A fantasia começou como uma conversa sussurrada na cama, entre risos e olhares cúmplices, naquelas noites em que o desejo transforma qualquer ideia absurda em possibilidade.
Foi dele, claro. Sempre começa com ele. Rafael tinha essa mania de jogar ideias no escuro, como quem não quer nada, mas com os olhos acesos de um menino prestes a cometer uma travessura. “E se você fosse outra?”, ele disse. “Uma mulher que eu encontro na rua, que eu pago pra ter. Que não é você. Que não tem história, nem rotina, nem nome de esposa. Só corpo. Só boca. Só noite.”
Na hora, eu ri. Achei absurdo. Mas não esqueci.
Os dias passaram e a ideia ficou ali, me rondando. Comecei a imaginar. O salto. A maquiagem carregada. Um nome novo. A sensação de ser olhada como carne. De pertencer a um jogo em que eu fingia não conhecer o homem que, à noite, dormia comigo.
Aceitei.
Combinamos tudo. Eu escolheria o nome. Ele não saberia nada sobre a “mulher” que eu seria. Nem o que ela topava. Nem como ela falava. Nada.
Na noite marcada, entrei no Uber como se entrasse em outra pele. Eu não era mais a esposa. Não era Mariana.
Era Camila.
E Camila não tinha marido. Camila tinha um preço.
O Uber chegou no horário combinado. Motorista com cara de boa gente, camisa social passada, rádio em volume baixo. Abri a porta com cuidado, segurando o vestido para não mostrar demais. Senti o olhar dele percorrendo minhas pernas. Camila gostou. Mariana teria se encolhido.
— Boa noite — eu disse, sorrindo com um exagero estudado.
— Boa noite — ele respondeu, tentando não encarar demais, mas falhando. — Você vai para…?
— Pode seguir o endereço. — Ajeitei o decote com um gesto lento. — Uma noitada de trabalho.
Ele riu, sem graça. Tentou puxar conversa.
— É… você trabalha com o quê?
Olhei pra ele pelo retrovisor e deixei o silêncio durar um pouco mais do que o confortável.
— Depende de quem pergunta.
Ele entendeu. Engoliu seco e não perguntou mais nada. O resto da corrida foi coberto por um silêncio tenso e carregado de olhares desviados. Camila olhava a rua, pensava na cena. Mariana, encolhida em algum canto dentro de mim, assistia em silêncio, nervosa, excitada. A cidade parecia outra vista de dentro daquela fantasia.
Quando ele parou na esquina combinada, eu desci sem me despedir. Saltei na calçada como se fosse parte da paisagem — como se sempre tivesse estado ali. As luzes dos postes estouravam em volta, e os faróis dos carros me lambiam os joelhos com sua luz indecente. Eu estava tremendo, mas ninguém notava. Porque Camila não treme. Camila espera.
Encostei no poste, pernas cruzadas, cigarro aceso só por efeito de cena. Nunca fumei, mas precisava ocupar as mãos. Olhava os carros passando, os olhares que vinham e iam. Um deles era o dele. E eu sabia que em algum momento, ele viria. Meu marido. Mas não Rafael. Não para Camila.
Levei quase vinte minutos ali. Tempo suficiente para começar a duvidar. Para me perguntar se era loucura demais, se eu devia ir embora, se a Mariana não deveria voltar a tempo. E então ele apareceu.
O carro passou devagar. Os vidros escuros abaixaram. Eu vi o rosto dele, sério. Olhos que me desejavam como se nunca tivessem me visto antes. E talvez, de algum modo, não tivessem mesmo.
— Quanto? — ele perguntou, sem rodeios.
Minha boca secou. Mas Camila respondeu.
— Depende do serviço. No carro, sem beijo, sem sentimentalismo. Você paga pelo corpo, não pela mulher.
Ele assentiu. Abriu a porta. Eu entrei.
Sentei sem olhar pra ele. As luzes da rua riscavam o vidro, como se marcassem o tempo. O silêncio queimava. Até que ele falou, a voz baixa, rouca, completamente fora da zona de conforto do marido que eu conhecia.
— Quero você como coisa. Hoje, você é minha. Entendeu?
Eu respirei fundo. E disse:
— Hoje, sou o que você pagar pra eu ser.
O carro andou mais algumas quadras. Ele encostou num lugar escuro. A rua parecia fora do tempo. E ali, naquele banco traseiro, meu corpo virou outro. Meus limites também. Ele me usou sem piedade. Me colocou em posições que jamais tínhamos tentado. Me mandou calar. Me segurou com força. Me bateu leve, mas com firmeza. Me chamou de nomes que nunca ousara dizer na cama de casa.
E eu deixei. Mais do que isso. Eu gozei.
Quando terminou, ele me deu uma nota alta e abriu a porta sem me olhar. Como se eu fosse mesmo uma estranha. Camila desceu do carro sentindo as pernas moles, a calcinha molhada, a alma em suspenso.
Voltei para o ponto inicial. O mesmo poste. O mesmo cigarro apagado.
Peguei o celular e chamei o Uber. O aplicativo rodou. Cancelaram. Tentei de novo. Outro cancelamento. Uma brisa fria soprou, me arrepiando sob o vestido curto.
Foi aí que um carro parou ao meu lado. Um homem de cabelo raspado, barba por fazer. Rosto de quem não pergunta muito.
— Quanto pelo boquete?
Minha garganta apertou. Mariana queria dizer "não estou disponível", mas Camila saiu na frente.
— Duzentos.
Achei que o preço afastaria. Ele abriu a porta.
— Entra.
E eu entrei.
O carro cheirava a cigarro e desinfetante barato. O homem não disse nada depois que entrei. Apenas apontou para o colo dele, como se a transação não exigisse conversa. Camila se inclinou. Os joelhos no banco, a boca trabalhando como se soubesse exatamente o que estava fazendo — e sabia. Porque naquele momento, ela não era mulher. Era função. Era boca.
Ele gozou rápido. Disse um “porra” rouco, me deu os duzentos dobrados e saiu sem olhar. Eu limpei a boca com um lenço que peguei da bolsa. Desci do carro com as pernas firmes. Mas por dentro, algo tremia.
E era bom.
Voltei para a calçada. Meus dedos estavam trêmulos quando chamei o Uber de novo. Queria ir embora. Não só do lugar, mas da personagem. Voltar pra cama quente, pro corpo conhecido. Mas a noite parecia não ter fim.
Um homem se aproximou a pé. Tênis gasto, jaqueta puída. Devia ter uns trinta e poucos anos. Me olhou como quem já sabia.
— Eu ouvi você falando o preço. Dois contos pelo boquete, né?
— Era outro cliente. Já encerrei a noite — falei, tentando manter o tom firme.
Ele chegou mais perto.
— Mas ainda tá aqui. Tô com o dinheiro na mão. Não vai me enrolar, vai?
Eu podia ter dito não. Mariana teria dito. Mas Camila apenas olhou para ele, olhou para a rua vazia, e assentiu.
— Só um. Rápido.
Ele me levou até o fim de um beco mal iluminado. O cheiro de urina e lixo quase me fez recuar. Quase.
Encostei de joelhos no chão. Ele abriu o zíper. Me segurou pela nuca. Foi mais bruto, mais sujo, mais rápido. E eu fui. Até o fim. Engoli. Cuspi. Não lembro. Só sei que, quando ele terminou, eu ri.
Não dele. De mim. Do que eu estava me tornando.
O beco ficou em silêncio depois. O homem sumiu na noite como se nunca tivesse existido. Eu voltei para a calçada, com a maquiagem borrada, os joelhos sujos, e o gosto do outro ainda na garganta.
Pedi o Uber mais uma vez.
Desta vez, foi aceito de imediato.
Quando o carro chegou, quase ri em voz alta. Era ele. O mesmo motorista da ida. O mesmo que tentou conversar e desviou os olhos.
Dessa vez, ele não disfarçou. Me olhou dos pés à cabeça. Viu a boca borrada. As marcas no pescoço. As pernas. E não tentou esconder o que pensava.
— Parece que a noite foi longa.
— E não acabou — eu disse.
O silêncio durou uns bons minutos, até ele arriscar:
— Olha… posso te fazer uma proposta? Eu cancelo a corrida e te levo pra onde quiser, sem cobrar. Mas… em troca, você faz comigo o que fez com os outros.
Eu olhei pra ele por dois segundos longos. Mariana gritava dentro de mim, dizendo que bastava, que era loucura, que já tínhamos ido longe demais.
Mas Camila estava exausta. E excitada. E viva.
— Para o carro em algum lugar escuro.
Ele parou numa rua lateral. Nem precisou pedir. Me ajoelhei no banco do passageiro mesmo. Ele gemeu. Tentou gravar. Tirei o celular da mão dele com um tapa. Ele gozou pouco depois.
Só então, enquanto ele dirigia até minha casa em silêncio absoluto, eu senti a fadiga chegar. A culpa? Ainda não. Só o cansaço.
Quando cheguei, tirei os saltos antes de subir. Abri a porta com cuidado. A casa estava em silêncio. Luzes apagadas, exceto por um abajur na sala.
Rafael estava sentado no sofá. Olhos fixos em mim. Não disse nada. Só olhou.
Eu não sabia o que dizer. E talvez não quisesse explicar. Porque explicar significava assumir. E eu ainda não sabia se aquilo tinha sido traição, libertação, ou apenas a revelação de quem eu sempre fui.
Ele se levantou devagar. Caminhou até mim. Olhou meu rosto borrado, minha roupa amarrotada, meus olhos dilacerados.
E perguntou, baixo:
— Você ainda é ela?
Demorei um segundo. Depois outro. Depois respondi:
— Não sei.
E ele me beijou. Como se não importasse. Ou como se finalmente soubesse quem eu era.