Bernardo [86] ~ Mãe

Um conto erótico de Bernardo
Categoria: Gay
Contém 2076 palavras
Data: 08/12/2023 04:51:13
Assuntos: Gay, Início, Sexo, Traição

A vida é injusta. Ela te obriga a escolhas impossíveis, te leva por caminhos que você não quer seguir e destrói sem cerimônias cada um dos seus planos. Não importa o quão bom você tenha sido, ali na esquina sempre tem um rasteira da vida te esperando.

Vou pegar o meu caso como exemplo. Eu escolhi uma carreira rentável, me cerquei de amigos fiéis e consegui ficar com o cara que eu amo. Até aqui, então, tudo certo. E eu fiz sacrifícios, pequenos ou grandes, para conquistar cada uma dessas coisas. Mas e se amanhã elas me forem tiradas? Se eu acordar daqui a dez anos sem nenhuma dessas coisas? Meus sacrifícios teriam sido em vão? Uma vida jogada fora? De que adiantou tudo então?

Era nisso que eu pensava quando descobri que minha avó materna começou a apresentar os primeiro sinais do Mal de Alzheimer. Uma vida inteira de privações e não foi possível aproveitar nem mesmo seus anos finais? Quão injusto é isso?

A desconfiança começou quando ele confundiu meus primos com meus tios e Laura com minha mãe. Ela alegou apenas que estava um pouco cansada, mas o alarme soou quando esses lapsos de memória se tornaram mais frequentes. O diagnóstico foi confirmado em março daquele ano e caiu como uma bomba na família.

_Quem vai buscar papai e mamãe no aeroporto, eu ou você?_ perguntei a Tiago.

Minha mãe foi a Porto Alegre acompanhar os testes finais e os resultados dos exames da minha avó, e meu pai foi ajuda-la

_Eu vou, pode deixar._ ele respondeu _Foda, né?

_Foda... Isso não te deixa preocupado?

_Eu fico com pena da vovó, mas fazer o que? Vamos cuidar dela.

_Mas a doença é genética, Tiago. Nós temos uma chance de ter herdado o gene.

_Ah, eu li a respeito e é meio difícil. Só se a mamãe tiver herdado da vovó e nós tivermos herdados dela. E é incomum que passe da mãe pros filhos homens. E mesmo que passe, ter o gene não significa que a doença vai se desenvolver.

_Mesmo assim, já imaginou acordar sem saber quem é você? Quem são as pessoas que você ama? Sem se lembrar de tudo o que você viveu?

Meu irmão ficou pensativo por um tempo.

_Sinceramente? Você não teria consciência do que está acontecendo, então não seria tão ruim pra você. O grande fardo quem carrega são as pessoas que estão em volta.

_As chances da mamãe ter herdado o gene são enormes.

_Eu sei, e isso me preocupa mais do que a vovó.

Aquilo ficou na nossa cabeça durante muito tempo. Aliás, nunca saiu. Ainda mais depois de meu pai chamar eu e Tiago num canto e nos contar que minha mãe tinha feito o teste genético e o resultado tinha sido positivo.

_Mas isso não significa que ela vai desenvolver a doença, certo?_ falou Tiago abalado _E se acontecer, pode demorar décadas até os sintomas aparecerem.

_Eu sei, mas é muita coisa pra cabeça dela._ meu pai falou _Então, por favor, evitem maiores comentários sobre isso. Sejam compreensíveis com sua mãe.

Eu fiquei calado durante todo aquele papo. Minha mãe tinha o gene, e era possível que eu também tivesse, embora eu nunca tenha feito o teste. Eu não queria correr o risco de ver o resultado positivo e passar a guiar toda a minha vida em volta daquela doença. Para falar a verdade, eu concordava com Tiago, o efeito era muito pior para quem teria que conviver com o doente. Por isso, o fato de minha mãe ter o gene me era mais preocupante do que se eu mesmo tivesse. E se minha mãe acordasse um dia sem se lembrar de mim?

Embora meu pai tenha nos pedido para evitar o assunto com mamãe, eu não pude evitar. Aquele assunto dominava meus pensamentos. Então, num sábado à tarde que coincidiu de eu e minha mãe estarmos sozinhos em casa, aquela conversa aconteceu.

_Eu decidi não fazer o teste._ falei sem uma introdução.

Minha mãe, que olhava para televisão sem realmente assistir nada, desviou sua atenção para mim. Ela demorou alguns segundos para entender do que eu estava falando.

_Você tem certeza?

_Tenho, eu não quero viver com essa sombra.

_E você vai conseguir conviver com a dúvida?

_Mesmo se desse positivo, ainda é uma dúvida, não?

_Talvez...

_Você se arrepende de ter feito o teste?

_Às vezes sim, às vezes não.

Aquele rascunho de diálogo era a primeira conversa não-superficial que tínhamos desde que contei que era gay, e lá já iam nove meses.

_O que vai acontecer com a vovó?_ perguntei.

_Não sei. A doença dela está na fase inicial e pode ficar assim por anos. Vamos contratar um serviço de acompanhamento para ela em tempo integral. Mas se a doença se agravar, ela vai ter que ser internada.

Ficamos em silêncio.

_Eu não posso não pensar em como isso é injusto._ eu falei.

_Adoecer nunca é justo, Bernardo.

_Mas a vida que ela levou. Ela deveria ter o direito de ter aproveitado melhor sua viuvez.

_Não fale do que não sabe._ falou sem me olhar.

_Por favor._ pedi sem paciência _Estamos só nós dois aqui, não tem ninguém pra quem mentir. Você realmente acha que sua mãe foi feliz naquele casamento?

Ela não respondeu nada. Mas, nesse caso, o silêncio não era uma resposta afirmativa, e sim um meio de dizer “não vou conversar sobre isso com você”.

_Para de mentir para si mesma, mãe. Vovó levou uma vida infeliz, vovô não era uma boa pessoa, e sua família não era perfeita. Nenhuma família é. É injusto você culpa tio Aurélio sobre isso.

Eu não pretendia seguir por esse caminho, não planejei aquela conversa. Só que era a primeira vez que tínhamos uma conversa de verdade em tempos, então foi impossível segurar tudo que eu já vinha segurando a meses para lhe dizer.

_O que foi? Voltamos à fase do tratamento de silêncio?_ perguntei irônico.

_Cale a boca._ ela falou fria _Se não entende, pelo menos respeite a morte do seu avô. Ele não está aqui para responder.

_Eu não posso deixar ele para trás se as coisas que ele disse e fez continuam influenciando minha vida através de você.

_Cala a boca!_ ela gritou _Por que diabos você está falando disso?!

_Por que?!_ falei com lágrimas nos olhos _Porque eu hoje acordei me perguntando o que aconteceria você se desenvolvesse essa maldita doença! E se você esquecer quem eu sou antes de poder me dizer que você me aceita do jeito que eu sou?! Como eu conseguiria viver com essa peso nas costas pelo resto da minha vida?!

Ela ficou me encarando com os olhos vermelhos. Eu escondi meus rosto com as mãos e comecei a chorar de verdade. Quando brigamos com alguém, ficamos de mal e viramos a cara, nunca paramos para pensar: e se alguma acontecer? Como eu conseguiria viver com o peso de ter deixado a pessoa ir achando que não era querida por mim? Nós e nossa irritante mania de achar que somos imortais.

_Olha o que nós viramos..._ falei ainda escondendo o rosto _Dois estranhos. Você não sabe nada do que está acontecendo comigo. Você não sabe mais nada da minha vida. E daqui a pouco eu estou saindo de casa, começando minha vida em outro lugar, e onde nós dois vamos ficar? Cavando ainda mais esse abismo que se formou entre nós? Se você não começar a repensar o jeito como você me trata, sinto muito, mas nossa relação não tem nenhum futuro.

Eu não olhava para ela, mas sentia seus olhos em mim.

_Eu não consigo parar de pensar onde eu errei com você._ ela falou enfim.

Era como se não tivéssemos chegado a lugar nenhum! Ela ainda achava que eu ser gay era um erro, uma fatalidade do destino. Eu me levantei sem paciência e para cozinha beber água para ao menos tentar me acalmar.

_Você errou sim comigo._ falei da cozinha num tom alto o bastante para que ela me ouvisse, mas sem gritar _Você sempre soube de tudo e se calou. Você deixou que eu me afogasse num mar de agonia e se sentou para assistir.

Eu voltei para sala e encarei.

_Você me contaminou com essa sua ridícula busca pela perfeição e me fez jogar fora anos da vida. Me fez desperdiçar experiências maravilhosas e pessoas maravilhosas. Coisas que eu nunca vou poder recuperar._ eu dei uma risada triste _E ainda sim, eu sou o único aqui pedindo perdão.

Ela não chorava, mas me encarava com os olhos vermelhos. Eu sabia que ela estava no seu limite, mas não tinha forças para brigar comigo.

_Sim, eu sabia desde o que você era desde pequeno._ ela falou _Eu não sei... Acho que eu sempre tive medo de você repetir a história do meu irmão.

_Você ainda culpa a homossexualidade do seu irmão pela destruição de sua família, mas você está errada. O que destruiu sua família foi o fato de seu pai colocar seu preconceito acima do amor que sentia pelo filho. Eu não estou cometendo o mesmo erro que tio Aurélio, você é que está cometendo o mesmo erro do seu pai.

Ela pousou a cabeça sobre as mãos e ficou mexendo nos próprios cabelos.

_Você ao menos entende que eu ainda sou a mesma pessoa?_ perguntei _Que eu não sou nenhum estranho morando sobre o seu teto.

_Para com isso, Bernardo!

_Mas eu realmente não sei! Olha o jeito que você vem me tratando todos esses meses! Eu não sei mais o que eu sou pra você.

_O que você quer de mim afinal? Não, eu não consigo achar normal!

_O que eu quero é que você pelo menos abaixe a guarda e deixe eu te mostrar o meu mundo. Quando você conhece-lo, você vai ver que ele é o mais natural possível.

Ela não me respondeu, permaneceu naquela mesma posição.

_Olha o exemplo da sua mãe._ falei _Ela precisou de quarenta anos para entender e fazer as pazes com seu filho, e quando aconteceu, ela não tinha mais saúde para recuperar o tempo perdido.

As lágrimas voltaram a encher meus olhos e a minha voz a falhar.

_Eu morro de medo que isso aconteça com nós dois, mãe

Me sentei no sofá de frente para ela.

_Mês que vem é meu aniversário, mas eu não quero nenhuma grande comemoração. Minha ideia é fazer um churrasco aqui em casa só com os amigos mais próximos. E eu vou convidar meu namorado.

Ela não apresentou nenhuma reação.

_Eu gostaria muito que você estivesse presente para conhece-lo._ falei _Rafael é o amor da minha vida, a pessoa com quem eu quero passar o resto dos meus dias e um dos pais dos seus futuros netos. Eu realmente queria que você o conhecesse.

_Eu não sei, Bernardo..._ ela falou.

Só o fato de não ter havido uma negativa imediata, era um imenso avanço, mas decidi forçar um pouco mais.

_É o Rafael, lembra dele? Ele andou aqui em casa por tempo no início do ano retrasado após a morte daquele colega. Nós namoramos desde que eu voltei ao Brasil e nos amamos muito. Ele me ama e cuida muito bem de mim, e isso já é motivo suficiente para você gostar dele.

Me levantei do sofá e limpei minhas lágrimas.

_Eu vou tomar um banho e sair com ele. Vou aproveitar para fazer o convite.

E foi assim que aconteceu aquela conversa definitiva com minha mãe. Podem me acusar de ter pegado pesado usando a doença da minha avó e a possibilidade dela desenvolver a doença também, ou mesmo de me aproveitar de um momento que ela estava fragilizada, mas eu não penso assim. Eu não escolhi aquele momento por ele ser oportuno, apenas aconteceu de aquela doença mexer comigo também. Eu tive e tenho medo que minha mãe desenvolva a doença e se esqueça de mim. E, infelizmente, não há como saber se isso vai acontecer e quando. Por isso, eu me senti obrigado a forçar ela a me conhecer. Talvez com um pouco de egoísmo, eu fiz aquilo para que eu pudesse aproveitar mais da minha mãe antes que a vida a tirasse de mim. Minhas palavras não poderiam ter sido mais verdadeiras: eu morria de medo que repetíssemos a história de vovó e tio Aurélio.

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Comentários

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Que diálogo forte e sincero esse de Bernardo com sua mãe. Conheço bem o Mal de Alzheimer e sei o rombo que essa doença traz para o paciente e sua família. A preocupação de Bernardo é pertinente sim.

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