Meu Desejo - Capítulo Seis

Da série Meu Desejo
Um conto erótico de M.K. Mander
Categoria: Gay
Contém 5404 palavras
Data: 23/10/2023 09:56:43
Assuntos: Gay, Homossexual

CAPÍTULO SEIS

*** PEDRO FERNANDES ***

— Pedro, a Marjorie quer te ver — Bruna, a auxiliar de uma das turmas do primeiro ano, avisa ao passar, com a mochila pendurada no ombro, pela porta da minha sala, onde eu termino de guardar os materiais do dia.

As palavras são ditas com uma pressa que imediatamente contagia meu coração. Bruna já foi embora há sabe Deus quantos segundos quando finalmente me torno capaz de desviar os olhos do espaço onde ela esteve para o relógio pendurado sobre a moldura da porta. Seis e vinte. Passo a língua sobre os lábios enquanto meu coração se envolve em algum tipo de corrida eliminatória e aumenta, a cada instante, o compasso das próprias batidas.

Quem nunca ficou nervoso por uma convocação à sala do chefe que atire a primeira pedra. E, nesse caso em especial, as perspectivas não são apenas assustadoras, elas são mais, muito mais. Repasso em minha mente as razões para Marjorie desejar me ver em sua sala, meus pensamentos dão voltas e voltas antes de eu confirmar que não me lembro de nenhuma, exceto a promoção.

Mordo um sorriso atrevido, não querendo ter esperanças sobre algo incerto, mas não pode ser outra coisa. Bianca está praticamente parindo. O colégio precisa tomar providências para sua substituição, eles já enrolaram muito mais do que seria aconselhável. A menos, é claro, que já tenham escolhido quem substituirá a professora e ainda não tenham anunciado. Eles teriam que ter contratado alguém novo, ou a rádio corredor já teria feito seu trabalho em espalhar a fofoca.

O que significa dizer que posso estar sendo convocado para ser informado sobre a contratação de um novo profissional e, conhecendo a dinâmica escolar, ser orientado a ajudá-lo em seu período de adaptação. Bato o pé no chão, em um reflexo nervoso imparável enquanto faço contas mentais.

É inevitável, a voz que parece alimentar toda a insegurança existente em meu ser sopra suas palavras malditas em meus ouvidos “Você sequer é bom o suficiente naquilo que tanto diz amar pra ter um emprego de verdade.” Fecho os olhos e inspiro profundamente, depois solto o ar pela boca. Repito o processo até que meu peito tenha encontrado um ritmo aceitável. Hoje não, vó. Hoje não.

Guardo as últimas folhas de papel que estavam sobre a mesa antes de trancar o armário de suprimentos e arrastar os olhos pela sala ao meu redor, conferindo se ela está pronta para o dia seguinte. As pequenas mesas e carteiras, os trabalhos pendurados em um varal de exposição, as cartolinas coladas nas paredes e até mesmo o cheiro de tinta guache impregnado no ar fazem muito mais pela minha calma do que minhas próprias palavras silenciosas de incentivo.

Pego minha mochila, pendurada no gancho ao lado do armário e saio da sala, apagando a luz e encostando a porta.

************

— Marjorie, você queria me ver? — pergunto, depois de bater na porta e colocar apenas a cabeça para dentro.

— Sim, Pedro. Por favor, entre. — Sorrio contidamente e obedeço, fechando a passagem atrás de mim. Eu me sento na cadeira diante da mesa da coordenadora, apoio minha mochila em meu colo e entrelaço os dedos das mãos sobre ela. — Como foi o dia? — pergunta, interrompendo minha observação da sala em que eu estive tão poucas vezes que poderia contar a quantidade nos dedos de uma única mão.

Ampla, clara e com móveis modernos e minimalistas, a coordenação do IABE se parece muito mais com uma sala de estar que eu encontraria em uma das muitas casas da minha avó do que com uma coordenação escolar, mas isso é algo esperado, considerando que os pais dos alunos dos instituto são muito mais parecidos com a minha avó do que eu gostaria de admitir.

— Ótimo. Hoje trabalhamos o projeto dos autores.

— Ziraldo, certo? — questiona sobre o autor que estamos apresentando aos alunos esse ano.

— Isso! As crianças estão muito empolgadas com o menino maluquinho. — Rio ao lembrar de Diego colocando sua mochila sobre a cabeça hoje mais cedo para fingir que era uma panela. Marjorie balança a cabeça, concordando.

— Eu adoro esse projeto — comenta. — Bem, Pedro, eu não acho que precisamos fazer rodeios sobre o motivo de eu ter pedido que você viesse aqui — diz, e eu quase levanto as mãos para o céu em agradecimento, mas, ao invés disso, apenas assinto em concordância. — Bianca entrará de licença maternidade a qualquer momento e é claro, nós precisamos substituí-la. Isso por si só já vai gerar uma mudança significativa na rotina dos nossos alunos, então nosso plano inicial era manter tanto quanto fosse possível a dinâmica que eles já conhecem. — Pisco os olhos absorvendo as palavras e minha boca seca, porque elas podem significar duas situações completamente opostas, em uma delas, eu chego onde quero, na outra, continuo exatamente onde estou. — Promover você a professor regente e reescalar um auxiliar parecia a escolha mais sensata.

— Parecia? — Sei que deveria esperar que Marjorie concluísse o pensamento, mas a palavra escapa pelos meus lábios antes que eu possa de fato impedi-la ou pelo menos tentar.

— Sim, na verdade, estava tudo certo para isso. A direção já havia concordado que essa era, sim, a melhor alternativa — diz devagar, e eu me pergunto se ela está sentindo algum prazer em brincar com meus nervos. Pelo amor de Deus, por que diabos, de repente, Marjorie achou que usar verbos no passado para se referir a uma promoção que ainda não recebi faria algum sentido? — Mas ontem, algo completamente inesperado chegou ao nosso conhecimento. — Ela para de falar e eu inclino a cabeça sentindo meu coração bater na garganta.

Há muito tempo eu me pergunto se minha avó seria capaz de uma coisa dessas. Eu não tenho dúvidas de que ela conhece os donos do IABE, já que suas raízes estão na elite brasileira, mas depois de dois anos trabalhando aqui sem qualquer sinal da interferência de Marieta Alves Fernandes, eu comecei a acreditar que ela não iria tão longe. Parece que eu estava errada.

Consegui esse emprego sem fazer qualquer alarde a respeito do meu grau de parentesco com ela. Até porque, a última coisa que qualquer um que conheça minha avó espera é ver sua neta trabalhando em algo que não seja a Perséfone Beleza e Cosméticos, empresa fundada pelos Alves Fernandes há mais de oitenta anos e que prospera não apenas no mercado nacional, como também no internacional. É quase impossível morar no Brasil e nunca ter usado um produto Perséfone, seja um esmalte, um batom, um shampoo ou apenas uma acetona.

— Inesperado? — Me forço a perguntar, porque parece ser esse o seu desejo.

— Sim. Recebi uma visita do Hugo Maldonado — declara, plantando uma ruga entre minhas sobrancelhas. Levo alguns instantes além do necessário em silêncio, processando a informação e me certificando de que não estou ficando doida, porque se eu ouvi certo, alguém nessa sala certamente está. Que raios eu tenho a ver com Hugo Maldonado?

— O pai da Beatrice?

— Ele mesmo.

— Não acho que eu tenha entendido — comento e Marjorie balança a cabeça, me dizendo que está prestes a explicar.

— No início do ano, o senhor Maldonado nos informou sobre a possibilidade de precisar tirar Beatrice do estado ainda esse ano. Na época, nós conversamos sobre algumas alternativas para a vida escolar da menina, caso isso realmente viesse a acontecer, mas achamos melhor deixar para discutir detalhes quando, ou se, houvesse uma confirmação. — O vinco em minha testa se torna mais profundo quando penso na menininha de cabelos castanhos. Beatrice é uma criança extremamente apegada. Uma mudança nesse nível em sua rotina vai virá-la do avesso. Marjorie deve ler a preocupação em meu rosto, porque suas próximas palavras são uma pergunta que beiram uma afirmação. — Posso ver que você entende qual é o problema nisso, certo?

— Ela vai sofrer — assumo. — Muito. — O peso em meu peito troca de lugar, deixando de ser um reflexo ansioso para se tornar um preocupado. No entanto, Marjorie sorri para mim, deixando-me mais confuso do que nunca sobre os rumos dessa conversa.

— E pela sua reação, eu realmente acho que você pode ser a solução. — Recuo a cabeça e arregalo os olhos.

— Desculpe?

— Hugo Maldonado decidiu que a melhor alternativa para Beatrice é mantê-la em Homeschooling até o final do ano, quando eles retornarão ao Rio de Janeiro. Assim, no ano que vem, ela pode ser reintegrada à turma como se nunca tivesse saído.

— Mas a legislação brasileira não permite — digo o pensamento em voz alta.

— Por isso seria necessário que, oficialmente, as aulas estivessem sendo orientadas por uma instituição de ensino ou por um agente dela, pelo menos. — responde e choque se espalha pelo meu rosto à medida que eu finalmente começo a conseguir fazer as conexões. — E se esse agente fosse alguém que a menina já conhece e que mantivesse seus laços com a vida escolar pregressa... — Deixa o resto no ar e eu abro a boca, mas a fecho logo em seguida. Passo a língua sobre os lábios, organizando meus pensamentos ou tentando fazer isso.

— O que você está me dizendo, Marjorie?

— Que Hugo Maldonado solicitou especificamente você para esse trabalho. — Percebo agora que cada momento que eu achei estar confuso durante essa conversa nada mais foi do que uma preparação para o instante em que minha coordenadora termina de colocar essa frase no mundo.

— O quê? Por quê? — Solto as perguntas sem conseguir segurálas. — Nós nem nos conhecemos.

— Na verdade, ainda na segunda-feira ele havia pedido que você estivesse presente na próxima reunião justamente para conhecê-lo, e ontem me trouxe essa proposta.

— Proposta?

— Sim, Pedro. Essa é uma proposta de trabalho. — Engulo em seco quando tudo o que comi ao longo do dia decide imitar os últimos acontecimentos da minha vida e dá um giro de trezentos e sessenta graus, revirando-se em meu estômago. Mais uma vez, percebo estar sendo muito transparente em minhas reações quando Marjorie volta a falar.

— Eu sei que é uma situação inesperada, mas essa também é uma oportunidade única na carreira que você está começando agora, Pedro. — Se a intenção de suas palavras é ponderar ou lembrar, eu não faço ideia. — Quanto maior o número de experiências que acumular, melhor. — Ela faz uma pausa antes de voltar a falar, dessa vez, baixinho. — Isso sem falar em alguns favores. — Me olha de maneira veemente, como se para garantir que eu entendesse que a mudança em seu tom de voz não foi uma escolha ao acaso. — Hugo Maldonado pediu especificamente por você graças ao vínculo que você cultivou com Beatrice. O IABE não gostaria de desapontar um homem como ele, o que significa que o colégio ficaria extremamente grato se você aceitasse o que está sendo oferecido. Sua promoção seria adiada por seis meses, mas ela seria sua quando você voltasse.

— Voltasse de onde? — Me lembro de perguntar em meio ao verdadeiro caos explodindo meu cérebro.

— Santa Catarina. Florianópolis pra ser mais precisa. Você receberia moradia e um salário apropriado à tarefa que está assumindo, um que é muito maior do que o da função que eu sei que você esperava receber quando entrou nessa sala hoje. Além disso, não se preocupe com a carga de trabalho, será a mesma que um professor regente nas salas do IABE teria, apesar de você ser a agente do instituto, haverá outros professores contratados para ministrar aulas específicas, como de língua inglesa, música e educação física.

— Outros?

— Nós só precisamos de um agente para garantir o vínculo, os outros podem ser contratados de maneira independente. — Balanço a cabeça, concordando e agradecendo silenciosamente por Marjorie ter se encarregado de responder as perguntas que eu não fiz, mas deveria. — Você não precisa me dar uma resposta hoje, Pedro. Vou encaminhar pro seu e-mail os detalhes da proposta elaborada pelo RH da escola e você pode ler, pensar e me dar uma resposta na semana que vem. Acho bom que você converse com o senhor Maldonado antes de se decidir, também. Ele virá à reunião de pais em dois dias e vocês terão a oportunidade de conversar sobre essa situação como um todo.

— Até quando exatamente vocês precisam de uma resposta?

— Segunda-feira. Caso você aceite, deverá se mudar em vinte e oito dias.

— Vinte e oito dias? — Minha voz sai fina pela surpresa e eu não consigo fechar a boca ao terminar de falar.

— Eu sei que é súbito, para dizer o mínimo. Mas eu garanto que você será recompensado financeiramente por isso também. É importante que você entenda que sua presença será também um suporte emocional para Beatrice, Pedro. Eu sei que é estranho pensar nisso como parte de um trabalho, mas é o que é — diz e eu balanço a cabeça uma última vez.

— Eu vou pensar sobre, Marjorie. Eu... — Me interrompo, sem saber como concluir a frase.

— Eu entendo. Leve o tempo que precisar entre hoje e segunda-feira. — Eu assinto e desvio os olhos, tendo dificuldades para acreditar que isso realmente está acontecendo. Mas quando depois de quase um minuto inteiro o chão não se abre comprovando que eu estou em algum tipo de sonho bizarro, eu me levanto e, depois de me despedir com um aceno, saio do IABE como se minha vida dependesse disso, porque, aparentemente, respirar direito, nesse momento, depende.

***********

— Trezentos e vinte reais por hora aula? — Melissa pergunta com os olhos fixos na tela do meu notebook enquanto lê o contrato de trabalho que Marjorie me enviou por e-mail. Minha amiga está sentada no sofá, de frente para mim.

— Eu sei.

— Isso são quase sessenta mil reais por mês — praticamente grita.

— Eu sei.

— Multiplicado por seis, são quase trezentos e cinquenta mil reais, Pedro.

— Eu sei — repito como um papagaio.

— Mais esse bônus... São quase Quatrocentos mil reais em seis meses! Puta merda! — Agora ela está histérica.

— Eu sei! — gemo e levo as mãos ao rosto, ainda sem ter ideia de como me sinto com tudo isso.

— E eu posso saber por que é que você não está surtando?

— Ah, acredite, Mel. — Sopro o ar por entre os dentes antes de desviar o olhar e balançar a cabeça de um lado para o outro, negando. — Eu tô surtando!

— Não do jeito certo! — continua no modo histeria. — Pedro, esse é o tipo de proposta que se alguém faz, sua resposta é “onde eu assino?” antes que a pessoa tenha a chance de mudar de ideia! — Levanta os olhos do aparelho sobre suas pernas. — O que, em nome de Deus, pode estar te segurando?

— É em vinte e oito dias! — exclamo, mas Melissa não se abala. Continua me olhando como se me dissesse “Hum?” e eu me sinto impelido a continuar. — E não é em outro bairro, ou simplesmente outra cidade, Mel. É em outro estado! — Engulo antes de umedecer os lábios e olhar para cima apenas por não saber o que fazer comigo mesmo. — Eu não vou voltar pra casa no fim do dia! Eu nem vou ter uma casa, quer dizer, eles prometem moradia, mas eu... — Pauso e um suspiro me escapa antes da admissão. — Eu não quero uma moradia. — Abaixo a cabeça, os sentimentos rebeldes em meu peito ganhando força e tamanho. — Eu passei muitos anos da minha vida numa moradia, Mel. Eu... Eu só… — Desisto de colocar meu caos interior em palavras, mas quando levanto a cabeça para encontrar o olhar da minha amiga, percebo que não preciso.

Silêncio se instala entre nós como se Melissa soubesse que eu preciso dele, que eu preciso de tempo para me entender.

— Não é a mesma coisa — ela diz por fim.

— Como é diferente?

— Não voltar pra casa todos os dias não significa que você não tenha uma, Pedro. E mais do que isso, dessa vez, você vai estar escolhendo onde quer ir. Qual é, amigo? — Estala a língua como se o que está prestes a dizer fosse algo óbvio, de conhecimento comum. — Você sempre foi muitas coisas, covarde não é uma delas. Você não pode abrir mão de uma oportunidade dessas por causa de um medo bobo. — O arder em meus olhos não acha que meu medo seja bobo. Eu sei que Melissa está certa, mas entre entender e sentir existe um abismo.

— E se eu não for bom o bastante? — pergunto, dando voz ao único medo dentre tantos no qual eu ainda não havia realmente me permitido pensar. — E se eles perceberem isso cinco minutos depois e me chutarem?

— Agora você só está sendo idiota. — Mel dispensa minha pergunta e meu queixo cai.

— O jeito que você me apoia é realmente diferente! — reclamo e ela bufa antes de revirar os olhos. Melissa tira o notebook do colo, o coloca sobre a mesinha de centro ao nosso lado, se arrasta pelo sofá até que nossos joelhos se batam e pega minhas mãos.

— Eu entendo que você tenha medo de se sentir sozinho, Pê. É injustificado, mas eu entendo. Mas medo de não ser bom o bastante? — Melissa chia em um óbvio desdém. — Pelo amor de Deus, migo. Você foi escolhido pra esse trabalho. — Pausa. — Eu quero que você pense sobre isso. Alguém que poderia contratar qualquer outra pessoa simplesmente escolheu você pra isso, e não só porque suas qualificações são boas o bastante, mas porque o seu coração é o melhor que existe.

— Agora você só está me mimando — falo baixinho, sentindo uma lágrima teimosa escorrer e ela dá de ombros e estala a língua.

— Você faz as melhores comidas! É o mínimo que eu posso fazer para retribuir. — Me abraça e eu rio da sua bobeira, mas um arfar desesperado me assusta. Eu me afasto, preocupada com Melissa e encontro seus olhos arregalados e uma expressão de pavor congelada em seu rosto.

— O que foi Mel? — Pisco várias vezes.

— Eu acabei de me dar conta de que vou morrer de fome! — se lamuria e uma vontade de estapeá-la, proporcional a que eu estava de abraçá-la um minuto antes, se instala em meu peito.

— Que susto, Melissa!

— O quê? Minha alimentação é um assunto muito sério!

— Você é um quebra-clima excepcional, Mel! — digo, me afastando. — E você tá se precipitando. Eu ainda não decidi se vou.

— Mas nós acabamos de ter uma conversa madura sobre medo e limitações. — Recua o rosto, parecendo ultrajada por, aparentemente, ter desperdiçado suas palavras motivacionais comigo. Eu ergo uma sobrancelha, como sempre, incrédulo com Melissa. Ela é louca, total e completamente louca.

— Sim, nós tivemos e sim, você está certa sobre eu não poder perder uma oportunidade como essas por medo. Mas eu só vou decidir isso depois de conhecer o meu suposto contratante.

— Mas não é da filha dele que você vive falando?

— É.

— E ela não é um docinho de coco com cobertura de brigadeiro?

— Algo assim — concordo, rindo.

— E ele não a cria sozinho?

— Uhum.

— Então eu vou começar a procurar um serviço de marmitas que caiba no meu orçamento — declara, simplesmente, e eu me preocupo de acordar no dia seguinte e Melissa ter invadido meu quarto de madrugada e arrumado minhas malas apenas para garantir que eu não possa mudar de ideia. Desisto de contradizê-la.

— Você pode só aprender a cozinhar, sabe?

— É, e o sol pode nascer no oeste.

***********

— Tudo bem, Pedro. Você pode fazer isso. Era o que você queria, afinal. O que você quer, aliás — repito para mim mesmo diante do espelho, mas meu estômago se apressa em deixar claro seu nível de discordância com essa ideia, revirando-se.

Como se não bastasse o nervosismo latente de conhecer meu futuro chefe em potencial e uma sensação estranha, nervosa, circulando em minhas veias como se fosse sangue, agora isso. Bianca não podia ter escolhido um outro dia para acordar indisposta? Eu juro que se essa criança não nascer e ela vier trabalhar amanhã, ficarei muito tentado a acreditar que a professora só estava fugindo da reunião de pais.

Muito bem, vamos lá! Sopro o ar com força para fora dos pulmões e saio do banheiro. Na sala dos professores, encontro Cássia e Marjorie à minha espera.

— Eu farei a abertura e a Cássia as considerações gerais, Pedro — minha coordenadora começa. — Você só vai dividir a apresentação dos relatórios individuais com a Cássia, tudo bem? — Balanço a cabeça, concordando. — Você fica na sala de vocês e a Cássia vai pra sala adjacente. Ok?

— Ok.

— Então vamos — convida, e nós três marchamos em direção ao auditório para receber os pais da turma 1-a.

As reuniões de pais são organizadas bimestralmente e acontecem uma por dia, ao longo de uma quinzena, para que nenhuma turma precise ficar sem aulas por causa delas. Durante as reuniões, as crianças geralmente estão envolvidas em aulas de música ou língua estrangeira, sob a responsabilidade dessas professoras específicas e da auxiliar de turma. Por isso, nós não costumamos participar delas.

É a minha primeira e eu deveria estar me sentindo esfuziante de alegria. Me imaginei conduzindo uma dessas tantas vezes, tive tantas ideias, fiz tantos planos para quando o meu momento finalmente chegasse. Entretanto, a sensação esquisita que me acordou continua tão presente agora quanto no momento em que abri os olhos esta manhã e eu não entendo o porquê.

É quase como se algo grandioso estivesse prestes a acontecer e meu corpo tivesse recebido o memorando, mas meu cérebro não. Participar da minha primeira reunião, conhecer o pai de Beatrice e discutir a proposta de trabalho são agendas importantes, mas não o suficiente para me deixar inteira em estado de alerta. Isso não faz qualquer sentido. Pelo menos, não até que eu passe pelas portas abertas do auditório e me depare com um homem já lá dentro, sozinho, de costas para mim.

A visão dos ombros largos e do pescoço forte me fazem prender a respiração. Minha pele esquenta e arrepia, e eu puxo uma inspiração curta na tentativa de controlar a reação absurda do meu corpo à presença do desconhecido cuja postura controlada parece ser a resposta para as perguntas que eu me fazia apenas alguns segundos atrás.

Ele se vira, atraído pelos sons da nossa chegada, e eu interrompo meus passos, desfazendo a linha perfeita que formava com Marjorie e Cássia, ao perceber que aquele, parado a apenas alguns metros de distância, não é qualquer homem.

*** HUGO MALDONADO ***

Encaro o homem estático na porta do auditório sem conseguir sequer piscar por alguns segundos e quando me dou conta de que os grandes olhos redondos me encarando não são uma peça sendo pregada pela minha mente, meu primeiro instinto é uma vontade inconveniente de rir, mesmo que eu não esteja achando qualquer graça na situação de merda que acabo de descobrir que me meti.

O invasor. Pedro Fernandes, o professor de quem minha filha não para de falar, é a porra do cara que estava prestes a tentar entrar em meu escritório no dia do aniversário de Beatrice e que quando pego em flagrante, teve a audácia de se ressentir por ser repreendido. Distraído, ela disse que estava distraído. Como um homem que se distrai tão facilmente pode ser responsável por crianças? Ainda assim, não consigo evitar a lembrança das palavras de Breno a seu respeito “lindo para caralho”.

Tive o mesmo pensamento no dia. Não sabia que se tratava do mesmo homem, mas esses olhos eram impossíveis de se ignorar. Continuam sendo, aliás. E enquanto vejo a compreensão se espalhar por eles, meu olhar é atraído pelos lábios cheios e bem desenhados, ainda mais atraentes do que naquele momento.

Mas que porra, Hugo?! Me repreendo e enfio uma mão no bolso da calça. Inclino a cabeça levemente, estudando-o sem me importar com a impressão que isso vai causar nas duas mulheres que entraram ao seu lado no auditório. Pedro continua parado no mesmo lugar, seus olhos fixos em mim, me investigando com uma intensidade proporcional a que eu dedico ao professor.

Eu estava perdido em pensamentos e expectativa quando a impaciência maior do que a habitual percorrendo meu corpo se agitou com o som de passos. Dois dias atrás, Marjorie entrou em contato comigo após sua reunião com Pedro e me disse que não recebi um sim imediato, naquele momento comecei a ansiar pela manhã de hoje.

Fui generoso o suficiente para garantir que a proposta feita fosse considerada irrecusável e ainda assim, o e-mail que recebi dizia que o professor auxiliar precisava pensar. Pensar em quê? Me perguntei, nas últimas quarenta e oito horas. O que quer que fosse, ele precisaria entender que não era o suficiente para me fazer faltar com a palavra que dei à minha filha.

Mas agora, olhando para o homem pequeno de cabelos escuros e lábios tentadores, eu quase desejo que seja, porque Pedro Fernandes é um problema. Eu só não descobri seu tamanho ainda, mas suspeito que seja bem maior do que seu um metro e meio de altura.

— Bom dia — cumprimento as três pessoas, mesmo que meu olhar se mantenha completamente focado em apenas uma delas. Pedro umedece os lábios antes de movimentá-los quase silenciosamente em resposta à minha saudação, mantendo a economia de gestos.

— Bom dia, senhor Maldonado. Seja bem-vindo — Marjorie responde em alto e bom som e o alvo da minha atenção engasga com choque evidente. Seus olhos se arregalam, surpreendendo-me com a informação de que ele ainda não tinha entendido. Ele achou que eu era um pai, mas não sabia de quem, não até ouvir meu nome.

Constrangimento veste seu rosto, tingindo as bochechas de vermelho e eu gosto da visão. Bom, muito bom. Passo a ponta da língua sob os dentes superiores e dou passos moderados na direção do moreno, eliminando a distância que ele fez questão de manter entre nós. Seu cheiro me atinge primeiro e eu não consigo evitar tomar uma inspiração mais lenta, querendo um pouco mais dele.

Deslizo a mão livre pelos cabelos ao me lembrar mais uma vez do meu irmão e da sua decepção quando eu lhe disse que mantivesse as mãos longe do professor de Beatrice. Porra, com esse cheiro...

— Você deve ser Pedro Fernandes. — Meu tom sai mais grave do que deveria e a frase “Problema! Esse cara é problema!” pisca em vermelho na minha cabeça. Pedro engole em seco e aperta os dentes.

— Esse sou eu — responde com firmeza e sua óbvia determinação em me enfrentar de igual para igual é, mais uma vez, quase divertida. Quase. Exceto que hoje, me pergunto se é esse o tipo de coisa que ele está ensinando à minha filha. Deixo que o silêncio se instale entre nós antes de inclinar a cabeça levemente para o lado.

— Bem, isso com certeza é surpreendente — admito e segundos depois, um grupo de pais se aproxima das portas do auditório, parecendo trazer consigo a fórmula mágica para descongelar os movimentos de Pedro. Ele limpa a garganta e apruma os ombros antes de responder.

— Sou obrigado a concordar. Se você me der licença — pede, mas não espera por ela.

Desviando-se de mim, caminha na direção de Marjorie e Cássia que já estão no tablado diante das cadeiras acolchoadas e organizadas em um círculo, aguardando que os pais tomem seus lugares.

Acompanho com atenção cada um dos seus passos, esperando que ela se vire outra vez e quando ele o faz, me certifico de que meu olhar diga tudo o que ele precisa saber: essa conversa está muito longe de acabar.

***********

Sentado com as pernas cruzadas na sala vazia, tamborilo os dedos na mesa ao meu lado enquanto espero. O ambiente claro, preenchido por mesas e cadeiras infantis, está cheio de trabalhos escolares pendurados em varais ou presos às paredes. Olho para um conjunto de mesa e cadeira à minha direita, sabendo que é ali que Beatrice costuma se sentar e sorrio.

Mas só até me lembrar de que em algumas semanas minha filha precisará abrir mão do ambiente que ela sempre adora. É para resolver isso que nós estamos aqui, Hugo. Digo para mim mesmo.

Geralmente, ouvir o que as pessoas responsáveis pela educação de Beatrice têm a dizer é algo que faço com atenção, mas hoje foi impossível concentrar o meu foco em qualquer coisa que não fosse a professora auxiliar.

Com a coluna ereta e o rosto em uma máscara impassível, Pedro permaneceu em silêncio enquanto Cássia e Marjorie faziam observações rotineiras sobre o comportamento da turma. Seus olhos se mantiveram fixos em um ponto aleatório à sua frente, em um esforço evidente para continuar a olhar para ele.

Por que? Perguntei-me concentrado em desvendar cada centímetro dele como há muito tempo eu não fazia com qualquer coisa ou pessoa. Sua cintura não é estreita nem larga e o volume so peitoral sob a blusa de gola polo azul escura é tentador para caralho. Sinal que malha.

Curiosidade. Foi a segunda emoção inesperada que aquele homen despertou em mim e não consigo evitar uma satisfação estranha pela raridade do evento. Continuo olhando para a porta, esperando que ela seja aberta, o que não demora a acontecer.

Pedro solta uma expiração profunda e silenciosa ao entrar na sala e leva os olhos para todos os lugares possíveis antes de finalmente focar em mim. A ponta da sua língua umedece os lábios lentamente e eu sei que não deveria encarar, mas não consigo desviar os olhos. Breno filho de uma puta.

— Olá, de novo — diz após alguns segundos e caminha na minha direção.

Gosto da sensação e quase rio ao reconhecer que, depois de anos sem me sentir atraído por ninguém em especial, é justamente o professor da minha filha quem desperta algo que eu sequer me lembrava de que ainda era capaz de sentir. A vida é mesmo uma filha da puta.

Primeiro, irritação. Depois, curiosidade. E junto a essas duas, atração. Combinação interessante, reconheço. E perigosa. Meu subconsciente completa.

— Olá. — Ele senta à minha frente e coloca a pasta que carregava sobre a mesa, entre nós.

O móvel e a curta distância não fazem nada para impedir que o cheiro cítrico e ao mesmo tempo amadeirado flutue até meu nariz, nem que o ar ao nosso redor, de repente, pareça um pouco mais pesado.

— O senhor gostaria de fazer alguma observação inicial? — começa com a pergunta de rotina, mas a sensação que me percorre ao ouvir as duas primeiras palavras que deixam sua boca é tudo, meno cadeira, desconfortável. Sua pele clara enrubesce no pescoço, se entendendo certo rotineira.

— Hugo.

— Sinto muito — se desculpa e franze as sobrancelhas. — O quê?

— Me chame de Hugo. — Não é um pedido e meu tom deixa isso óbvio. Pedro se remexe na ou errado a súbita gravidade do meu tom, não sei.

Ele finalmente acha a coragem necessária para deixar que seus olhos encontrem os meus e por alguns segundos, nenhum de nós dois diz nada.

— Por que você não me apresenta o relatório individual para que nós possamos conversar sobre o que realmente interessa? — Quebro o silêncio e apoio as mãos sobre as pernas, entrelaçando meus dedos e recostando-me mais ao espaldar da cadeira. O professor pisca antes de inclinar a cabeça, parecendo confuso.

— O que realmente interessa?

— Nossa mudança, seu novo emprego. — Agora, ele parece estupefato por instantes antes de balançar a cabeça em negação rapidamente.

— Senhor Mal… — O interrompo com um olhar significativo e ele pigarreia, limpando a garganta. — Hugo — recomeça e eu assinto, concordando. Pedro umedece os lábios pelo que deve ser a milésima vez nos últimos cinco minutos. — Eu acho que houve algum tipo de mal-entendido. Eu não aceitei o emprego — explica.

— Ainda — completo e sua cabeça recua para trás. — Mas nós vamos conversar, você vai me dizer quais são as suas ressalvas e eu tenho certeza que encontraremos soluções para elas.

— Você parece já ter resolvido tudo — diz depois de me encarar quase ofendido por algum tempo. Seu tom é de acusação. Dou de ombros.

— É como as coisas funcionam. — Pedro solta uma risada seca. Incrédulo, talvez? Estreito os olhos e ergo o tronco da cadeira, aproximando-me mais da mesa e diminuindo a distância entre nós.

Sua respiração tropeça quando ele é pego desprevenido pela minha proximidade súbita, mesmo que não seja muita, e suas narinas dilatam com a força da expiração que as deixa.

— Lamento, Senhor Maldonado. — Dessa vez, meu olhar de repreensão não é o suficiente para fazê-lo me chamar de Hugo. O homem está conscientemente me provocando e eu me pergunto se ele está ciente dos efeitos dessa provocação em minha virilha. — Hoje não — me avisa, e o canto dos meus lábios se ergue, teimosamente, denunciando minha diversão por ele achar que pode me enfrentar. — Mas o senhor tem razão sobre uma coisa, nós devíamos começar logo com o relatório individual.

Siga a Casa dos Contos no Instagram!

Este conto recebeu 5 estrelas.
Incentive Ka Mander a escrever mais dando estrelas.
Cadastre-se gratuitamente ou faça login para prestigiar e incentivar o autor dando estrelas.

Comentários