DUAS SEMANAS DEPOIS!
❖ FRONTEIRA BRASIL-COLÔMBIA – 06:48 DA MANHÃ ❖
O sol ainda lambia o topo da selva quando o comboio apareceu. Três caminhões baús, pintados de branco sujo, com o logo de uma empresa fake de frango congelado na lateral: “Frango & Frigoríficos São José”. Por fora, só mais uma carga da indústria alimentícia. Por dentro, a porra toda do império: crack puro, prensado em tijolo, cheiro forte escondido por gelo seco e isopor podre.
Dinho desceu da picape blindada que vinha escoltando a frente. De boné pra trás, camisa regata colada no peitoral, cigarro na boca e olhar de tubarão. O radinho preso na calça zumbia comandos curtos, e o celular queimava no bolso com mensagens não lidas. Mas ali, na fronteira da porra toda, só o momento interessava.
— Esse é o novo esquema, porra. — ele disse pro colombiano parrudo que esperava do lado da cancela, vestido de roupa camuflada e com um fuzil pendurado no ombro. — Tu manda a pedra no isopor, a gente entrega em Porto Alegre, sob contrato de frango. O mapa é o mesmo que os gringo usavam pra fazer contrabando de cigarro. Tamo invertendo o jogo agora.
— Y los federales? — o colombiano coçou o queixo, desconfiado.
— Os federais mamam na nossa mão, caralho. Pagamento mensal, dois por fora pra cada comando da área. E se vier operação surpresa, a gente torra o galpão e some com o rastro em trinta minutos. Esse esquema aqui é blindado.
O colombiano estalou os dedos, fez sinal pros capangas. Os três homens armados abriram o último caminhão. No fundo, entre as caixas de frango congelado, estavam os pacotes prensados de crack, embalados a vácuo, marcados com selo e numeração.
— Cem quilos nessa leva. Mais duzentos vindo semana que vem. — disse o colombiano. — Es tu responsabilidad si algo sale mal.
Dinho deu um tapa no capô do caminhão, mascando o cigarro.
— Relaxa, porra. Quem manda nessa porra de rota agora sou eu. O Jeff tá machucado, mas tá respirando. E enquanto ele respira, a favela continua comendo no prato certo. Eu faço a engrenagem girar. — ele parou, acendeu outro cigarro com calma. — E se a polícia subir, a gente desce com bala. Fim.
Os colombianos assentiram. O trato tava feito.
❖ ALGUMAS HORAS DEPOIS – NA ENTRADA DA ROCINHA ❖
Os caminhões chegaram no início da noite, acompanhados de duas motos que rodavam na frente, avisando o bonde se tinha blitz, viatura ou helicóptero rondando. No rádio do Sandro, a voz de Dinho estourava:
— Já tão subindo com a carga. Recebe no Galpão Azul, atrás da barbearia. Guarda com os moleque do Rato. Ninguém mete a mão nessa porra, ouviu?
Sandro já tava esperando na laje do Galpão Azul, fuzil no peito e dois moleques armados perto da porta. Assim que os caminhões encostaram, o portão levantou e o plano entrou em ação.
— Bora, porra! Desce essa merda logo, que o cheiro tá forte pra caralho! — Sandro gritou, puxando as caixas com a ajuda de Zulu, outro cria da comunidade.
As caixas foram empilhadas dentro do galpão, trancadas e vigiadas por sete fuzil portando colete e olho de águia. O crack, prensado e puríssimo, ia ser esfarelado, empacotado e distribuído nas biqueiras durante a semana. E parte ia descer pro Sul do país em novas remessas de frango falso.
— É isso, caralho. O tráfico agora é business, porra. Empresa, contrato, rota. Quem diria que a favela ia dominar o Brasil vendendo pó no meio do peito do frango congelado. — Dinho falou, rindo, enquanto passava a mão pelo cabelo suado.
Um dos moleques abriu uma das caixas e quase desmaiou com o cheiro:
— Porra, Dinho... isso aqui tá mais forte que bafo de onça, cê é doido...
— Fecha essa porra, otário! — Sandro berrou, dando um tapa na cabeça do moleque. — Isso aí é ouro, caralho! Só abre na hora certa.
Do alto da laje, os olheiros observavam a movimentação da polícia. Por enquanto, tudo em silêncio. Mas na favela nunca se dorme. Sempre tem um olho aberto, uma arma engatilhada, e uma boca pronta pra denunciar.
Dinho sentou num banquinho sujo, puxou o rádio e avisou:
— Jeff, tá feito. Carga chegou. A favela agora é rainha do crack. Vamo dominar essa porra toda.
Silêncio do outro lado. Mas ele sabia que o recado tinha sido recebido. Jeff, mesmo deitado, machucado, ainda era o rei. E Dinho era o cérebro da coroa.
A noite caiu com a favela pulsando em fumaça de baseadão, gritos de moto, rádio tocando brega, e o cheiro do novo império se espalhando pelo ar.
O tráfico agora era rota. Era logística. Era guerra e lucro na mesma medida.
E ninguém ia parar esse bonde.
❖ Rocinha — Casa do Paulão – 22:11 da noite ❖
A noite tava quente, abafada, daquelas que o sovaco já começa a pingar antes mesmo da cerveja gelar. A laje de casa tava com a luz amarelada da gambiarra piscando, churrasqueira velha cuspindo fumaça, e uma caixa de som da JBL roubada batendo o funk mais pornográfico que existia.
Rodrigo tava sentado com as pernas cruzadas numa cadeira de praia rosa, com um copão de cerveja na mão e um espetinho de coração na outra. Usava um shortinho curto, que mais parecia um tapa-buceta de bandida em baile funk. Cabelo preso num coque frouxo, unha pintada de preto e glitter no olho, como se fosse pra um bloco e não pra minha casa.
Eu, de bermuda e sem camisa, já tava na terceira cerveja. Sentado no chão de cimento grosso, encostado no cooler, com a cara suada e o bucho começando a estufar de tanto espetinho e risada.
— Mana... — Rodrigo deu uma lambida no espetinho, fazendo uma cara dramática — ...tu não tem noção da piroca que eu chupei ontem no almoço. Veio direto do Grindr. Morador de São Conrado. Eu falei: “Esse vai botar o peru até na minha alma”.
— Ah não, viado... — falei rindo, com a boca cheia — ...tu não cansa não, né?
— Não, querida. O cu foi feito pra ser usado. A vida é curta e eu sou larga! — disse, dando um gole imenso na cerveja e logo emendando — Menina, o boy abriu a porta pelado, com uma rola que parecia um extintor da escola estadual onde eu estudei. Eu olhei e falei: “Deus me livre, mas quem me dera!”
— Puta que pariu, Rodrigo... — botei a lata no chão, limpando a boca com o dorso da mão — ...tu fala de rola como se fosse sabor de sorvete.
— E não é? — ele rebateu, se abanando com um chinelo — Tem rola crocante, rola amanteigada, rola com sabor de cu mal lavado... aff! A que eu chupei ontem tinha gosto de crachá de trabalhador cansado. Uma delícia, toda veia saltada, parecia que ia explodir na minha goela.
— Vai se foder! — gargalhei, jogando o espeto longe e batendo na coxa — Tu é um caso de internação, porra!
— E tu acha que é fácil viver nesse morro sem gozar, Paulão? — Rodrigo inclinou o corpo e me olhou sério, com brilho no olho — Todo mundo armado, cheirado, jurado de morte... se eu não abrir as pernas, eu enlouqueço. Foda-se! É dar ou surtar!
Fiquei quieto por um segundo, olhando pro céu nublado. A fumaça do churrasquinho subia devagar, e a batida do funk parecia mais baixa naquele instante. Rodrigo me encarou de lado, mais calmo:
— E tu? Vai viver de saudade do Jeff e medo do teu tio pro resto da vida?
— Vai tomar no cu... — falei baixo, jogando a cabeça pra trás. — Os dois me fodem sem me comer mais. Tô cansado.
— Então chupa uma rola nova, gata. Renova tua alma. — disse, piscando.
— Tu vive dizendo isso, mas só chupa e chora depois.
— Mas chupo feliz, bebê. Melhor que viver de pau velho e coração quebrado. — Rodrigo se levantou, pegou mais uma cerveja no cooler e me entregou. — Bebe, vai. Hoje é dia de esquecer.
A gente encostou um no outro, vendo o movimento da rua lá embaixo. A favela tava viva, como sempre. Criança correndo, moto subindo buzinando, mulher gritando com marido, latido de cachorro, e o som do morro nunca calava.
De repente... POW!
— Caralho, que porra é essa? — levantei de supetão, com a cerveja pingando no peito.
— Fogos, bicha! — Rodrigo arregalou os olhos e apontou pro céu — Vem merda por aí...
A explosão continuou. Fogos estourando no alto da favela. Estavam avisando alguma coisa.
— Porra, fogos a essa hora? É sinal. — falei, indo até a mureta da laje.
Rodrigo veio atrás, mordendo o lábio:
— Será que é Jeff? Será que ele tá bem?
— Não sei, viado... mas essa porra de foguetório à noite... é alerta. Ou chegou droga nova, ou morreu alguém importante.
— Tu acha que é o carregamento do ouro branco? — ele sussurrou, arrepiado.
— Não duvido. Aquilo era pra hoje mesmo...
Rodrigo encostou no meu ombro, de novo mais suave:
— Se for isso, a guerra vai reiniciar com força. Te prepara, Paulão. Tu vai ter que escolher um lado... mesmo que tu ainda ame os dois.
Fiquei quieto, com o olhar perdido nas faíscas que subiam no céu.
Era noite de fogo.
E fogo, naquela favela, nunca era por acaso.
❖ Rocinha – Alto do Complexo – 23:38❖
A fumaça dos fogos ainda pairava no céu quando a picape preto e o Branco branca, sem placa, entrou gemendo pelos becos da parte alta da favela. As vielas estavam escuras, e os olheiros vigiavam de cada esquina com rádio na mão e dedo nervoso.
Jeff tava de pé, encostado numa parede de reboco cru, ombro enfaixado, dor na cara e ódio no peito. Usava uma regata preta, colada no corpo suado, e a bermuda jeans amarrotada, que mal cobria o ferimento. A mão boa segurava um cigarro, e o olho varria o entorno como fera ferida.
— É agora, chefe. — disse Sandro, abrindo o portão improvisado feito de grade velha.
A porta da picape e o caminhão se abriu com um estalo seco. De lá saíram três caixas de isopor, todas etiquetadas com "Frango Congelado – Resfriamento Urgente". Mas ninguém ali tava pensando em comida. As caixas foram colocadas no chão e abertas com faca de serra. Dentro, camadas de frango, gelo seco... e no fundo: tijolos prensados de crack em pó, envoltos em plástico azul e marcados com o símbolo da águia colombiana.
— Porra... isso aqui vale mais que ouro, chefe. — Sandro sussurrou, quase babando nos pacotes.
Jeff tragou fundo o cigarro, sentindo a dor latejar no ombro. Mas não fraquejou.
— Essa merda vai descer pro Labareda primeiro. Depois espalha. Quero ver esse morro nadar em fumaça até a porra do Carlos engasgar com o cheiro. — ele falou, cuspindo no chão em seguida.
Dinho apareceu do outro lado do beco, paletó jogado nos ombros, olhar frio. Ele viera direto da fronteira e trazia o mundo no bolso. Caminhou até Jeff e deu um tapa leve nas costas do Sandro.
— Entregaram tudo. Os colombianos estão com o cu na mão, mas aceitam o esquema do frango. Fizeram a parte deles, agora é com a gente.
— E a Federal? — Jeff perguntou, sem rodeios.
— Comprei a escala dos plantão até semana que vem. O caminhão que vem do Sul já tá com placa clonada, lacre falso e até um motorista boliviano que nem fala português. Os cara é foda. — Dinho sorriu, aquele sorriso que misturava charme e psicopatia.
Jeff assentiu, mas o peito ainda doía. Não só o ombro — o coração tava batendo estranho, como se o ar tivesse pesado, como se a morte soprasse no cangote.
— Tem alguma porra errada, Dinho. — ele disse, apertando a faixa do ferimento. — Sinto isso desde cedo. Esse foguetório... não é só aviso. Tem olho em cima de nós.
Sandro franziu o cenho e encarou o morro abaixo. Dinho ficou em silêncio por um segundo, então se virou pro segurança que tava parado no portão:
— Verifica tudo. Quem tá na laje, quem subiu hoje, quem desceu. Se tiver gente nova rondando o morro sem nossa permissão, desce na bala.
— Pode deixar. — respondeu o cria.
Mas o que Jeff e Dinho não sabiam... é que o olho já tava lá dentro.
❖ Algum lugar entre o Complexo e o Asfalto — 00:07 da madrugada❖
Um moleque — sem nome, sem rosto revelado, com touca, máscara e casaco largo — desceu a Rocinha em silêncio, como se fosse invisível. Ninguém barrou. Ninguém estranhou. Ele era cria. Cria conhecida. Mas ninguém sabia que ele era cobra com escama de policial.
Chegou num ponto cego do asfalto. Sacou um celular velho, abriu o Zap com chip clonado, digitou rápido:
> — O camião descarregou 3 caixas. Crack da Colômbia chegou. Jeff tá ferido, mas vivo. Distribuição começa amanhã. Tão se sentindo confiantes. Mas tão com medo de traíra.
Mandou. Bloqueou o número. E desapareceu na escuridão.
❖ Base Operacional da PM – 00:12❖
O celular vibrava na mesa metálica.
Léo, de camisa preta e pistola no coldre, leu a mensagem com a luz do cigarro aceso no canto da boca. Os olhos dele brilharam — não de susto, mas de satisfação sádica.
— Peguei vocês, seus filha da puta... — murmurou, se virando pra Carlos que mexia num mapa.
— Major... chegou. Temos espião no morro. Eles caíram na nossa rede.
Carlos sorriu sem mostrar dente.
— Agora a guerra vai ser no campo deles. E dessa vez... sem sobrevivente.
❖ Rocinha – Dia seguinte – 07:32 da manhã❖
O céu tava limpo. Sol estralando nas lajes, cheiro de pão fresco vazando das padarias e o barulho dos motoqueiros subindo e descendo com gás, marmita e droga.
Paulão vinha rindo com Rodrigo descendo o morro, cada um com um copo de café na mão e mochila jogada nas costas. Jaleco dobrado. Cara de sono. Corpo moído.
— Viado, tu não tem noção da rola que eu peguei ontem no Grindr. — Rodrigo falava alto, rebolando até quando andava. — Um negão que parecia que carregava uma cobra africana na cueca. Por Deus. O pau dele dava pra bater tambor de escola de samba.
— Tu só fala disso, caralho. — Paulão gargalhou, ajustando o boné. — Qual foi? Vai abrir um museu de piroca agora?
— Eu tô colecionando trauma, more. Cada racha é um susto novo. O de ontem quase me fez vomitar de prazer. E tu aí, se fazendo de hétero de novo só porque o Jeff tá de molho e teu tio sumiu.
— Vai tomar no cu, viado. — Paulão empurrou ele, ainda rindo.
Lá na frente, a mãe do Paulão, Dona Áurea, saía da padaria carregando uma sacola de pão e um potinho de café preto. Cabelo preso, vestidinho estampado, chinelo de dedo. Caminhava devagar, olhando os dois filhos dela — um de sangue, outro de coração.
Mas aí...
Um carro prata, com película escura, subiu em alta velocidade e parou do nada.
— Ô, porra... — Paulão resmungou, franzindo a testa. — Que caralho é esse?
Antes que qualquer reação acontecesse, dois homens armados com pistolas 9mm desceram do carro. Um agarrou Dona Áurea pelo braço, outro meteu o cano no rosto dela.
— ENTRA, CARALHO! — gritou o primeiro, puxando ela à força.
Ela gritou.
Paulão deixou o copo cair.
Rodrigo congelou.
— MÃE!!! — Paulão correu, mas os caras já tinham entrado no carro e arrancado, jogando pão e café pra tudo quanto é lado.
Rodrigo segurou Paulão pela camisa antes que ele saísse correndo que nem maluco.
— FOI A RIVAL! — Rodrigo berrou. — EU VI A TATUAGEM! É DA FACÇÃO NOVA!
❖ No morro – 07:39 da manhã❖
Fogos estouraram do alto do Labareda.
Mas não eram do Jeff.
Era da facção rival. Uma nova. Uma que vinha de fora. A milícia urbana do Pavão-Pavãozinho, agora conhecida como CMDV – Comando da Morte do Vidigal.
Chegaram no morro armado até os dentes, com fuzil AR-15, AK-47, e até granada.
Invadiram pelo acesso do Campinho, que ninguém mais vigiava.
Tiroteio começou na hora.
TRÁ! TRÁ! TRÁ! TRÁ!
Moradores correram.
Portas se fecharam com estalos secos.
O barulho ecoava pelos becos.
Jeff ainda tava se recuperando no esconderijo, mas acordou com o barulho.
— Que porra é essa agora, caralho?! — gritou, se levantando da cama, gemendo de dor.
Sandro entrou no quarto no impulso, fuzil pendurado no ombro, suado.
— CHEGARAM! OS FILHO DA PUTA TÃO SUBINDO! É O CMDV!
— ESSA MERDA É ATAQUE! — Jeff berrou, com o olhar fervendo. — TÃO QUERENDO TOMAR MEU MORRO!
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❖ Embaixo, na rua – 07:44❖
Rodrigo e Paulão se jogaram atrás de um carro estacionado.
Tiros cruzavam as esquinas, as bocas de fumo do Jeff sendo estouradas, um olheiro levou bala na testa a menos de vinte metros deles.
— Paulão! A tua mãe! — Rodrigo chorava, suando frio.
Paulão travava os dentes. O rosto duro, a raiva queimando os olhos.
— Eu vou matar esses filha da puta.
Ele puxou o celular, com a mão tremendo, e discou pra Dinho.
Chamou. Chamou. Chamou. Nada.
— Porra... ATENDE, CARALHO!
— TÁ FICANDO FEIO, VIADO! — Rodrigo gritou. — A facção tá invadindo! E tu sem arma!
— Eu vou subir. Vou atrás do Jeff. Vou pegar arma. Vou achar minha mãe. — Paulão cuspiu no chão, com os olhos vidrados. — Se essa guerra começou... vai ter sangue. E vai ter nome no caixão.
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❖ A guerra começou.
E Paulão vai ser o fio que liga o amor, a dor…
E a vingança.