Amor Sob Regime Fechado. Cap.9

Um conto erótico de Alex Lima Silva
Categoria: Gay
Contém 2210 palavras
Data: 01/05/2025 19:04:26

Acordei com o barulho de um choro engasgado. Demorei pra entender se vinha de mim ou de fora. O colchão fino ainda cheirava a suor e desespero. A cadeia tinha aquele cheiro de coisa parada, de medo encardido nas paredes, e o que tinha acontecido nos últimos dias não ajudava nada.

As mortes... ainda estavam ali, nos cantos dos olhos, nos gritos que não paravam de ecoar dentro da cabeça. Gente que a gente viu respirando um dia e no outro tava ali, estendido no chão frio, com os olhos duros. Eu não queria pensar, mas meu corpo tremia sozinho, feito tivesse vida própria. E o pior de tudo era que... eu não queria falar com ninguém. Só queria sumir.

Bola tava deitado do meu lado, e me puxou devagar pro peito dele. Senti o calor da pele dele, o ritmo do coração. Ele era grande, forte, mas tinha um jeito de pegar em mim que parecia de alguém tentando segurar um passarinho machucado.

— Calma... respira comigo — ele sussurrou, o rosto colado no meu cabelo. — A gente vai sair dessa.

Eu me permiti fechar os olhos. Só por um momento. A cabeça encostada no ombro dele. Era a única coisa que me impedia de desabar.

— Não consigo, Bola... eu não consigo esquecer — falei, com a voz quebrada. — Aquele grito... o barulho...

Ele não respondeu logo. Ficou me fazendo carinho nas costas, como se fosse me embalar no meio do caos. E era caos. A gente tinha que fazer as necessidades num balde, no canto da cela. O mesmo balde que depois ficava ali, até algum guarda resolver dar o favor de esvaziar. A comida era uma gororoba nojenta e ainda assim, todo mundo se matava por ela. E agora, depois da última briga... depois da última morte... o medo parecia ter grudado na gente.

— Quer que eu te conte uma parada? — ele perguntou, a voz baixa, como se fosse segredo.

— O quê?

— Uma história. Da minha vida. Uma boa. Uma daquelas que a gente guarda num cantinho da alma quando tudo tá ruim.

Eu assenti, mesmo sem forças.

— Quando eu era pivete... uns oito, nove anos... eu ganhei minha primeira chuteira. Nunca esqueci. Era vermelha, com detalhe branco, tipo aquelas de jogador de televisão. Tinha até as travas, tá ligado? — ele deu uma risadinha, meio nostálgica. — Foi meu tio quem me deu. Ele não tinha muita grana também, mas fez um corre, trabalhou dobrado numa obra e comprou pra mim no aniversário.

Senti o tom da voz dele mudar. Tinha brilho ali. Luz mesmo no meio da cela escura.

— Eu nunca tinha ganhado um presente daquele jeito. Meus pais não tinham como, né? A gente era bem pobre. Eu ajudava minha mãe catando latinha. Lembro que tinha dia que nem dava tempo de brincar. Ia com meu carrinho de mão, passava nas lixeiras do bairro, às vezes uns tiozão davam moeda, às vezes xingavam.

Ele respirou fundo, como se estivesse se vendo de novo ali, menorzinho, puxando aquele carrinho enferrujado.

— Mas naquele dia... com a chuteira nova no pé... mano, foi a primeira vez que eu me senti importante. Fui pro campinho da cidade todo empolgado. Meus amigos ficaram malucos! Ficavam pedindo pra pegar na chuteira, perguntando onde eu arrumei. Tava me sentindo o Ronaldinho.

Eu ri, mesmo que de leve. A imagem dele pequeno, todo orgulhoso da chuteira, conseguiu me arrancar um sorriso tímido.

— E jogou bem?

— Joguei nada! — ele respondeu, rindo alto agora. — Caí no chão umas quatro vezes, a chuteira era maior que meu pé! Mas eu não ligava. Nem doía. Aquilo ali era meu momento. Era o meu mundo. Pela primeira vez, eu não era o menino das latinhas, o moleque que pedia comida na feira... eu era só o Bola, o menino da chuteira vermelha.

Ficamos em silêncio depois disso. Ele ainda me abraçava. O corpo dele era um escudo entre mim e tudo lá fora. E por um segundo, eu também me permiti guardar aquela história no peito.

— Obrigado por me contar isso — falei, com a voz baixa.

— Quando tudo parecer perdido, lembra que a gente ainda tem as nossas chuteiras vermelhas por aí. Só tem que encontrar elas de novo.

Fechei os olhos, encostado no peito dele. O som do mundo ainda era feio, duro, cruel. Mas ali, naquele abraço e naquela lembrança, tinha uma pontinha de luz. Um fio de esperançaO silêncio na cadeia era sempre estranho. Parecia uma armadilha. Como se o prédio inteiro respirasse junto, esperando algo acontecer. Mas naquela noite, depois do dia tenso, a quietude veio como um alívio — e também como um peso.

Eu tava sentado na beira do colchão, cabeça baixa, ainda tentando organizar tudo o que sentia. O medo, a saudade do mundo lá fora, a dor que não cabia no peito.

Bola se aproximou devagar. Ele sempre fazia isso. Como se não quisesse me assustar, como se já soubesse que meu corpo vivia em alerta constante.

— Tá melhor? — ele perguntou, sentando ao meu lado.

Assenti com a cabeça, sem ter certeza.

Ele tocou meu rosto com uma das mãos. A palma áspera, calejada, contrastava com a delicadeza do gesto. A mão grande segurando meu queixo, me fazendo encarar aqueles olhos que sempre tinham firmeza, mesmo quando tudo parecia desmoronar.

— Posso? — ele perguntou.

Não precisei responder. Só fechei os olhos. E ele me beijou.

Foi um beijo quente, intenso, mas ao mesmo tempo calmo. Como se ele estivesse tentando me reconstruir, pedaço por pedaço. O gosto da boca dele era o único sabor bom que eu sentia há dias. Me perdi ali, me deixei ir.

As luzes da prisão se apagaram com aquele estalo seco. Horário de dormir.

Mas ninguém dormia naquele momento.

A penumbra envolveu tudo. Só a lua, de fora, entrava em fragmentos pelas grades. E foi sob essa luz tênue que Bola deitou ao meu lado e me puxou pra ele. O colchão pequeno, o mundo inteiro apertado ao nosso redor, mas nada disso importava.

Nossos corpos se encontraram com uma mistura de urgência e carinho. As mãos dele sabiam exatamente onde tocar — às vezes firme, às vezes com uma delicadeza que me desmontava. Cada toque era uma promessa silenciosa: “Você não tá sozinho”.

Não houve pressa, nem vergonha, nem medo. Só a vontade de se sentir humano outra vez. De se lembrar que, mesmo naquele lugar, ainda éramos feitos de carne, de desejo, de amor — mesmo que ninguém chamasse assim.

Fomos descobrindo juntos, no escuro, os limites e as vontades. Os suspiros eram baixos, mas verdadeiros. E quando tudo se acalmou, quando nossos corpos enfim descansaram um no outro, com o suor ainda fresco na pele e o coração batendo forte no peito, ele passou a mão nos meus cabelos e disse, baixinho:

— Nunca foi só amizade, Pietro. Nunca foi.

Encostei minha testa na dele e sorri. Pela primeira vez em muito tempo, eu me senti vivo.

E, ali, naquele buraco escuro do mundo, era tudo o que eu precisavaO sol da manhã batia seco no pátio da cadeia. Era aquele calor duro, sem vento, que fazia o concreto parecer que ia derreter sob nossos pés. Bola e eu estávamos treinando juntos, como sempre. Uns abdominais, umas flexões, e um pouco de corrida em volta do pátio — dentro dos limites permitidos, claro.

Ele mantinha o ritmo enquanto falava, como se o esforço físico não afetasse em nada aquele vozeirão dele.

— E aquele café da manhã, hein? — resmungou, bufando. — Se aquilo ali era mingau, eu sou o Papa.

— Aquilo era cimento, Bola — respondi, rindo. — Sério, eu mastiguei um pedaço e achei que tava comendo parede.

— E o pão?

— Borracha.

— Borracha velha.

Rimos, mas era riso de quem já se acostumou a sobreviver de piada. O cheiro da cela, a comida podre, o barulho das grades... A gente fazia o que dava pra manter a cabeça no lugar.

Depois do treino, pedi licença e fui pro banheiro. Lá dentro, com as paredes imundas e aquele fedor insuportável, tentei me concentrar em lavar o rosto. A água fria caiu na minha pele e por um instante, pensei que tudo podia voltar ao normal — ou algo parecido com isso.

Mas aí a porta se abriu.

Vi o vulto entrando e, no segundo seguinte, a voz. Seca. Reconhecível. João.

— E aí, Pietro — ele disse, como quem chega pra conversar sobre o tempo.

Meu corpo travou. As mãos tremendo. O peito disparado. Senti o suor escorrendo não pelo calor, mas pelo medo puro, aquele que se instala e te faz esquecer até como se respira direito.

— Tá com medo de mim, é? — ele perguntou, encostando no azulejo sujo da parede, os braços cruzados.

Me virei devagar, tentando disfarçar, mas ele viu. Claro que viu.

— Tô, sim — respondi, quase num sussurro. — E tenho motivo. Eu não quero morrer.

Ele sorriu. Aquele sorriso debochado, como se tudo fosse um joguinho. Se aproximou e deu um tapinha leve no meu rosto, como quem acaricia... mas era provocação pura.

— Então anda na linha, que nada acontece contigo — falou, virando de lado como se fosse sair.

— Você... você sorteou celas, João! Matou gente que não fez nada com você! — minha voz saiu firme dessa vez. Tava tremendo ainda, mas falei. Porque engolir aquilo tava me deixando doente por dentro.

Ele parou na porta, virou de leve o rosto e disse:

— Ninguém ali foi sorteado. Tudo foi de caso pensado.

Fiquei parado, com as palavras dele martelando na minha cabeça. A água ainda escorrendo da pia, o barulho lá fora do pátio, os ecos da vida continuando... mas dentro de mim, parecia que tudo tinha congelado.

Ele sabia exatamente o que tava fazendo. E agora... sabia que eu sabia também.

Voltei pro pátio com o estômago embrulhado e o olhar grudado no chão. Bola percebeu na hora.

— Que foi?

— João. No banheiro.

Ele não precisou de mais nada. Só assentiu com a cabeça, a mandíbula cerrada, os olhos buscando o dele, lá do outro lado.

— Fica perto de mim — ele disse. — Ele encostar de novo, vai se arrepender.

Só consegui assentir. Porque agora eu sabia: o jogo de João era frio e calculado!

Depois do almoço, sentei num canto do pátio com a barriga revirando. Aquele feijão ralo, o arroz duro e a carne que mais parecia sola de sapato — não dava pra chamar aquilo de comida. Só de lembrar, o gosto amargo ainda grudava na língua. Fiquei ali, olhando pro chão rachado, tentando controlar a ânsia, enquanto o sol escaldava minha cabeça e a esperança, essa sim, parecia sempre de jejum.

Bola veio vindo devagar. Ele sempre tinha aquele jeito de quem carrega o mundo nas costas, mas sem deixar cair. Sentou do meu lado, deu uma cuspida no chão e ficou um tempo em silêncio. Quando ele ficava quieto assim, geralmente vinha bomba.

— Pietro... — ele começou, me olhando de canto. — Escuta o que eu vou te dizer agora.

Virei o rosto pra ele, desconfiado. Não era o tom habitual. Tinha algo diferente ali, uma firmeza ansiosa, como se ele estivesse segurando uma notícia grande demais pra conter.

— O cara da sorveteria. Aquele grandão. Sabe quem é?

— Lembro de você ter falado algo sobre! — respondi, franzindo a testa. — Ele tem uma sorveteria ? Aí que saudades de um sorvete!

Ele deu uma risada baixa e me cutucou com o ombro.

— Ele vai tirar a gente daqui.

Fiquei olhando pra ele, tentando entender se era brincadeira ou loucura. Mas Bola não tava sorrindo agora. O olhar dele era sério, vibrante, quase elétrico.

— Como assim... tirar a gente daqui? Quem é esse cara?

— O nome dele é Pedro. O bicho tem grana, contatos, e mais que isso: ele tem motivo. Não posso te contar tudo ainda, mas ele me procurou. Disse que vai mexer os pauzinhos. Que tem um plano. E que é pra gente se preparar, porque quando chegar a hora, vai ser rápido.

Meu coração disparou. Meus olhos ficaram secos, parados, como se eu tivesse escutado alguma coisa impossível. Liberdade. Aquela palavra soou na minha mente com gosto de sonho antigo.

— Bola... você tá falando sério?

— Nunca falei tão sério na minha vida. Mas tem um detalhe.

— Claro que tem...

— Ele só ajuda quem tá limpo por dentro. Quem ainda não se perdeu de verdade. E eu garanti pra ele que você é dos bons. Que não importa o que tenha acontecido aqui dentro, tu ainda é do bem. E é por isso que você vai sair comigo.

Minha garganta apertou. Era esperança demais, depois de tanto tempo respirando medo. Mas ver aquele homem, calejado pela vida e pela cela, dizendo isso com tanta certeza... me abalou.

— O que eu preciso fazer?

— Aguenta firme. Não provoca ninguém, não responde João, não arruma confusão. E quando a hora chegar, confia em mim.

Assenti. Nem conseguia dizer nada. Só olhei pra ele, querendo acreditar com todas as forças.

Naquela tarde, o pátio continuou quente, o cheiro da comida ruim ainda flutuava no ar, os gritos ao fundo ecoavam como sempre... mas dentro de mim, uma fresta se abriu. Como uma rachadura na parede cinza, por onde passava um fiozinho de luz.

E pela primeira vez em muito tempo, eu senti: talvez exista mesmo um lado de fora esperando por mim. E talvez, com Bola do meu lado, eu ainda consiga chegar lá.

Continua...

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