O FANTASMA DO PASSADO XII - O som do silêncio

Categoria: Heterossexual
Contém 2402 palavras
Data: 20/05/2025 22:21:54

“A Bagunça Que Eu Sou”

Eu não sei exatamente em que ponto tudo começou a desandar. Às vezes penso que não foi agora — que já havia alguma rachadura silenciosa se formando há muito tempo dentro de mim. Mas foi só quando ele voltou que tudo explodiu.

Carlos Eduardo não é apenas um homem do passado. Ele é um espelho de uma parte de mim que eu escondi. Que eu engavetei para poder ser a mulher que todos esperavam. Que Matheus amava. Que eu mesma achava que era.

E eu juro... eu tentei resistir. Tentei entender por que esse reencontro mexeu tanto comigo. Por que, mesmo tendo Matheus ao meu lado, eu me senti confusa, partida, incompleta. Não é falta de amor. Nunca foi. Eu amo Matheus com tudo que sei sobre amor.

Mas o amor, às vezes, não basta pra impedir o caos. E foi isso que eu virei: caos.

[...]

...

“Vai. Eu não posso prender o que já não está mais aqui.”

A frase ainda estava no ar.

Não havia mais nada entre eles além do som da respiração contida. Era como se as palavras de Matheus tivessem se infiltrado pelas paredes do apartamento e agora escorressem pelas frestas, repetindo-se em eco mudo. Já não está mais aqui... já não está mais aqui...

Amanda não conseguia se mover. Sentada na beira da cama, ainda nua, os músculos contraídos, as pernas trêmulas do orgasmo de minutos antes, mas a alma — essa estava em carne viva. Ela não chorava. Nem ele. Era como se o silêncio tivesse congelado qualquer reação visível, como se o tempo aguardasse uma decisão.

Matheus estava de pé, encostado à parede, o olhar perdido no chão. O peito nu subia e descia lentamente, mas os olhos — vermelhos, fundidos em sombra — pareciam secos, como se o corpo tivesse se recusado a produzir mais lágrimas. Seus ombros estavam tensos. Os dedos, crispados.

O quarto parecia frio, apesar do suor ainda quente nas peles deles. A luz amarelada do abajur deixava tudo em sépia — como uma lembrança antiga, como uma despedida velada.

Amanda pensou em falar. Quis se vestir. Quis gritar, negar, correr para os braços dele. Mas algo a paralisava. Não era medo. Não era dúvida. Era o peso. O peso do que ela havia provocado. De onde ela havia se enfiado.

A frase dele não era um grito, nem uma acusação. Não havia mágoa na voz de Matheus. E isso — isso — doía mais do que qualquer coisa. Havia resignação. Havia amor, ainda. Mas um amor que se dobrava à verdade.

E a verdade era: ela tinha ido embora de dentro. Mesmo estando ali.

Matheus caminhou até a janela. O barulho da cidade lá fora parecia um insulto àquela quietude sufocante. Amanda o observou de costas. E pela primeira vez, notou como o corpo dele — aquele corpo que ela conhecia com a palma da mão — parecia distante, intocável. Como se um véu invisível os separasse agora.

No corredor, a luz do banheiro ainda tremia, pendurada entre dois mundos — o da casa onde moravam e o universo onde tudo se quebrou naquela madrugada.

Amanda se levantou. Devagar. As pernas ainda doíam. O sexo ainda latejava. O cheiro deles ainda estava no ar, misturado ao suor e à dor.

Matheus não a olhou.

Ela caminhou até ele. Parou atrás dele. Estendeu a mão. Mas não o tocou.

A distância de um toque.

Era ali que eles estavam agora.

A manhã nasceu sem anunciar sua chegada. A luz filtrava-se pelas frestas da persiana como quem pede desculpas por invadir. Não havia som. Nenhum pássaro. Nenhum despertador. Nada. Apenas o pulsar abafado da dor, como um tambor tocando dentro do peito de cada um.

Amanda ainda estava deitada, mas seus olhos não conheciam mais o repouso. O corpo suava, mesmo sem calor. A pele, fria e exposta à penumbra do quarto, estremecia mais pela memória do que pela temperatura. Havia algo seco em sua garganta, como se tivesse chorado por dentro a noite inteira, sem dar um único som ao mundo.

Matheus estava de costas para ela. O lençol subia e descia com sua respiração contida. Ele também não dormira. Fingira. Passara horas imóvel, os olhos abertos em silêncio, assistindo a própria mente projetar imagens que ele queria arrancar com as unhas.

"A porta já está aberta. O fantasma já está na sala."

A frase de Amanda, dita com olhos marejados e mãos trêmulas, era agora um eco entre as paredes. Mas o que de fato ressoava era o sussurro dele, pesado e doce, cruel e resignado:

"Vai. Eu não posso prender o que já não está mais aqui."

Era o dia D — o dia da decisão. Amanda se levantou devagar, sem fazer barulho, mas sentindo como se cada passo seu ecoasse nos ossos de Matheus. O chão estava gelado. O corpo, dormente. O coração... partido, dividido, ainda amarrado por fios invisíveis que ela mesma puxava em direções contrárias.

No banheiro, Amanda apoiou-se na pia. Fitou o espelho. Viu uma mulher que não sabia mais quem era. Olheiras, olhos marejados, cabelos desgrenhados. Mas era mais que cansaço — era culpa. Era desejo. Era amor confuso e ferido.

Ela lavou o rosto, buscando alguma forma de acordar não o corpo, mas a alma. Enxugou devagar, como se temesse apagar algo importante com a toalha. Olhou para baixo. As mãos tremiam. A aliança ainda estava ali, no dedo, queimando silenciosamente como um lembrete de tudo o que ela ainda não queria perder.

Na sala, Matheus também havia se levantado. Não fizeram café. Não ligaram a TV. Não se falaram. Apenas coexistiram no mesmo espaço, como dois fantasmas que se esbarram, mas não se tocam.

Ele olhou para ela, por cima da borda da xícara vazia que segurava só por hábito. Amanda sustentou o olhar por um segundo... depois desviou. Havia peso demais entre eles. E nenhuma palavra podia aliviar.

Ambos sabiam: aquele era o último café da manhã dos dois como eles eram. Depois daquele dia, algo morreria. Ou tudo.

Amanda encostou-se na lateral da bancada da cozinha. As mãos entrelaçadas na frente do corpo, como se escondessem alguma coisa. Ou como se estivessem pedindo perdão.

Matheus continuava parado, em pé, com a xícara vazia esquecida na mão. O olhar dele flutuava por sobre os ombros dela, mas não se fixava em lugar nenhum. Era como se olhasse além, para um lugar que Amanda não podia alcançar — ou que talvez tivesse deixado de habitar.

O relógio marcava 8h37. O tique-taque parecia mais alto que de costume. A cidade começava a se mover lá fora. Mas dentro do apartamento, tudo estava parado.

Amanda sentou-se à mesa. O gesto simples trouxe um ruído discreto, quase violento, naquele espaço carregado de silêncio. Matheus a observou por um instante e, sem dizer nada, puxou a cadeira em frente e também se sentou.

A mesa era pequena. Mas havia quilômetros entre eles.

Ela tentou sorrir. Um reflexo automático, sem alma. Matheus notou, mas não respondeu com nada. Nem com o rosto. Nem com os olhos. A expressão dele era a de alguém que já entendeu o desfecho, mas ainda resiste em aceitar os créditos finais do filme.

— Eu sonhei com a gente essa noite — Amanda disse, num fio de voz.

Matheus olhou para ela, por fim. Um olhar que não era bravo, nem triste. Era... velho. Um olhar de quem estava cansado de doer.

— Você era minha — ela continuou. — Só minha. A gente estava rindo. E... você me puxava pra perto, como fazia antes. Eu sentia o seu cheiro. Aquela mistura de sabonete e camisa velha. Era tão real... que eu quis dormir pra sempre.

Matheus encostou a xícara na mesa com cuidado. Por um segundo, Amanda quis que ele dissesse algo. Qualquer coisa. Um "eu também". Um "eu ainda estou aqui". Mas ele permaneceu em silêncio.

— Eu não quero ir — ela disse, com os olhos marejando.

— Mas vai — ele respondeu, sereno, sem pressa.

Amanda baixou a cabeça. As lágrimas vieram sem alarde, escorrendo como chuva fina em janela fechada. Do outro lado da mesa, Matheus olhava para ela como se memorizasse o momento. A curva dos ombros dela. A posição dos dedos. O brilho torto no olho esquerdo.

Ele se levantou primeiro. Lento. Quase cerimonial.

Caminhou até o quarto sem dizer mais nada. Amanda ficou onde estava por alguns minutos, como se seu corpo precisasse de tempo para acompanhá-lo. Depois, ela também se levantou. Os pés descalços sobre o piso frio, a respiração entrecortada, o peito num vai e vem de lembranças e vontades que se contradiziam.

Ela entrou no quarto. Ele estava sentado na beirada da cama, com os cotovelos apoiados nos joelhos, olhando para o chão como se esperasse respostas ali.

Amanda ficou em pé na porta, segurando o batente, e só depois deu dois passos hesitantes. Matheus levantou o rosto.

— Eu ainda te amo — ela disse.

Ele soltou um riso seco, quase inaudível.

— Eu sei.

Ela se aproximou mais.

— Você não acredita.

— Eu só não sei se isso é suficiente.

O silêncio caiu como um manto pesado. Amanda se ajoelhou na frente dele. Colocou as mãos nos joelhos dele. Matheus olhou para baixo, encontrando os olhos dela.

Ali havia verdade.

Mas também havia ausência.

Ela era dele. E não era. Ela estava ali. Mas parte dela já estava em andares abaixo. Num apartamento, talvez, com cheiro de café e passado mal resolvido.

Matheus ergueu uma das mãos e tocou o rosto dela. Era como tocar um fantasma — alguém que ainda existe, mas que já começou a desaparecer.

Amanda encostou a testa nas pernas dele. Ele pousou a mão sobre os cabelos dela. Ficaram assim por um tempo longo demais pra ser só ternura, mas curto demais pra ser despedida.

O relógio agora marcava 9h12.

A hora estava chegando.

E eles ainda não sabiam se estavam se despedindo... ou apenas respirando juntos pela última vez antes do salto.

14h17.

A porta se fechou com um clique seco. Matheus havia saído. Disse que precisava andar, que ia respirar, qualquer coisa que não fosse sufocar ao lado dela.

Amanda permaneceu sentada na beira da cama, vestindo ainda a camiseta larga que mal cobria as coxas. Os cabelos presos num coque frouxo, o rosto pálido demais. As mãos espalmadas nas pernas. Nem sabia há quanto tempo estava ali, imóvel.

O silêncio da casa era um organismo vivo. Respirava entre os móveis, pendia das paredes, vibrava dentro do peito dela. A frase de Matheus ainda rondava como um fantasma de voz baixa: "Vai. Eu não posso prender o que já não está mais aqui."

Aquelas palavras não tinham sido apenas uma liberação. Tinham sido uma sentença.

15h02.

Amanda se levantou devagar. Abriu as janelas, depois as fechou de novo. O céu lá fora era uma massa disforme, abafada, mas ela estava com frio.

Foi para a cozinha, colocou água pra ferver. Tentou fazer café. Queimou o pó.

Jogou fora. Fez de novo.

Sentou-se à mesa com a xícara quente entre as mãos. Não tomou um gole. O cheiro a nauseava. Seu estômago, vazio, recusava tudo.

Pensava em Matheus com os olhos fundos, injetados. Pensava em Cadu sorrindo em silêncio no restaurante.

16h11.

O tempo era um inimigo educado, mas cruel. Passava sem pedir licença.

Amanda levantou-se para tomar banho. Parou no meio do corredor.

Voltou para o quarto. Abriu o armário. As roupas pareciam zombar dela, todas elas. Nenhuma parecia certa para aquilo. Um vestido preto curto? Sexy demais. Um macacão fechado? Formal demais. Aquele vermelho que Matheus adorava? Não.

Acabou escolhendo um vestido vinho de alcinha fina. Colocou sobre a cama. Ainda não era hora.

17h03.

Ligou o chuveiro. A água quente caiu sobre os ombros como um peso novo. Lavou o corpo devagar, como se cada gesto pudesse limpá-la das últimas semanas. Mas era inútil. A culpa não saía com sabonete. Nem o arrependimento. Nem o desejo.

Fechou os olhos debaixo da água. Viu Matheus olhando para ela naquela madrugada. Viu o toque dele. O carinho. Viu a dor no fundo dos olhos dele quando ela chegou ao clímax, tremendo de vergonha e desejo ao mesmo tempo.

Ela era dele. Mas estava indo embora.

18h04.

Vestiu-se como quem se arruma para o velório do próprio nome. Maquiagem leve, mas firme. Batom cor de vinho. Perfume suave. Aquele que Matheus uma vez dissera que dava vontade de morder seu pescoço.

Sentou-se na beira da cama com o vestido pronto no corpo, o salto alto repousando ao lado, as mãos trêmulas no colo.

Ficou ali, encarando o relógio no celular. A tela apagava. Ela acendia de novo.

18h22.

Nenhuma mensagem de Matheus. Nenhuma de Cadu.

Mas os ponteiros continuavam impiedosos.

Ela iria?

Queria ir?

Por que ainda doía tanto se já estava tudo decidido?

Amanda se levantou. Calçou os saltos. Caminhou até o espelho do quarto. Olhou seu reflexo como se fosse outra mulher.

Linda.

Arrasada.

Quebrada.

Mas firme.

18h53.

Pegou a bolsa. Conferiu o batom no espelho do hall. Abriu a porta do apartamento.

Parou.

O silêncio do corredor parecia puxá-la de volta.

Fechou os olhos.

Respirou.

E saiu.

19h41.

Matheus girou a chave devagar, como quem não queria acordar o silêncio. Empurrou a porta com um cuidado instintivo, mas do outro lado não havia nada para assustar. Nenhum som de salto no piso frio, nenhum perfume no ar. Só o eco do vazio.

Entrou.

A casa parecia maior, o ar mais denso. O casaco dela não estava no encosto do sofá. A bolsa, sempre largada sobre a mesa, tinha ido junto com ela. E sobre a bancada da cozinha... dois copos limpos, intocados, um ao lado do outro. Como se ainda estivessem esperando por algo que não aconteceu.

Matheus apoiou as costas na parede, sem coragem de tirar os sapatos. O som dos segundos marcados pelo relógio da sala soava como um descompasso no peito. Ele pensou em chamar por ela — talvez por reflexo, talvez por desespero — mas não disse nada. Já não havia para quem.

Andou até o quarto. A cama arrumada. Os travesseiros no lugar.

E o silêncio.

Se sentou na beirada do colchão, as mãos entrelaçadas, olhando para o chão como quem espera respostas vindas das frestas.

Nada veio.

Ele fechou os olhos, como se pudesse se esconder ali. Mas só encontrou a frase que havia dito, rondando dentro de si como uma sentença:

"Vai... eu não posso prender o que já não está mais aqui."

E dessa vez, nem ele acreditou que era forte o bastante para deixar ir.

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Comentários

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Matheus agora só lhe resta torcer para que a Amanda que ele se casou volte pois essa é a estudante que foi aluna do Cadu .

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Olha... Termina essa história que já deu. O casal não pode ficar junto. E ai ficou só o drama.

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Boa hora, Matheus pra você ser digno de um homem, e se mandar porque você perdeu por ser tão frouxo, esse é seu preço no momento....?

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Porque ele seria frouxo? Cara ela já não era mais a mesma! Ela mesma apesar de todos os esforços dele queria isso . A frase dele diz tudo " Vai não posso prender o que não está mais aqui " Quem tinha que ter dignidade era ela e dar um basta nesse encontro,no entanto ela não tem forças para desistir. Se ele disser não ela não iria mais ainda ficaria martelando "O que podia ter acontecido se ela fosse ? " De qualquer maneira agora é ele que te que decidir.

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Aaaaaah a ansiedade vai bater forte...

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