Mais uma história de amor sem final feliz, mais dois amantes infelizes, mais uma vez eu estava sozinho.
Voltei minha atenção para o espelho e tentei secar as lágrimas que caíam. Eu tinha um show a fazer e precisava ser perfeito. Eu tinha que dar o melhor de mim quando subisse naquele palco porque foi essa a vida que escolhi para mim.
Assim que subi a multidão começou a gritar enlouquecidamente. Várias emissoras de rádio e televisão estavam transmitindo ao vivo. Consegui identificar duas emissoras de TV estrangeiras. Não imaginava que seria uma apresentação tão grande assim.
Para vencer meu estado de espírito depois de tudo o que aconteceu no camarim eu já comecei cantando e fui assim por cinco músicas seguidas.
Aí sim eu já era o Bernardo atual. Aquele que vivia no meio dessa agitação toda.
Só depois de cantar essas primeiras cinco músicas é que me dirigi à plateia, desejando uma boa noite, um bom ano novo e agradecendo a todos pela presença.
Em momento algum eu citei nomes relacionando minha apresentação com políticos da cidade. Isso era uma coisa que eu nunca aceitei e não seria ali que mudaria minhas convicções.
Cantei muitas músicas e bem à meia noite fizemos a contagem regressiva para o novo ano que estava começando. Foi simplesmente delirante aquele momento.
Minha família e todos os mais próximos de mim estavam na primeira fila emocionados.
- Bom... - Esperei a multidão fazer silêncio para continuar. - O show não pode parar, assim como a vida também não para. Aqui, entre vocês, mas bem juntinho do palco, na primeira fila, estão as pessoas mais importantes da minha vida. Menos um. - A imprensa ficou toda acesa. - Mas eu sei que o Felipe está aqui me dando força e me ajudando a ser uma pessoa melhor.
Mas o que eu quero agora é chamar aqui no palco um menino muito especial na minha vida. Um menino que é meu amigo de verdade.
Ele até já fugiu de casa para me visitar longe daqui.
Rafinha começou a chorar emocionado, mas eu não dei tempo a ele nem a ninguém.
- O que você está esperando que ainda não subiu aqui para cantar comigo a primeira música nesse ano novo, meu querido amigo e irmão Rafinha?
Vem logo, garoto!
E fui até a banda, peguei um violão e estendi a ele.
Ele subiu ao palco praticamente empurrado pela minha mãe, seu pai e o meu pai também.
Ele estava chorando e com o rostinho todo rosado.
Falei então para todo mundo:
- Atenção todos vocês, incluindo toda a imprensa presente aqui: este é o meu amigo Rafael. Amigo e irmão. E só eu é que posso chamá-lo de Rafinha, ok?
Todo mundo gritava e a iluminação se apagou ficando apenas um holofote
focando em nós dois.
- Eu e o meu irmãozinho vamos tocar a primeira música desse ano novo. É uma forma que encontrei de homenageá-lo pela amizade verdadeira que ele tem por mim. E com certeza eu tenho por ele também.
E digo mais: pouquíssimas pessoas aqui e lá fora no mundo, poderão, um dia, abrir a boca e afirmar que já teve ou tem um amigo de verdade.
Eu posso. Ele está aqui junto comigo.
Outra coisa: Rafinha é muito novo ainda e está começando. Mas um dia estará aqui na minha banda fazendo shows por todo lugar. Podem anotar isso.
E toda a imprensa fotografava e filmava tudo, dando closes em Rafinha e se preparando para o que viria.
Ele virou para mim e disse baixinho que não ia conseguir. Mas eu nem deixei ele continuar.
- É claro que você consegue, meu anjo!
Feche os olhos. Respire fundo. Esqueça que o mundo existe. Agora é só a banda. E eu e você aqui juntinhos.
Fizemos quatro músicas e ele foi fantástico. Foi muito aplaudido e desceu chorando mais ainda. Ele é um menino lindo e sou louco por eleJá se encerrava a primeira hora de 2008 quando o show terminou.
Foi excelente!
Me falaram que deveria ter mais de dez mil pessoas na praça me assistindo, mas de cima do palco parecia muito mais. Aquele mar de gente me aplaudindo era uma experiência indescritível e com certeza o auge da minha carreira. O público gritava por bis. Voltei a subir no palco embaixo de mais aplausos e falei:
- Obrigado, obrigado! - Aos poucos as palmas foram se calando. - Bom, como vocês devem estar sabendo, em poucos dias vou embarcar para uma turnê no exterior, então esse é meu último show no Brasil por um bom tempo.
Queria usar esse espaço aqui para me despedir de todas as pessoas que estão ficando para trás e uma em especial. Rafinha, vem me ajudar aqui nessa homenagem.
Ele subiu ao palco e pegou o violão. Disse a ele qual era a música e nos posicionamos.
Fechei os olhos e, pensando em Vítor, comecei a cantar:
“Amigo é coisa pra se guardar
Debaixo de sete chaves
Dentro do coração
Assim falava a canção
Que na América ouvi
Mas quem cantava chorou
Ao ver seu amigo partir...
Mas quem ficou
No pensamento voou
Com seu canto
Que o outro lembrou...
E quem voou
No pensamento ficou
Com a lembrança
Que o outro cantou...
Amigo é coisa pra se guardar
No lado esquerdo do peito
Mesmo que o tempo e a distância
Digam não...
Mesmo esquecendo a canção
O que importa é ouvir
A voz que vem do coração...
Pois seja o que vier
Venha o que vier
Venha o que vier...
Qualquer dia amigo
Eu volto a te encontrar
Qualquer dia amigo
A gente vai se encontrar...
Pois seja o que vier
Venha o que vier
Venha o que vier...
Qualquer dia amigo
Eu volto a te encontrar
Qualquer dia amigo a gente
Vai se encontrar...”
(Canção da América – Milton Nascimento/Fernando Brant)
Quem sabe um dia nos reencontraríamos...
Sexta-feira, 4 de janeiro de 2008
Era doloroso me despedir de todos. Era diferente das vezes que me mudei para Belo Horizonte ou para o Rio de Janeiro, pois daquelas vezes sempre tinha alguém para me apoiar, no primeiro caso Zeca e minha mãe, e no segundo meus avós. Agora eu estava indo sozinho, me jogando de cabeça num mundo totalmente novo e desconhecido.
Minha mãe e minha avó choraram muito, mas ficariam bem, meu pai cuidaria bem delas por mim. Minha tia, quase casada de novo, também ficaria bem. No final, os pais de Zeca realmente viraram as costas para o filho e nunca olharam para trás.
Ele disfarçava sua tristeza, mas para nós, que o conhecíamos tão bem, era impossível ignorar que aquilo o machucou muito.
O mesmo ocorreu com o pai de Bruno. Foi o preço que os dois pagaram para ficarem juntos.
Tio Alfredo foi meio frio na hora de se despedir de mim, mas não era nada pessoal, ele era assim com todos.
Tia Rosa chorou e me fez prometer que a visitaria quando estivesse no Brasil. Mas foi uma promessa vazia, eu não sabia se voltaria ou não a Morro Velho novamente.
Não vi mais Vítor desde a nossa despedida no dia do show, ele fugiu de mim o quanto pôde. Talvez tenha sido melhor assim, sem despedidas mais dolorosas entre nós dois.
Rafinha chorou muito ao se despedir de mim. E eu também chorei.
- Trate de ficar ótimo, porque quando eu voltar quero você na minha banda, entendeu?
Ele fez que sim com a cabeça.
- Prometo merecer o cargo.
- Ótimo, garoto lindo! E se cuide, e pare de fugir pegando caronas.
Ele riu.
- Pode deixar. Eu te amo, Bê!
- Eu também te amo, Rafinha!
Ele se levantou para ir embora da casa da minha avó, mas pegou um papel dobrado no bolso e me entregou.
- Vítor mandou te entregar.
Meu coração bateu mais forte. Éramos assim tão fracos a ponto de ter que nos despedimos por um pedaço de papel? Provavelmente.
Rafinha pulou nos meus braços me dando um abraço apertando. Me encheu de beijos e carinho. Ele me olhava com aqueles lindos olhos verdes pedindo proteção.
O peguei em meus braços o abraçando mais apertado ainda.
Ele me deu um selinho demorado e eu deixei. Retribuí sim. E fiz carinho em seu rosto branquinho.
- Mande notícias.
- Pode deixar.
Guardei a carta e só me permiti abri-la no avião que me levava para São Paulo. Não era uma carta, era um bilhete curto, com poucas linhas:
“Não consegui te dizer tchau pessoalmente, me desculpe, não sou tão forte quanto você. Uma vez te contei que em diversos momentos evitei te procurar com medo de atrapalhar sua vida. Esse é mais um desses momentos. Você está indo, mas deixa aqui mais do que um amante, deixa um fã que torce pelo seu sucesso. De todo o coração, quero que você se torne a estrela mais brilhante da constelação.
Quanto a nós, tudo o que eu tenho a dizer está escrito nesse pequeno trecho que ouvi no rádio um dia:
‘Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você’
Até qualquer dia.
Do seu amor, seu melhor amigo e seu maior fã,
Vítor.”
Foi impossível não chorar. A despedida mais dolorosa veio por um pedaço de papel.
Aquilo não aliviou minha tristeza, mas me deixou mais tranquilo. Agora eu sabia que Vítor torcia por mim.
Em São Paulo, assinei o contrato da turnê e me despedi de alguns amigos. Fui para o Rio, onde fiz minha mala e me despedi de mais amigos, inclusive Beatriz que prometeu ir me visitar.
Então na segunda-feira, dia sete de janeiro, embarquei para Los Angeles deixando mais uma cidade e mais uma fase da minha vida para trásde dezembro de 2009
Era de manhã ainda e eu estava num café admirando o movimento na quinta avenida enquanto a neve caía fina. Pensava na vida enquanto esperava minha companhia. Já fazia quase dois anos que eu tinha me mudado para os Estados Unidos e não tinha uma previsão de quando voltaria ao Brasil. Pois é, um compromisso foi puxando o outro, um ano virou um ano e meio, que virou dois anos, que está virando tempo indeterminado. Para ficar mais fácil me locomover, aluguei um apartamento em Nova York e ele se tornou minha residência oficial.
Pelo menos na teoria, já que passava mais tempo viajando do que em casa. Pelo tipo de música que eu fazia, eu posso dizer que eu estava me dando bem. Não vendia milhões de CDs ou encabeçava a lista das músicas mais tocadas, mas eu era conhecido e admirado no circuito alternativo de música. De uma coisa eu não posso reclamar, não me faltaram convites para shows. E dinheiro era outra coisa que sobrava e muito.
Foi por causa de um show, no dia 26, que eu não poderia passar o natal no Brasil com minha família. Nesse tempo todo só tinha ido visitá-los três vezes. Nas vezes que fui, só consegui ver meus pais, meus avós, minha tia, Zeca e Bruno.
E é claro que eu não faltava nunca em visitar o meu Felipe na data do seu aniversário e conversar com ele por horas e horas. Só eu e ele ali em seu túmulo. Duas vezes Rafinha também foi comigo e conversamos com meu Lipe. Ele entendia o meu coração como ninguém.
Rafinha foi me visitar nos Estados Unidos uma vez e ficou comigo um mês inteiro. Íamos para todos os lugares e para todos os meus shows. Ele inclusive participou de alguns como meu guitarrista.
Não, não encontrei Vítor.
Eu morria de saudades dele, de vê-lo, de tocá-lo, de beijá-lo, mas vê-lo novamente seria como colocar o dedo numa ferida que ainda não se cicatrizou.
Não podíamos nos ver sob o risco de termos uma recaída para logo depois nos separarmos de novo, causando todo aquele sofrimento novamente.
Para afastar esse risco, até mesmo evitava ouvir sua voz ou ver sua imagem pela webcam.
Nunca mais nos falamos, mas era uma relação engraçada: nos comunicávamos só por cartas. Numa época em que temos e-mails, telefones e comunicadores instantâneos, nós insistíamos no sistema antigo de correspondência. Às vezes as cartas demoravam semanas para chegarem e serem respondidas, mas era gostoso esperar por elas. Meu carinho por ele não diminuiu nesse tempo longe.
Eu não sabia se teríamos um relacionamento quando eu voltasse e essa era uma das razões de eu prolongar tanto a minha volta.
Nas nossas cartas nunca falávamos da nossa relação, apenas trocávamos novidades sobre nossas vidas. Eu estava com sua última carta em mãos:
“Morro Velho, 3 de dezembro de 2009
Como vão as coisas em Nova York?
Devido ao eficientíssimo sistema postal entre Brasil e Estados Unidos, acho que essa é nossa última carta do ano, então aproveito para lhe desejar um ótimo natal e um feliz ano novo.”
Nas linhas seguintes ele descrevia como iam as coisas em Morro Velho. Nada de muito novo. Ele sempre escrevia à caneta, então era comum ter uma ou outra marca de corretivo. Um pouco antes do final da carta, havia uma, só que não tinha nada escrito por cima. Virei a carta contra a luz e pude distinguir uma pergunta:
“Quando você volta?”
Já tinha percebido antes, mas sempre mexia comigo ler aquilo. Eu não tinha data para voltar, a cada dia que passava o dia da minha volta ficava mais longe. Não sei se ele deixou aquilo de propósito ou apenas se arrependeu do que escreveu já depois de escrito.
Um detalhe que sempre me emocionava muitíssimo era a forma como ele terminava suas cartas, sempre com letras de músicas que de algum jeito remetia a nós, e eu adquiri o hábito de fazer o mesmo. Era como se ele evitasse falar dos nossos sentimentos com as próprias palavras e usava palavras alheias para isso. Essa terminava com uma música que combinava com sua pergunta escondida:
“E como é normal acontecer
Se num entardecer
A dor te visitar
Vai ter sempre alguém pra socorrer
Fazer o seu jantar
Dormir no seu sofá
Enquanto a noite passa por mim
Eu rego o seu jardim
Você já vai voltar”
Mesmo relendo tantas vezes aquela carta, meus olhos ainda se enchiam de água. Eu queria pegar o telefone e ligar para ele imediatamente dizendo o dia e o horário em que eu chegaria, para ele me esperar no aeroporto e de lá irmos para nossa casa, onde viveríamos felizes para sempre.
Infelizmente, nada era fácil. Mesmo voltando para o Brasil, o problema ainda estaria lá: a incompatibilidade de vidas. Se eu escolhi minha profissão, então iria continuar em Nova York investindo nela, pois era isso que eu tinha para mim. Esse pensamento me deixava triste? Claro, mas eu já tinha me acostumado.
Nana Caymmi uma vez disse que nenhuma grande estrela é feliz, e agora eu começava a entender aquela frase. Não era uma questão de fama, mas simplesmente de incompatibilidade. Eu vivia num mundo completamente diferente ao de Vítor e da grande maioria das pessoas. Eu escolhi viver nesse mundo sozinho.
Três caras que estavam numa mesa próxima, quase quebraram o pescoço para olhar a mulher que acabara de passar, e foi isso que me despertou do meu pequeno transe.
Guardei a carta no bolso do meu casaco e assisti ela atraindo todas as atenções quando entrou no café. Olhou para os lados procurando alguém e quando me viu, deu um meio sorriso e veio caminhando em minha direção.
Os anos só fizeram bem para Beatriz. Aos vinte e cinco anos de idade ela estava no auge da sua beleza. Seus cabelos eram longos e ondulados, num tom de castanho muito vivo. Seus traços finos combinavam com sua pele levemente morena. Ela estava elegante, com roupas de inverno que tinham o poder de deixar qualquer um mais bonito. Me levantei para cumprimentá-la. Eu estava com saudade dela, por isso não me segurei e lhe dei um estalado beijo na bochecha. Ela limpou a garganta alto como se reprovasse meu gesto, mas no fundo eu sabia que ela não se importava, só precisava manter a pose.
- Você veio! - Falei puxando uma cadeira para ela sentar.
- Claro, não tinha prometido? Não ia deixar você passar o natal sozinho aqui.
Quando lhe contei que não poderia viajar para o Brasil no natal, ela foi logo se dispondo a passar a data comigo. Tentei argumentar que não era necessário, mas ela insistiu que precisava fazer compras. Ela era uma grande amiga, que de um jeito disfarçado se preocupava comigo e estava sempre achando um jeito de cuidar de mim.
Nos minutos seguintes trocamos novidades sobre nossa vidas. Ela estava fazendo sucesso no Brasil como atriz, chegando rapidamente ao primeiro time da sua profissão.
E continuava solteira.
Ela teve muitos casos, mas eles nunca duravam muito. Ela se cansava rápido de todos, como eu no início da minha carreira.
Talvez seja por isso que nos tornamos tão amigos naquela época, um supria a carência do outro, já que com casos passageiros só conseguíamos sexo.
- E o mister frouxo?
Era assim que ela se referia a Vítor. Já tinha pedido para ela parar de chamá-lo assim, mas ela ignorou e continuou. Por fim desisti e aceitei o apelido.
- Continuamos a nos comunicar por carta.
- Como pode? Vocês estão em pleno século 21!
- É romântico!
- É cafona.
- Olha, é a mais recente.
Entreguei para ela a carta de Vítor. Ela leu sem demonstrar nenhuma emoção e me devolveu.
- Viu a marca do corretivo? - Perguntei.
- Foi a primeira coisa que li. O que as pessoas não querem dizer é sempre o mais relevante.
- E o que você acha?
- O mesmo de sempre, que ele é frouxo. Ele devia estar aqui com você, não eu.
- É complicado para ele, Bia...
- Para de defender ele. Ele te ama, ok, mas ele não tem coragem de lutar por esse amor.
- Se ele é frouxo eu também sou, afinal, eu poderia ter ficado no Brasil também.
- Não, a profissão dele é flexível, ele poderia ser engenheiro de minas ou seja lá o que ele for em qualquer lugar com algum morrinho, mas você não pode ser um cantor lucrativo num buraco qualquer como Morro Velho.
- Pega leve, é o lugar que eu nasci.
- Eu sei, você nasceu num buraco.
Era a milésima vez que estávamos tendo aquela conversa. Ela insistia em bater na tecla que o movimento para uma reconciliação tinha que partir de Vítor, mas eu duvidava. Nós dois estávamos na mesma posição. Como Beatriz falou, era mais fácil para ele mudar de cidade, sim, mas não era essa a questão, e sim se ele queria participar do mundo que me cerca. Não querendo me chatear com aquele assunto em pleno natal, tratei de mudar de assunto.
- E o que você quer fazer hoje?
- Me recomendaram um ótimo restaurante e nós vamos jantar lá, mas quero fazer alguma coisa antes.
- Poderíamos ir patinar no Rockfeller Center! - Falei animado.
- O garotão vai?
- Você devia parar com essa mania de chamar todos por apelidos, eles têm nomes.
- Ele vai ou não? - Perguntou me ignorando por completo.
- Vai. Ele está vindo nos encontrar aqui. - Falei me dando por vencido. Olhei para o menino que entrava no café. - Aliás, ele acabou de chegar. Por favor, Bia, chame ele de Henrique.
Henrique era mesmo um garotão, uma criança que cresceu demais. Ele veio caminhando em nossa direção estampando seu largo sorriso. Ele era um modelo brasileiro que conheci em Nova York mesmo na festa de uma amiga em comum e logo nos tornamos amigos. Mas modelo masculino nem sempre ganha bem e aquela era uma cidade com um custo de vida bem alto.
Prestes a ser despejado, o levei para morar comigo. Sim, eu meio que sustentava ele e sim, nós transávamos com uma certa frequência.
Não vejam isso como se eu estivesse pagando por sexo. Estávamos ambos suprindo as carências um do outro, eu de afeto e ele de rumo. Ele teve uma infância difícil, largou a escola, chegou a se prostituir e isso acaba minando a cabeça da pessoa. Resumo da história: ele era uma criança presa no corpo de um quase adulto e precisava de alguém responsável, no caso eu, para cuidar dele. Não podíamos chamar aquilo de namoro porque não tinha amor, pelo menos não o amor romântico. Henrique era bonito, alto, magro, muito branquinho, tinha olhos e cabelos castanhos intensos, e acabara de completar dezenove anos. Usava sempre um topete muito estiloso. Mas o seu charme era mesmo o largo sorriso, que fazia você sorrir de volta apenas por admirá-lo.
- Henrique, Beatriz, Beatriz, Henrique. - Falei os apresentando.
Eles se cumprimentaram com beijos no rosto e logo todos nos sentamos para conversarmos. Os dois se deram bem, o que era uma surpresa para mim. Achei que o jeito infantil de Henrique incomodaria Beatriz, sempre tão séria.
- Henrique, estamos querendo ir patinar. - Falei.
- Sério? Gostei! Bom demais patinar no gelo! - Respondeu com aquele seu jeito efusivo.
- Ótimo, vamos lá então.
De um jeito bem americano, nós três “almoçamos” num McDonald’s e depois fomos patinar no gelo, na pista do Rockfeller Center. Eu era muito desengonçado para aquilo. Beatriz e Henrique se movimentavam com leveza, ousando algumas piruetas até, enquanto eu lutava para ficar em pé em cima daquelas lâminas finas. Depois de um tombo muito feio, desisti daquela atividade e me sentei nos degraus de uma escadaria próxima. Fiquei admirando a árvore de natal, tão bem enfeitada, que dava um ar de magia ao lugar.
Me pus então a observar Beatriz e Henrique patinando. Ele era um garoto tão incrível que era capaz do impossível: fazer Beatriz gargalhar.
Ri assistindo a cena e me dando conta que nunca havia visto ela gargalhar, já que não era muito fã de demonstrar emoções.
Ela fez sinal como se desse espaço para ele patinar melhor. Ele deu um show, fazendo com que as pessoas patinando em volta também abrissem espaço para vê-lo. Ele girava, pulava, fazia o gelo espirrar em seus espectadores, e sempre sorrindo. Eu adorava vê-lo pular, ela parecia tão leve, tão vazio de problemas.
Ele devia ter tido uma vida bem mais complicada que a minha, mas não deixava que isso o afetasse, simplesmente vivia levemente.
Eu gostaria tanto de ter aquela leveza...
As coisas que tinham acontecido comigo nos últimos dez anos tinham me deixado endurecido.
Não que me coração agora fosse de pedra, mas digamos que ele era murado, não era qualquer coisa ou qualquer um que atravessava suas proteções. Se por um lado isso foi bom para me proteger de decepções amorosas, por outro fez com que eu vivesse menos, aproveitasse menos das coisas boas que a vida me proporcionou.
Esse endurecimento foi o principal responsável por eu ter escolhido a minha profissão e não Vítor.
Foi isso que a travessia me proporcionou: um amadurecimento, e amadurecer é uma faca de dois gumes.