Dirigir sempre teve esse efeito estranho em mim. Me isola do mundo. Me dá tempo pra pensar. Tempo demais, talvez. A estrada se estendia à minha frente, reta e silenciosa, e o único som além do motor era o vento batendo nas janelas. Eu podia ter colocado uma música, mas preferi o silêncio. Era como se, sem palavras, eu conseguisse escutar melhor tudo o que estava aqui dentro.
Thales.
Por mais que eu tentasse afastar, ele voltava. O olhar dele naquele dia… era como se ele tivesse levado um soco e não soubesse de onde veio. Eu tinha atingido ele onde doía, de propósito, tinha feito ele sofrer antes de morrer, e o pior é que não me arrependia nem um pouco!
Agora que ele não estava mas entre nós! Será que a polícia de alguma forma suspeita de mim ? Será que já indentificaram o que sobrou dele ? São tantas perguntas! Preciso conseguir respostas!
Suspirei, apertando o volante. Ao meu lado, Jaci estava quieta, olhando pra fora. Ela também carregava seus fantasmas. Talvez por isso a gente se entendesse sem precisar dizer muito.
— Já tá perto da clínica? — ela perguntou, de repente.
Levei um susto. Pisquei, voltando ao presente.
— Tá sim. Uns dez minutos.
Ela assentiu, ajeitando-se no banco. A tensão no corpo dela era visível. Eu conheço Jaci. Sei quando ela tá fingindo estar bem. E hoje… ela tava no limite.
---
A clínica apareceu diante de nós como um lugar fora do tempo. Grande, espaçosa, com árvores e jardins bem cuidados, como se tentassem esconder o que realmente acontecia ali dentro. Um tipo de paz forçada. Mas ainda assim… bonita. O tipo de lugar que tenta acolher o que o mundo rejeitou.
Estacionei o carro e desci. O sol batia forte, mas o ar era fresco. Jaci saiu depois, com passos contidos. Parecia uma menina indo visitar um parente distante.
— Eu vou resolver a parte dos papéis ali na recepção. Você pode ir ver ele. — Falei, apontando pra ala indicada.
Ela só assentiu e saiu. E eu segui pro balcão. Nome, número de cadastro, documentos, termos. Tudo se tornou automático. Uma parte de mim preenchia o formulário. A outra ainda estava lá atrás, com Thales, Arthur, com Mateus, com o passado que eu dizia que tinha enterrado — mas que na verdade eu só tinha enterrado vivo.
Terminei tudo e fui esperar Jaci do lado de fora. Sentei num banco de madeira debaixo de uma árvore. Por alguns minutos, fechei os olhos, tentando respirar. Pensar. Será que um dia eu vou conseguir parar de lutar contra tudo? Será que vou conseguir só... viver?
Mas o tempo de paz durou pouco.
Ouvi passos rápidos. Olhei na direção da entrada da ala interna e vi Jaci vindo em minha direção. Correndo. Descabelada. O rosto molhado de lágrimas. O desespero estampado.
— Pedro! Vamos embora… por favor… vamos agora… — ela chorava, a voz tremia.
Levantei na hora, indo até ela.
— O que foi?! O que aconteceu?
Ela tentava falar, mas a respiração falhava. Então segurou meu braço com força, como se precisasse de algo pra se manter de pé.
— Ele… teu pai… ele ficou nervoso… me empurrou… me chamou de mentirosa… — ela chorava mais forte agora. — Ele me puxou pelos cabelos, Pedro. Ele me olhou com tanto ódio… parecia que nem me conhecia…
Senti meu estômago afundar. Fiquei gelado.
— Ele te machucou? — perguntei, tentando manter a calma, mas sentindo a raiva ferver.
Ela balançou a cabeça, mas as lágrimas não paravam.
— Não… mas me assustei, sabe? Eu só queria ver ele... Dá um abraço...
Puxei ela pra perto e abracei. Ela chorava no meu peito. E eu não sabia o que fazer com tanta dor. Porque doía ver ela assim. Porque, mesmo com tudo que meu pai tinha feito — comigo, com ela, com a gente — ainda existia uma parte dentro de mim que queria que ele fosse outro. Que ele fosse alguém que pudesse amar a gente de volta. Mas não era.
— Vamos embora — murmurei.
Ela assentiu, ainda soluçando.
No carro, o silêncio voltou. Mas agora não era um silêncio confortável. Era pesado. Cheio de lembranças ruins, de promessas quebradas, de perguntas sem resposta.
Eu dirigia com o coração apertado. Olhava pra estrada, mas via tudo menos o caminho. Via meu pai gritando. Via Jaci chorando. Via Thales confuso. Via Mateus com aquele maldito sorriso. Via Arthur cada vez mais próximo de mim...
E pela primeira vez em muito tempo, eu não sabia o que fazer.
Só sabia que algo dentro de mim estava quebrando. E não era só raiva. Era outra coisa.
Era tristeza.
---
Quando estacionei em frente à sorveteria, o sol parecia que queria queimar alguém vivo . Respirei fundo antes de entrar. Ainda sentia o cheiro da clínica, da dor da Jaci, das palavras que ficaram engasgadas. Mas ali… ali era um espaço meu. Um refúgio. E tinha uma pessoinha ali dentro que eu precisava ver.
Empurrei a porta de vidro e entrei, sendo recebido pelo sininho pendurado no alto e pela risada de Clara. Ela estava sentada atrás do balcão, mexendo num caderninho de desenhos, com Camila ao lado, organizando algumas coisas no freezer.
— Oi, Pedro — disse Camila, com aquele sorriso tranquilo de sempre.
— Oi. Vim buscar a mocinha aqui. — Sorri e me aproximei. — Clara, deu muito trabalho?
Camila riu, olhando pra ela.
— Nenhum! Ela foi um anjinho. Me ajudou a separar as colheres coloridas, pintou dois desenhos e só pediu sorvete quatro vezes — disse, piscando pra mim.
— Só quatro? — fingi indignação, e Clara caiu na risada.
— O de morango é o melhor! Eu tava com saudade já!
— Saudade de sorvete ou de mim? — perguntei, me abaixando pra ficar na altura dela.
— Dos dois! — E me abraçou, daquele jeito que só criança sabe abraçar: inteiro, sincero, com o corpo todo.
Agradeci a Camila com um aceno e um olhar cheio de gratidão. Ela percebeu e sorriu de volta, discreta.
— Valeu mesmo por cuidar dela.
— Sempre que precisar, Pedro. Ela é um raio de sol aqui dentro.
Segurei a mão da Clara e voltamos pro carro. Jaci já estava sentada no banco de trás. Parecia distante, com o olhar perdido em algum ponto fora da janela. Ainda sentia o tremor daquilo tudo. Ainda se segurava pra não desmoronar. Assim que Clara entrou, Jaci tentou se recompor, esticando o corpo e ajeitando os cabelos de qualquer jeito.
— Oi, minha flor… — disse ela, quase num sussurro.
— Oi, mãe! Você demorou! — Clara respondeu com doçura, sem perceber a fragilidade da mãe. Criança tem esse dom de enxergar luz onde a gente só vê sombra.
Durante o caminho de volta, Clara foi falando sem parar. Contou do desenho de uma sereia, de um menino que passou na porta da sorveteria e fez careta pra ela, da nova colher azul que ela queria ter em casa. Eu respondia com brincadeiras, fazia vozes bobas, imitava um monstro do sorvete. E por mais que eu tivesse com o peito apertado, a risada dela me curava. Pelo menos um pouco.
Jaci foi ficando um pouco mais presente conforme o carro avançava. De vez em quando sorria, outras apenas observava. Eu via no olhar dela uma batalha silenciosa pra não afundar. E por isso, quando parei o carro em frente à casa, fiz questão de ser inteiro com as duas.
Desci e abri a porta do carro pra Clara.
— Vai lá, mocinha. Toma um banho e escolhe um filme bem legal, hein?
— Tá! Mas você vai assistir comigo mais tarde?
— Se eu conseguir sair da sorveteria, sim. Prometo tentar. E amanhã escola viu? Faltou hoje, mas amanhã não!
Ela me deu um beijo no rosto e saiu saltitante. Antes que Jaci saísse, eu a segurei suavemente pelo braço. Ela me olhou e os olhos dela diziam tudo o que a boca não conseguia.
— Vai passar — disse, firme, mas com carinho. — A gente aguenta.
Ela me abraçou com força. Não disse nada. Mas a forma como me apertou dizia mais do que mil palavras.
— Vai ficar tudo bem — repeti, beijando a testa dela e depois me afastando.
Entrei no carro, e no instante em que girei a chave, o celular vibrou no painel. Uma notificação apareceu. Era uma mensagem do Flávio, acompanhada de um emoji fofo com olhos brilhantes e um sorriso bobo:
"Tava pensando em você. Bora almoçar? Quero te ver."
Sorri, cansado mas leve.
Respondi:
"Queria muito, mas preciso ficar na sorveteria. Tô passando tempo demais fora. Tá complicado."
A resposta dele veio rápida:
"Então vou levar o almoço aí pra você. E você vai ter que me aturar mesmo assim."
"Com sobremesa."
Soltei uma risadinha enquanto guardava o celular. Flávio tinha esse jeito de entrar nas minhas brechas. E eu nem queria fechar nenhuma delas.
"Fechado. Só não esquece da sobremesa."
Enquanto o carro se afastava da casa, senti uma pontada no peito. Não era dor. Era esperança.
Dirigi até a sorveteria com um misto de cansaço e necessidade de distração. Aquilo ali era o meu chão — minha rotina, meu pequeno refúgio. Quando cheguei, estacionei no cantinho de sempre e entrei, me sentindo um pouco mais no controle.
Assim que abri a porta, dei de cara com Wellington no balcão, sorrindo como se o mundo fosse feito de arco-íris de sorvete.
— Boa chefe! — ele disse, com aquela animação que quase me dava inveja.
— Bom dia, Wel. Tudo certo por aqui?
— Tirando o furacão de chocolate que passou por Camila, tudo ótimo.
— Como assim?
Antes mesmo de ele responder, ouvi um “argh” vindo do fundo, seguido de uma gargalhada abafada. Fui olhar por cima do balcão e vi Camila tentando limpar o avental, com uma camiseta toda manchada de sorvete.
— Uma criança tropeçou com um copinho cheio de calda e acertou Camila em cheio — explicou Wellington, se segurando pra não rir.
— Estou sentindo o cheiro de chocolate até no meu cérebro! — gritou Camila lá de trás, e eu não consegui evitar a risada.
— Eu vou fingir que é estratégia de marketing — brinquei.
— Marketing agressivo, então — rebateu ela, mostrando o dedo do meio com um sorriso.
Fui até o fundo da sorveteria e comecei a ajeitar umas coisas. Ainda sentia um certo peso no peito, mas o cheiro de waffle, os ruídos da máquina, o movimento da rua do outro lado da janela — tudo isso ia, pouco a pouco, me ancorando de novo.
O sininho da porta tocou.
Me virei na hora. Era ele.
Flávio entrou com uma sacola de papel e um sorriso preguiçoso que fazia tudo ao redor parecer mais leve. Tava lindo, como sempre, mesmo com o cabelo um pouco bagunçado e aquele jeito de quem nem tenta, mas conquista.
— Entrega especial pro sorveteiro mais ocupado da cidade — disse, vindo até mim.
— Não sou ocupado, sou responsável — rebati, sorrindo.
— Responsável demais. Por isso vim te alimentar.
Levei ele até o fundo, onde tinha uma mesinha perto da janela. A luz da manhã entrava suave por ali, deixando tudo mais bonito do que era. Ele tirou os potinhos da sacola com todo o cuidado do mundo.
— Arroz com lentilha, frango grelhado com ervas e… torta de limão de sobremesa. Mas só se você merecer.
— Eu sempre mereço. — Sorri de lado, fingindo confiança.
— Veremos.
A gente sentou, e ele começou a falar sobre o hospital, os plantões, um paciente que achava que tava grávido (mesmo sendo homem) e eu ria. Era bom rir. Era bom esquecer um pouco.
Eu ficava olhando pra ele, tentando disfarçar. Mas Flávio me conhecia. Ele notava.
— Tá me encarando por quê?
— Me perguntando como você ainda não enjoou de mim.
— Acho que é porque você ainda não percebeu o quanto eu gosto de estar aqui.
Aquele tipo de frase que parece simples, mas entra como abraço em dia frio. Sorri, meio sem graça. Fiquei quieto por uns segundos, mexendo na comida, tentando controlar o sorriso idiota que brotava. E aí ele manda outra:
— Você fica bonito quando fica sem jeito, sabia?
Quase engasguei. Flávio ria. Eu fingia indignação. No fundo, tudo que eu queria era que aquele momento durasse.
A torta de limão veio. E ele me deu a primeira colherada, como se fosse a coisa mais normal do mundo. E talvez fosse. Com ele, tudo parecia mais simples. Mais leve.
Talvez a vida ainda tivesse seus buracos, suas dores, seus fantasmas. Mas ali, no fundo da sorveteria, com o gosto doce do limão na boca e aquele olhar calmo do Flávio sobre mim, era fácil esquecer tudo e só… sentir.
Flávio estava terminando a última colherada da torta de limão quando olhou discretamente o relógio. Notei aquele leve franzir de testa dele e já sabia que alguma coisa tinha surgido.
— Acho que vou ter que ir, Pedro — ele disse, passando a mão pelos cabelos, já meio inquieto.
— Aconteceu alguma coisa?
— Meu funcionário faltou hoje e minha loja de suplementos tá fechada desde cedo. Eu achei que ia dar tempo, mas... — Ele deu de ombros com um sorriso culpado. — Já tô vendo as mensagens dos clientes reclamando.
— Caramba. Vai lá, Flávio. Obrigado mesmo por ter vindo até aqui, de verdade.
Ele levantou e me deu um beijo leve na bochecha, um toque rápido de carinho que me deixou meio tonto por dentro. Sorriu de canto, com aquela calma que ele sempre carrega, e disse:
— Se cuida, viu? E qualquer coisa, me chama.
— Pode deixar.
Fiquei vendo ele sair pela porta da frente e senti aquele vazio esquisito que às vezes bate quando a pessoa certa vai embora. Suspirei e voltei pro balcão, onde Wellington já estava dando risada de algum meme no celular.
— Flávio é um fofo, hein — comentou ele, sem tirar os olhos da tela.
— Demais — murmurei, sorrindo por dentro.
Peguei meu celular e vi que tinha uma nova mensagem. Era do Felipe. Na hora meu corpo enrijeceu. Abri o chat e li devagar, cada palavra caindo pesada como pedra:
Felipe:Pedro, mudei os planos. Já tô saindo da cidade. Não deu pra avisar antes. Fica de olho no Mateus. Ele pode estar mais envolvido do que parece.
Meu estômago virou.
Li de novo. “Fica de olho no Mateus.” Era uma frase curta, mas cheia de veneno. Cheia de dúvidas.
Levantei os olhos, tentando esconder a tensão que começava a se formar nos meus ombros. Wellington continuava distraído, Camila já voltava do fundo limpando as mãos, e tudo parecia normal. Mas dentro de mim, algo tinha mudado.
Fechei o celular, respirei fundo e voltei pro balcão.
Mas agora, com um alerta ecoando dentro de mim: “Fica de olho no Mateus.”
E era isso que eu fariaJá passava das nove e meia da noite. A cidade começava a silenciar lá fora, mas aqui dentro da sorveteria, o som da geladeira de sorvetes e o estalo de plástico das embalagens me lembravam que eu ainda estava ali, firme, lavando as últimas tigelinhas, limpando os balcões, fechando o caixa. Eu já tinha perdido a noção do tempo. Só percebi que estava tarde quando meu celular vibrou e vi a mensagem da Clara: “Vai demorar? Já peguei o cobertor e a pipoca!”
Meu peito apertou.
Peguei o celular e disquei o número dela, apoiando o cotovelo no balcão, sentindo um cansaço que não era só físico.
— Alô? — a vozinha dela atendeu animada.
— Oi, meu amor... — falei, já com o tom mais suave que consegui.
— Você tá vindo? O filme já vai começar!
Engoli seco, me odiando um pouco.
— Então... não vou conseguir hoje, Clara. Tô fechando a sorveteria agora, mas ainda tem coisa pra resolver aqui. Me perdoa?
Do outro lado da linha, silêncio. E então:
— Tá bom... — ela respondeu baixinho, decepcionada. — Mas amanhã você vê comigo?
— Amanhã é só nosso, prometo. A gente escolhe até dois filmes se você quiser.
Ela deu uma risadinha curta, e se despediu com um “Boa noite, Pedro” que me fez querer estar com ela mais do que qualquer coisa. Desliguei e fiquei ali parado, com o celular na mão, sentindo aquele incômodo no peito de quem tenta ser tudo ao mesmo tempo — protetor, trabalhador, filho, vingador... e ainda manter o coração inteiro no meio disso tudo.
Fechei a porta da frente com a chave, virei a tranca, e encostei a testa na madeira fria. Respirei fundo, deixando o corpo pesar um pouco. Era nesses momentos que a solidão batia mais forte — quando tudo silenciava, quando ninguém estava olhando, quando a cidade dormia e eu ainda estava lutando.
Mas então, do nada, senti.
Um corpo colado no meu por trás, quente, firme, a respiração encostando de leve no meu pescoço.
Meu coração disparou na hora, e girei o corpo num susto.
Arthur.
Ele estava ali, sorrindo com aquele maldito charme debochado, os olhos cheios de provocação, os músculos visíveis pela camiseta apertada.
— Que saudade desse perfume — ele disse, como se tivesse todo o direito do mundo de estar ali, invadindo minha noite, meu espaço, meu fôlego.
— Arthur... que susto. O que você tá fazendo aqui a essa hora?
Ele deu de ombros.
— Tava passando e vi que a luz ainda tava acesa. Achei que podia te chamar pra dar uma volta no parque. Tá um clima bom lá fora.
— Eu... acho que hoje não — respondi, tentando manter o tom leve, mas firme. — O dia foi puxado, tô bem cansado.
Ele cruzou os braços, ainda com aquele sorrisinho.
— O meu também foi, sabia? E mesmo assim, tô aqui. Queria conversar com você. Só isso.
Havia algo no jeito que ele disse aquilo — uma mistura de insistência com fragilidade escondida — que me desarmou por uns segundos. Mesmo assim, balancei a cabeça.
— Arthur, não sei se hoje é o melhor momento. Não quero ser grosso, mas...
— É só uma volta rápida no parque, Pedro — disse, com um sorriso leve, quase gentil. — Prometo que não te canso muito.
Olhei pra ele por um segundo, depois olhei pro céu escuro. A cidade estava calma, Clara já devia estar dormindo, e talvez... talvez um pouco de ar fresco não me fizesse mal.
— Tá bom — respondi. — Só uma volta rápida! E você vai me levar em casa! O meu carro vai ficar aqui mesmo na sorveteria!
Ele sorriu mais abertamente, como se estivesse esperando aquilo desde sempre. Entramos no carro dele, que estava estacionado a poucos metros da sorveteria, e em menos de dez minutos já estávamos caminhando sob as luzes amareladas do parque.
Nos sentamos num dos bancos de madeira, um pouco afastados das trilhas principais. O cheiro das árvores molhadas e o som distante de grilos me trouxeram uma nostalgia estranha. Um tipo de calma que eu não sentia fazia tempo.
Arthur ficou em silêncio por alguns segundos antes de dizer:
— Sabe... eu tava com saudade de conversar com você.
Olhei pra frente, observando um casal correndo devagar ao longe.
— Tem sido uma correria danada — respondi. — A sorveteria, Clara, minha mãe... tem dia que parece que o tempo simplesmente evapora.
— Eu imagino — ele disse. — Lá na delegacia também não tá fácil. Essa semana foi um caos.
— Aconteceu algo sério?
Arthur fez uma expressão tensa e se inclinou um pouco pra frente.
— Teve um incêndio num galpão antigo na entrada da cidade. Aqueles que ninguém mais usava, sabe?
Meu coração parou por meio segundo. Senti um frio subir pela espinha.
— Incêndio? — tentei manter o tom casual, mas até eu ouvi a leve tremedeira na voz.
— É. Pegou fogo em tudo. O lugar ficou destruído. Chamaram a polícia científica, porque acharam umas coisas estranhas.
Engoli seco.
— Que tipo de coisas?
Arthur olhou pra mim, os olhos apertando levemente.
— Marcas de sangue. Várias. Mas nenhum corpo. Nada. Nenhuma identificação.
Meus dedos se fecharam no banco, com força. O corpo inteiro pareceu congelar por dentro.
Não é possível, pensei. Thales estava amarrado. Eu vi. As chamas... ele não podia ter saído dali. Não podia.
Mas e se...?
Não. Não.
Comecei a perder o foco da visão, as luzes do parque virando borrões amarelos enquanto minha mente corria por caminhos que eu tinha jurado não revisitar. Marcas de sangue. Nenhum corpo. Nenhum corpo.
E se ele não morreu? E se ele fugiu?
Meu estômago virou.
Arthur me olhava com o cenho franzido.
— Tá tudo bem, Pedro?
Me forcei a respirar fundo, disfarçando.
—Tá. É só... muita coisa pra pensar ultimamente.
Arthur pareceu perceber meu desconforto, mas decidiu não pressionar. Se encostou no banco, esticando as pernas.
— Quer saber? Melhor mudar de assunto. Eu só queria me distrair hoje. Já tem coisa demais pesando na cabeça.
Eu assenti, aliviado e ao mesmo tempo aterrorizado por dentro.
— Concordo. Melhor mesmo.
— Então me diz — ele virou o rosto pra mim com aquele sorriso provocador que parecia ter guardado desde os tempos da escola — você quer me chupar novamente?
Soltei uma risadinha curta, tentando esconder o caos dentro de mim.
— Meu Deus Arthur, que pergunta é essa ? - Falei rindo!
— Oxe! Você parecia ter gostado daquela vez!
— Quem sabe outro dia! - Ele suspirou e encarou o chão!
O silêncio que seguiu foi estranho. Arthur parecia prestes a dizer algo mais. Mas eu... eu já não conseguia mais prestar atenção em nada. O cheiro da fumaça voltou à minha memória, o calor, o estalo da madeira queimando.
E o grito que eu nunca ouvi.
E se ele tiver saído dali? E se ele estiver por aí?
O parque podia até estar calmo. Mas dentro de mim, o inferno estava só começando de novo.
Continua...