raiva.
Talvez dor.
Talvez amor demais.
Mas nós estávamos ali.
Juntos.
E não pedimos desculpas por isso.
Na saída do dojo, caminhei ao lado da dona Débora até o estacionamento. Lucas estava empolgado, girando a mochila como se o mundo fosse leve de novo.
— Dona Débora — comecei, tentando parecer tranquilo —, será que eu e o Lucas podemos dar uma volta? Só pra comemorar... tomar um milkshake, sei lá.
Ela parou ao lado do carro, segurando as chaves nas mãos como quem segura um dilema.
— Ele ainda está com a roupa do treino... — disse, tentando encontrar uma desculpa.
— Eu levo ele pra casa depois. A gente só vai dar um passeio.
Ela me olhou nos olhos. Longo. Como se quisesse enxergar quem eu era de verdade. Parecia relutante, aflita. Mas respirou fundo e assentiu.
— Só toma conta dele. E voltem antes de escurecer.
Lucas sorriu como quem ganhava um presente de aniversário. E eu também.
Fomos direto pro shopping. Pegamos dois milkshakes, um de morango pra ele, um de chocolate pra mim e ficamos ali, na praça de alimentação, rindo de qualquer coisa. Era como se estivéssemos dentro de uma bolha onde ninguém nos julgava. Um intervalo do mundo.
Depois, entramos no cinema. Nem lembro direito qual era o filme. Sentamos no fundo, e nos beijamos como quem finalmente podia respirar. Beijos longos, calmos, urgentes. Como se o tempo quisesse tirar o atraso por todo o tempo em que a gente se escondeu de nós mesmos.
O cinema escuro virou nosso abrigo. E cada beijo parecia dizer a mesma coisa: que não havia mais espera. Em um momento, olhei para ele, um sorriso cúmplice se formando, e sugeri uma "fugidinha" para o banheiro. Ele entendeu o recado. Não queria cometer o mesmo erro que cometi com Toni; eu iria proporcionar prazer a ele na mesma intensidade que recebia.
Lá dentro, sentei no vaso sanitário e ele ficou de frente para mim, os joelhos quase tocando os meus. Com as mãos tremendo de antecipação, abri seu calção e desci o zíper, revelando um membro rosado e delicado, ainda coberto pelo prepúcio. Não tínhamos muito tempo, mas a urgência só aumentava o tesão. Não me fiz de rogado; inclinei-me e abocanhei-o com uma avidez faminta, sentindo a maciez e o calor. Meus lábios e língua trabalhavam em conjunto, sugando, lambendo, beijando cada centímetro, explorando a glande sensível até que ele começou a gemer baixinho, um som gutural que me incendiava. Continuei, acelerando o ritmo, até sentir o espasmo final e o sabor salgado e morno do seu gozo preenchendo minha boca. Engoli tudo, sem deixar sequer uma gota escorrer, um ato de total possessão. Levantei e o olhei nos olhos, o brilho do desejo aceso em ambos. Beijei-o profundamente, transmitindo o gosto dele mesmo, um beijo de entrega e cumplicidade que selava aquele momento.
Então foi a vez dele. Com os olhos fixos nos meus, ele deslizou minha calça e cueca, revelando meu membro já rijo e pulsante. Seus olhos se arregalaram um pouco; ele não disse nada, mas percebi o choque sutil com o tamanho, talvez nunca tivesse visto um daquele porte tão de perto. Ainda assim, não fez cerimônia. Sua língua quente e úmida envolveu a cabeça, e ele desceu, chupando com uma voracidade surpreendente. O calor de sua boca me engolfou, e eu senti um arrepio percorrer meu corpo. Precisávamos fazer silêncio para não sermos descobertos, então não pude dar instruções, mas ele se virou com maestria, movendo a cabeça para cima e para baixo em um ritmo perfeito, vez ou outra apertando a base com a mão, me levando à beira do precipício.
Gostei muito de cada segundo, principalmente por causa do tempo que passamos sem fazer nada, guardando essa vontade. Na hora do orgasmo, ele não conseguiu manter tudo na boca, e algumas gotas escorreram pelo seu queixo e bochecha, paguei um papel e o limpei delicadamente, ele me deu um último beijo.
Saímos dali com um sorriso discreto no rosto e uma cara de culpados, como se todos soubessem exatamente o que tínhamos feito. A adrenalina e o prazer misturados nos deixaram em um êxtase silencioso.