20- Um passeio por minhas lembranças

Um conto erótico de Lauro Costa
Categoria: Gay
Contém 1873 palavras
Data: 20/04/2025 00:54:45
Assuntos: Gay

O relógio da recepção marca 10h07. A terapeuta está atrasada — ou talvez eu tenha chegado cedo demais, ansioso sem querer admitir. Apoio o cotovelo no braço da cadeira estofada, tamborilo os dedos contra a mandíbula e observo as revistas da mesa de centro.Saúde Emocional e um editorial sobre burnout.

— Esse lugar tem cheiro de flor morta.

Viro a cabeça, surpreso com a frase. Um rapaz sentado duas cadeiras ao lado, olha para o teto como se esperasse resposta das lâmpadas fluorescentes.

— Que tipo de flor? — pergunto, entrando no jogo.

Ele dá de ombros. — Sei lá. Uma daquelas brancas, pequenas, que a gente coloca em velório. Acho que chama... gipsófila.

— Você sabe o nome?

— Eu li num livro. Minha mãe gostava de flores. Antes... de tudo.

Fico em silêncio por um momento, observando a forma como ele dobra as pontas do moletom com os dedos, como se segurasse uma lembrança frágil.

— O que aconteceu com ela?

— Foi atropelada. Quando eu era mais novo. Tá em coma até hoje.

A voz dele é firme demais pra idade. E isso me desmonta por dentro.

— E você vem aqui por causa disso?

Ele hesita. — Acho que sim. A escola ligou pro meu tio. Disseram que eu tava... estranho.

— E você tá?

Ele dá um meio sorriso, sem graça. — Eu não sinto a falta dela. Não como as pessoas esperam. Faz tanto tempo que ela já não fala, não anda, não me abraça... Eu não lembro da última vez que ela me chamou de filho. E isso me deixa mal. Como se eu fosse ruim.

— Alexandre... — falo seu nome baixo, e ele se vira com uma surpresa leve no rosto, como se eu tivesse acertado sem querer.

— Como você sabe meu nome?

— Você tem cara de Alexandre. Inteligente, irônico, sensível.

Ele sorri pela primeira vez.

— Eu perdi minha mãe quando eu era bem mais novo que você . E eu também não sabia o que sentir. Eu só... fingia que tava tudo bem. Ou que não era comigo.

— E agora? Você sente falta?

— Todo dia. Mas de um jeito que já não dói tanto. É como um som de fundo. Uma saudade que virou parte do meu silêncio.

Alexandre assente devagar, como quem anota algo no coração. A porta se abre e a psicóloga dele o chama.

— Tchau, Moço.

— Leônidas, esse é meu nome. Se Cuida Rapaz.

Ele se afasta, e eu o observo com um aperto discreto no peito.

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SEDE DA FAMA, SÃO PAULO, FINAL DA MANHÃ

As portas do elevador se abrem com um estalo metálico. Luiza sai na frente, impecável como sempre, o blazer estruturado e os olhos brilhando com prazer disfarçado. Caminho atrás dela, mais calmo do que deveria. Uma parte de mim ainda não se acostumou com o chão sob os pés.

— Vai ser bom pra você voltar a ter uma rotina, Leo — diz ela, sem olhar pra trás. — E, claro, estar no lugar onde tudo começou.

Reconheço o saguão da Fama antes mesmo de vê-lo todo. É como entrar numa versão paralela do passado. O logo dourado na parede, as plantas artificiais nas mesmas posições, as vozes abafadas de reuniões e telefonemas. Mas algo mudou. Eu mudei.

Luiza para ao lado de um homem de estatura média, barba feita e cabelo bem alinhado. Luiz. Lembro vagamente dele de antes... sempre na sombra, sempre pedindo validação.

— Luiz — Luiza sorri —, esse é o Leônidas. A partir de hoje ele vai estagiar com você.

— Estagiar? — repito, sem entender de imediato.

— É. Ele vai aprender tudo de novo, passo a passo. E ninguém melhor que você pra guiar nosso novo talento, não é?

Luiz sorri, mas o sorriso dele não chega aos olhos. Ele estende a mão de forma firme demais, como se quisesse me lembrar de quem tem o controle agora.

— Vai ser um prazer, Leônidas. Vamos começar com o básico, tá? Não precisa se preocupar, vou pegar leve. Afinal, todo mundo tem que recomeçar de algum ponto.

— Claro — respondo, apertando sua mão com delicadeza. — Estou aqui pra isso mesmo. Aprender de novo.

— Ótimo. Você vai se sentar na baia 23. Fica entre os estagiários de redes sociais e de contratos. Tem um computador e um crachá temporário te esperando. Qualquer dúvida, me chama, tá?

— Obrigado, Luiz.

Luiza cruza os braços, observando a cena como quem assiste a uma peça divertida.

— Viu só? Um novo começo. Pra todos nós.

Ela se vira e sai, sem olhar pra trás. Luiz estala os dedos para uma recepcionista.

— Acompanha o Leo até o setor, por favor.

Fico parado um segundo. Respiro. Sinto o peso do crachá nas mãos, o peso do nome que carrego. E, mesmo assim, sorrio. Porque eu vim até aqui por algo maior que orgulho.

E eu sei que vai valer a pena.

Ao chegar à baia 23, o clima era este:

— A festa dos 40 anos da Fama na Casa Petra vai ser um luxo ? — cochichou uma voz atrás de mim.

— Casa Petra ? Porque não estou sabendo disso ? — falei

— Vai ter Cobertura ao vivo, tapete vermelho, tudo em grande estilo.

Fui me acomodar quando percebi rostos conhecidos e olhares curiosos. Um colega espiava por trás do monitor:

— Estagiário adoram babador de padrinho, né? — disse, rindo baixo.

Eu respirava fundo.

— Se fosse padrinho, eu saberia — falei com suavidade.

As risadinhas ecoaram, mas tudo ficou mais grave quando peguei o celular para ligar para Luiza.

— Lô, porque não falou da festa na Casa Petra? — perguntei doce. — Ocupadíssimo, Leo. — A voz dela veio fria. — Já te mando o convite.

Afundei no troco da baia. Antes que eu pudesse reagir, Luiz apareceu ao canto:

— Sr. Maia! Fique ao telefone sem autorização de novo e vai responder à diretoria. Volte ao seu serviço !

Balancei a cabeça.

— Desculpe, Luiz.

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RECEPÇÃO DA FAMA / CAFÉ PRÓXIMO — FINAL DE TARDE

Vejo Plínio Lopes, o delegado, no hall, o crachá balançando no peito. Ele me chama com aquele sorriso que mistura antiga cumplicidade e safadeza.

— Leônidas Maia! Como sempre um tesão?

— Delegado… — murmuro, já desconfiado.

- Podemos conversar particular ?

Saímos para o café da esquina. Num canto isolado, ele se inclina e solta, sem cerimônia:

— Você deve estar ainda mais gostoso do que naquela época… Ia adorar te levar à exaustão de tesão.

Sinto meu rosto ferver.

Delegado, assédio é crime. Considere-se denunciado — respondo, tentando manter a compostura.

Plínio dá de ombros, impassível:

— Você anda escondendo algo grande, Leo. Com certeza você sabe quem eu sou.

- NÃO SEI DO QUE ESTÁ FALANDO – falei um pouco mais alto que o normal

- Lembra do Fábio, meu irmão? Vocês dois diziam que estudavam… faziam muito mais do que estudar no quarto dele. Até hoje escuto os seus gemidos sentando na rola do meu irmão. Era uma delícia. Pena que você me esnobou...

Engulo em seco, as lembranças tilintando na mente: risadas abafadas, portas fechando, segredos trocados às pressas.

— Minha amnésia não é farsa !!!! Estou relembrando aos poucos. Por exemplo, já estou conseguindo lembrar da minha infância. — limito‑me a dizer.

— Pode ser... mas sei que esta escondeu algo... E VOU DESCOBRIR- falou ele um pouco mais alto.

- Tenho novidades delicia. Saiu o laudo do seu Bugatti : vestígios de explosivo foram encontrados e a perícia constatou que seus freios foram sabotados. Virou investigação criminal — tentativa de homicídio.

Meu mundo roda.

— Então alguém se esforçou muito para tentar me matar? — refleti sem pensar.

- O que será que você aprontou hein delicia, para deixar alguém com tanto ódio .

- A vítima sou eu. Não fiz nada.

- Sei... Qualquer coisa me ligue. Vou continuar investigando.- disse Plínio saindo.

- Espere Delegado... Tem algo que realmente estou escondendo...

- Eu sabia. Desembuche !!!

- Venho recebendo mensagem ameaçadoras por SMS de um número desconhecido.

— Agora me empresta o celular — ele estende a mão. — Vou rastrear aa mensagens que você anda recebendo.

Entrego o aparelho, trêmulo.

— Obrigado, Plínio.

Ele levanta-se, ajeitando o cinto:

— Me avisa quando chegar a próxima mensagem !!

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Ao voltar para a Fama uma confusão na portaria estava se formando.

As paredes de vidro deixam entrar a luz da tarde, mas há um ruído estranho vindo da entrada principal. Vozes elevadas. Uma mulher discutindo.

— Eu disse que tenho uma reunião marcada com Leônidas Maia ! Agora tirem essas mãos de mim, seus figurantes de filme B!

A voz é familiar. Estranhamente familiar. Acelero os passos, atravessando o corredor com o coração disparado.

— O que tá acontecendo aqui?

Dois seguranças de ternos escuros estão cercando uma mulher de cabelos vermelhos presos num coque bagunçado, com um sobretudo amassado, uma mala pequena e um olhar furioso. Ela parece saída de um aeroporto e direto para o campo de batalha.

— A senhorita está causando transtorno, senhor — diz um deles, o mais alto. — Temos ordens da senhorita Luiza para barrar qualquer pessoa que não esteja com nome na recepção.

— E desde quando a Luiza manda em quem eu recebo? — disparo, passando entre eles.

— Leo...? — a mulher me encara, surpresa, os olhos marejando. — Meu Deus... você tá mesmo aqui.

— Quem é você?

Ela leva a mão ao peito, como se eu tivesse acabado de cravar uma adaga.

— É sério isso? Eu vim de Londres. Cruzei um oceano, e você me pergunta quem sou?

— Olha... se for mais uma fã obcecada—

— Eu sou a porra da Márcia! Sua melhor amiga desde os 12 anos! Você me chamava de “Mozão”, Leônidas!

Engulo seco. Uma fisgada estranha atravessa minha cabeça. Uma palavra. Um apelido. Um riso abafado na varanda de algum quarto de adolescência.

Márcia.

— Libera ela. Agora. — Viro para os seguranças. Eles recuam, desconcertados. — E se a Luiza reclamar, manda ela vir reclamar direto comigo.

Seguro Márcia pelo braço, e a conduzo pelo corredor, e a levo até a sala de reuniões.Fecho a porta atrás de nós. Márcia caminha em círculos, analisando cada detalhe da decoração como se procurasse sinais do antigo Leo. Eu encosto na mesa e cruzo os braços.

— Então?

— Você não lembra mesmo de mim?

— Eu tô... com uns lapsos. Memórias borradas. A médica diz que é estresse pós-traumático. Amnésia seletiva. Algo assim.

— A Luiza contou isso?

— Ela disse que eu sofri um acidente. Que quase morri. E que tô tendo dificuldades pra lembrar certas coisas.

— Certas coisas... — Márcia morde o lábio. — Tipo que você e ela se odeiam? Que ela sempre te sabotou? Que você foi completamente apaixonado pelo Felipe?

Meu corpo enrijece.

— Ela disse que você era minha melhor amiga.

— Ela mentiu. Como sempre. Leô... — ela se aproxima, segura minhas mãos. — Você sempre foi intenso. Brilhante. E quebrado também. Mas você me amava. A gente se protegia. A gente fazia planos. Você escrevia cartas pra mim quando tava triste. E se apaixonou perdidamente pelo único cara que não devia.

— O Felipe...

— Exato. E ele... te traiu. Com a sua irmã.

A sala gira um pouco. Uma náusea sobe com a velocidade de uma lembrança não dita. Vejo flashes — deitado na cama com o peito aberto, chorando, gritando o nome de alguém. Vejo as costas de Felipe se afastando. A risada de Luiza num corredor escuro.

— Meu Deus...

Márcia abre a mochila e tira uma caixa de madeira.

— Isso tava escondido comigo desde que você saiu da mansão dos Sampaio.

Ela abre a tampa. Letras tremidas de um adolescente cheio de fúria e desejo me encaram.

— Leônidas... chegou a hora de lembrar quem você é.

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